domingo, agosto 24, 2008

Faz meu Tipo

eu não sei se são crises
é morte
é lá e cá
ela está aqui dentro, aí dentro, fora de tudo
a música foi roubada por ela
as risadas das ruas
a confiança da segunda-feira
a noite de um valente
o levantar de um desempregado

idiota, você existe
eu sei que rasteja
atrás de um negligente
de um fraco
do corpo que repousa na lona

te abraço e o convite vem
convite à dança
de uma banda de alucinados
ébrios errantes em notas desorganizadas
danço com a morte
e ela não me causa espanto
se me tocar, te abraçarei
e se me deixar voltar para casa
caminharei traçando planos
e dormirei em paz

pois inevitável é
iminente, já não sei

se eu danço com a vida?
todos os dias me faz companhia
pode não ser a mais bonita das damas
mas faz o meu tipo

vida, sou tarado por você

quarta-feira, agosto 20, 2008

Menino-Homem

quando o homem percebe
"esse é o meu erro"
e quando percebe também
"essa é a solução"
e ainda mais quando percebe
"eu tenho preguiça"
quem poderá adentrar o abismo?
quem endireita a coluna do homem
estufa seu peito e o empurra?

todo começo de ano letivo
era uma nova escola
novos rostos, mesmas coisas
coisas de menino-homem
vigiar, conversar, tentar ser melhor
erguer a vista e se apresentar à sala
"meu nome é tal, estudava em tal escola"
ah! como o caminho até a carteira era longo
olhares veteranos de meninos-homens
meninas-mulheres
que dois dias depois mexiam no meu cabelo
"queria ter um cabelo desses"
meninas-mulheres de cabelo crespo
ensebados em inveja e curiosidade

o recreio começava e não tinha dinheiro para o lanche
pedir para um colega? nem pensar
passar vontade, esse era o estilo de vida

jogar bola, driblar e ser derrubado
levantar e aceitar a provocação
covardia, esse era o estilo de vida

voltar à aula com a testa suada, barriga vazia
mente sem ânimo, "garoto, você é muito burro"
passar em branco, esse era o estilo de vida

voltar para casa, coluna curvada, pisando em folhas secas
esperar o jantar, comer e depois brincar
ser moleque, esse era o estilo de vida

quem pode voltar e endireitar?
quem poderia alertar o menino-homem?
"não faça isso, não faça aquilo"
nem um anjo do Senhor poderia fazê-lo

eu poderia ser melhor, se tivesse a receita
mas a minhas mãos grandes e finas
não sabiam nem tocar um piano
ontem não existia glória
hoje muito menos
mas amanhã, o que espera?

vai ter com a formiga, ó preguiçoso
hoje eu entendo o provérbio
a advertência
mas quem pode erguer o menino-homem?
quem pode fazê-lo dançar
conforme a dança magnífica dos anjos?
o vai e vem de asas causa nauseas

ora, somos humanos
meninos ou homens
somos peste, a origem do arrependimento
o asco das rochas, a vertigem das árvores
somos apenas isso, humanos

super-homem? nietzsche, você estava louco
o que não me mata, me debilita
jamais me fortalece
posso emprestar de ti essa loucura?

e quem poderá endireitar
aquilo que foi criado para morrer?
passos e mais passos
quando o menino-homem olha para trás
diabos, não há pegadas!
apenas aves de rapina maliciosas
inventando desdém

idiotas, pensam que me enganam?

você lembra?
passar em branco, esse era o estilo de vida
ainda é

domingo, agosto 03, 2008

Existo, Logo Morro

penso, logo existo
Descartes, sua bicha, você tinha razão
mas será que o excesso de existência
provocará explosão?

será que a cabeça inflada
por considerações e cogitações
anulará minha existência
com tanta existência?

de tanto existir, esqueço de viver
por isso que a máxima prevalece
muitos são os que existem
poucos são os que vivem

muitos pensam demais
poucos agem de verdade
o coração tremula o punho
e contra o cérebro vocifera
o cérebro altivo olha com desdém
e despreza

pensa, existe, considera, pesa na balança
mede o buraco e passa ao redor
abraça o passado e despreza o futuro
e despreza

a roda da vida parou
porque resolvi existir
porque resolvi pensar
porque não sei agir
não sei sorrir
e nunca mais chorei
por você
por eles
por mim

o homem que existe, não chora
porque esquece
mas aquele que vive, sorri
porque lembra
lembra sem pensar
lembra pra esquecer

sim Descartes, sua frase tem verdade
mas você esqueceu
não sei se por falta de tinta ou por falta de voz
existo, logo morro.

sexta-feira, julho 18, 2008

Quero Viver

eu quero viver
ou queria
ver meu time campeão
ver netos no sofá
receber um diploma
ser reconhecido

eu quero envelhecer
eu queria chegar lá
eu quero casar
eu quero caçar
mas tenho medo
dos meus sonhos

eu quero acreditar
fechar os olhos
relaxar um pouco
mas eu não sei
eu não consigo
parar de pensar

eu quero amar pra sempre
eu queria você pra sempre
vocês todos pra mim
queria ser desapegado
odiar o materialismo
repudiar a vaidade

eu estou com medo
porque eu sou jovem
porque tenho a perder
porque sou materialista
porque almejo
porque desejo
porque eu quero

quero viver
ou queria

terça-feira, junho 17, 2008

A Morte e a Minha Morte

eu não tinha coragem, ó morte
mas a senhorita a tem sobrando
senhorita sim
virgem, mal-amada, amarga e enegrecida
virgem por desgraça
mal-amada por opção
amarga por vocação
e enegrecida por consequência

não havia sofá ou uma cadeira para teu agrado
mas a senhorita cá está, em pé
em minha casa, meu lar, meu refúgio

exala cheiro de falta de estrada
falta de caminho
falta de ar
em ti vejo o último abraço
meus lamentos
e minhas últimas pretensões

desgraçada mãe da saudade
deixe que eu faça um último apelo
ninguém nunca goza de tempo
algumas últimas palavras
víbora banhada em desalento

amigos, divulguem o que criei;
amor, você foi a única;
mãe, queria ter aproveitado você
bem mais do que uma simples infância;
pai, queria ter entendido você;
irmãos, eu os amo de verdade.

ao resto, deixo a fiel descrição do rosto da morte:

(expirei)

Você e Eu Somos

você é meu jesus cristo
aquele que vai voltar
você é meu nirvana
aquilo que vai me dispersar
você é minha reencarnação
que me colocará num corpo melhor

eu te amo mais do que a compreensão
da sua indiferença azulada poderá entender
eu te amomais que a importância que você dá
pra atos de uma alma nula e nublada
chorona e apagada
cega a tropeçar

eu sou areia quente nesses pés de pequena
eu sou vento que lança fina areia
eu sou fumo marrom ou sou cinza fumaça
eu sou o que você queria ser na juventude
eu sou seu fracasso

você é minha vida
eu sou sua morte
você é cor
eu sou morte
você é brilhante
eu sou morte
caralho, tudo é vermelho

ao diabo com o amor, meu amor

quarta-feira, junho 04, 2008

Pré-morte

Envelhecendo, eu estou envelhecendo
E o meu peito não é mais aquele de outrora
É negro, frio e doente
Antes eu corria, sorria, brilhava
Meus vinte e poucos anos não são dignos de presunção
Quando eu tinha oito anos, pensava nos meus dezoito
Servindo o exército e comendo maça no sofá
Meus dezoito anos já passaram
E eu servia uma mulher e comia a maçã podre da vida
Eu não sei o que fazer
Eu me prendi demais às vaidades
Eu não sei escapar
Bem, eu sei o que fazer
Preciso escapar
Então o lamento é outro:
Não sei escapar

Sou um covarde
Um fracasso coberto de vaidades
Vaidades filhas de putas
Vaidade, tudo é vaidade

Eu nunca mais vou correr
Eu nunca viverei na época em que deveria ter vivido
Eu não vejo lugar para mim nesse mundo
Eu queria poupar o mundo de minha existência
Mas sou covarde demais para recepcionar a morte

quinta-feira, março 06, 2008

Vista para o Matagal

Passei em branco. Nada daquelas histórias de comer mulher em ônibus de viagem. Só fósseis ambulantes travestidos de idosas, crianças sapecas atrapalhando meu sono e claro, trôpegos trabalhadores, esparramados por diversos assentos. Longe do luxo dos ônibus de leito ou semi-leito, estava eu num ônibus com o revestimento dos assentos rasgado, nenhum sinal de cinto de segurança, aliás, não havia sinal de segurança em lugar algum.

O banheiro era o resumo de todos os meus pesadelos e a porta não podia fechar, pois se isso ocorresse, a mesma ficava trancada, fazendo o motorista exausto parar no acostamento e se dirigir aos fundos do veículo, para aplicar um macete que abria milagrosamente a porta. Havia um aviso estampado: "não feche a porta", mas do que adiantava? Dois terços dos passageiros eram analfabetos e o resto era tímido demais para cagar de porta entreaberta, sob risco de alguém flagrar o momento mais íntimo entre o ser humano e o seu corpo: a limpeza do cu. O medo de cagar com tamanho desconforto ocasionou momentos terríveis, quando os passageiros, sob as torturas do esfíncter, aliviavam-se em meio aos peidos mais nauseantes. O quê aquele povo comia? E eu matutava comigo mesmo: "se o peido tem apenas 1% de enxofre, que é o que faz ele ficar fedido, imagina o percentual desse povo! 10% no mínimo!". Mas meus pensamentos dissipavam no ar, como os inconvenientes peidos.

Não sou nenhum fresco, mas tive que colocar a mochila virada para o lado da frente e dormir abraçado à ela. Já tive experiências negativas demais ao confiar nos proletários sofridos da nação. Fodam-se eles. Que cortem infinitas toneladas de cana-de-açúcar, que peguem doença de Chagas e que continuem morando em casas de pau-a-pique. Honestos? O caralho. Fora o cheiro de sovaco com cachaça que permeava minhas narinas. Nada contra a cachaça, mas puta merda, passa um sabão de pedra nessa caverna cabeluda... Mas a verdade é que passei em branco novamente. Já contabilizo dezenas de viagens de ônibus, e seja leito, semi-leito ou pau-de-arara, sou um fracasso em todas as modalidades.

Más experiências à parte, eu desembarquei na rodoviária de São Silvestre do Campo. A bucólica região não é tão atraente. Sabe aquele papo de vida no interior? Então, tô fora. A rodoviária insignificante só ganhava algum significado quando uma telha caía em alguma velha. Bem, foi o que disse o motorista para um dos caipiras que saía do ônibus.

- Cuidado com as telhas dessa porra. Tem hora que parece que chove concreto quando venta! Uma velha morreu nessa brincadeira! Hahahaha!

o motorista se tornava cada vez mais evitável com um bafo de café que se misturava ao bafo proveniente do estômago, fazendo uma junção que me dava a idéia de como seria o cheiro se um dia eu quisesse fazer café dentro de um banheiro enquanto eu cagasse. Comparações à parte, eu encaixei um cigarro entre meus lábios e demorei pra acendê-lo. Tanto demorei que ao retirá-lo depois da primeira tragada, o papel do filtro grudou como se fosse colado aos meus lábios, e ao retirá-lo, levou junto um filete do meu lábio inferior. Praguejei. Xinguei a mãe de Deus e o padroeiro da cidade, São Silvestre (que pra mim não passa de uma maratona de fim de ano). O calor era insuportável e para tentar amenizá-lo, me movimentei a fim de sair daquele antro de caipiras sofridos e rastejantes. Perambulei pela avenida principal e de cada dez estabelecimentos, sete eram igrejas evangélicas. E todas cheias. Povo idiota do caralho. Minha mala começava a pesar à medida que o cansaço dominava minhas pernas. Parei num bar.

- Campeão, me vê uma Brahma gelada.
- Não temos Brahma, só Malta.
- Tem outro bar por aqui?
- Não sei... - respondeu o atendente gorducho com olhar de desdém, evitando favorecer a concorrência.

Bem, prefiro evitar essas cervejas sofridas. Levantei minha mala e caminhei apressadamente. Era três da tarde, mas o Sol esqueceu de diminuir o calor e raiava como se fosse o meio-dia. Meu cabelo estava oleoso, e eu suava como um porco sofrido, e isso me deixa nervoso. O vento chegou com tudo, bagunçou meu penteado, jogando os fios pra direita, esquerda e pra frente. Larguei a mala e arrumei o penteado. Chutei uma pedra média para a rua, ela rolou com velocidade e quase acertou a frente de um carro em movimento. O motorista mostrou o dedo pra mim e tremulou o punho esquerdo. Retribui o gesto inicial e mandei ele tomar no cu. Ele passou reto. Entrei num segundo bar.

- Brahma, campeão!
- Só Skol.
- Tá, tá, me vê uma.

O atendente abriu a geladeira abaixo do balcão e retirou uma garrafona de Skol. Meus olhos brilharam.

- Dois e vinte. Tem que pagar antes.
- Caralho, você corta o tesão da coisa, man! - murmurei puxando a carteira do bolso.
- É foda, eu sei.
- Toma. E me vê um maço de Lucky Strike branco - disse entregando uma nota de dez reais.
- O que é isso?
- É um cigarro!
- Nunca vi!
- Caralho! Sério? E o que você tem aí?
- Esses aqui - apontou para o expositor de marcas acima do caixa.
- Putz, me vê um Dallas então - era o menos pior.

Balancei negativamente minha cabeça e abri o plástico do maço. Acendi o cigarro que cheirava mal. Cigarro bom você sente pela fumaça. Pelo menos o Dallas é de alguma indústria conhecida. Pedi mais duas garrafas e após finalizar a terceira, estava um pouco tonto. Acenei em despedida para o atendente que ergueu a mão num gesto negligente.

- Caipiras idiotas - disse em voz baixa.

Eu precisava de um hotel barato. Vaguei pelas ruas estreitas do centro e numa banca de jornal perguntei por um hotel. Indicaram-me o hotel Coronel Risotto. Que porra de nome era aquele? Devia ser um idiota. Os pássaros voavam rente à minha cabeça e eu não gostava disso. Cheguei à entrada do hotelzinho. Avaliação: menos duas estrelas. Era um pulgueiro fodido, com uma atendente descabelada que tomava sorvete naqueles potinhos plásticos.

- Pois não?
- Eu quero um quarto.
- Prefere com vista pra rua ou não.
- Qual é a diferença?
- Se o senhor gosta de movimento, a vista da janela que dá pra rua é melhor.
- E os outros quartos não têm janela?
- Têm sim, mas tudo que o senhor vai ver é mato.
- Me vê um desses aí, o do mato.
- Vinte e cinco reais.
- Puta merda, não vale nem cinco reais essa bosta - pensei franzindo a testa.

Entreguei o valor com relutância.

- Quarto doze. Café da manhã é servido ali atrás das oito da manhã até às dez - disse a mulher apontando para a cozinha imunda e escura.
- Tá certo.

Subi as escadas até o primeiro andar. Abri a porta do quarto e até que não era ruim. Uma escrivaninha de madeira, uma cama grande e dura, uma televisão protegida por travas. Um telefone também estava lá ao lado de um cardápio para o "serviço de quarto". Olhei para o cardápio e o joguei na escrivaninha. Sentei na cama e tirei meu tênis. Me dirigi ao banheiro que à primeira impressão estava em ordem. Peguei a toalha dobrada acima da privada e a estendi sobre o box. Tomei um banho longo, de água gelada, lavando o corpo e a alma. Me enxuguei e fiquei de cueca. Olhei pela janela e sim, era só mato, um vasto matagal. Acendi um cigarro e parei em pé, pensando na vida. Precisava de uns dias nessa cidade. O meu chefe em São Paulo deve estar em seu carro, encarando o trânsito caótico, os motoboys malandros que arrancam retrovisores. Mas meu chefe é gente boa. Me deu uma licença de uma semana devido ao estresse. Um colega de trabalho me tirou do sério ao entrar na minha sala e ficar falando da vida dos outros.

- Cara, você ficou sabendo que o Golveia...
- Sai daqui, viado bocudo de merda! - gritei lavantando-me bruscamente, indo pra cima dele.

Peguei-o pelo colarinho e o tirei da sala aos pontapés. Ele foi se queixar ao chefe, mas meu chefe sabia que ele era um puxa-saco fofoqueiro.

- Alberto, o quê tá rolando contigo? - disse o chefe com toda reserva possível.
- Esse cara, me tira do sério...
- Você precisa de descanso.
- O foda é arrumar tempo pra descansar.
- Que tal uma semana? Depois do pagamento, você fica uma semana descansando. O que acha?
- Como assim?
- Uma licença, Alberto. Olha os seus olhos, vermelhos! As olheiras, a fisionomia... Cara, você está mal.
- Eu sei. Aceito a licença, chefe.
- Maravilha. No dia seis você já está de folga, beleza?
- Perfeito. Valeu mesmo.

E lá estava eu, de licença, tentando amenizar o estresse. Até que estava funcionando. Coloquei uma bermuda, uma camiseta do Sonic Youth e saí para dar uma olhada na cidade à noite. São Silvestre do Campo é uma cidade com seus quinze mil habitantes e o movimento da noite se concentrava, como em toda cidade do interior, na praça que fica no centro. Jovens e mais jovens se amontoavam em volta de um carro com porta-malas aberto, tocando hits de rádio. Todos os garotos usavam boné, e comiam churros. As garotas, mais gostosas impossível. Com roupas simples, passavam longe da sofisticação de São Paulo, mas o corpo delas não perdia em nada para as urbanas paulistanas. Elas circulavam de braço em braço, deixando os garotos atiçados, no tesão da juventude. Latinha de cerveja nas mãos, a vida não precisava de mais nada. E como em toda cidade de interior, eles tinham um detector de forasteiros. Cheiravam a modernidade da capital em cada 'turista' e obviamente detestavam. Tenho certeza que é o receio de que cheguemos na cidade deles e roubemos as mulheres deles. Cabaços. Caipira é foda. Para evitar confusão, ou olhava para baixo ou para frente, sem atentar para os meus lados. Qualquer olhar em falso e uma briga poderia rolar. Entrei numa cantina italiana que tinha uma placa que anunciava em letras garrafais: "A MELHOR LASANHA DA REGIÃO". Bem, não lembro de ter visto outro lugar que vendesse lasanha, mas tudo bem. Pedi uma à bolonhesa e uma coca-cola. Demorou uns trinta minutos pra chegar.

- Até que enfim! - disse com sarcasmo típico de cliente chato.
- Desculpe, senhor! - respondeu a garçonete, sem graça.

A calça jeans justa naquela bunda redonda me deixou faminto e num impulso maníaco, devorei a lasanha que era muito boa. Poderiam colocar naquela faixa algo como "A MELHOR LASANHA DO INTERIOR". Era muito boa, assim como era a bunda da garçonete. Pedi a conta e ela me entregou. Sete reais. A vida era um sucesso. Não cobravam os dez por cento de serviço. Ela merecia uns quinhentos reais por aquele rabo. Coloquei meu número de celular no papel da conta, junto ao dinheiro. No papel escrevi "me liga, coração - Alberto". Ela olhou para mim, deu um sorriso e pediu desculpa pela demora da lasanha. Pegou o papel da conta e o espetou num ferrinho pontudo. Nem olhou para o meu convite.

- Biscate gostosa - pensei ao me levantar.

Saí da cantina e comprei um latinha de cerveja. Acendi um cigarro e suspirei. Nada melhor que um cigarro após encher a pança. Levantei minha cabeça e avistei um banco de praça. Um bêbado dormia no chão ao lado. Cheguei ao banco em meio aos olhares hostis dos caipiras. Olhei para o chão e terminei minha cerveja. Lancei o filtro do cigarro no chão e fiquei mais uns cinco minutos. Me levantei lentamente e a praça continuava no fervor das risadas, provocações e xingamentos. Um garoto vomitava nas escadas da igreja matriz. Sob reprovação dos olhares dos idosos e dos santos imóveis na fachada da igreja, o garoto saiu cambaleando, caindo sentado e adormecido, vencido pela cerveja. Pobre diabo.

Voltei para o hotel e subi as escadas após acenar para a mulher da recepção. Cheguei no quarto e tirei a camiseta. Atentei para uma mancha de infiltração na parede e dei uma risada. Olhei pra TV, ela olhou pra mim e virei de costas (não assisto TV desde quando tiraram Thundercats da grade de programação, quando eu era moleque). Acendi um Dallas e deitei com o cinzeiro na barriga. Pensei em diversas coisas, em São Paulo, nas garotas simples e gostosas dessa cidade pequena, na lasanha também. Fechei os olhos e o símbolo do Lucky Strike apareceu em meio à escuridão.

- Maldita cidade pequena - rosnei olhando para o céu.

E enquanto olhava fixamente para um furo na parede, uma gritaria no matagal me chamou a atenção. Apaguei a luz e fui para a janela.

- Pára Sérgio! Você não vai me comer! Não dá! - uma garota falava baixo, mas com firmeza.
- Vai porra! A gente namora há séculos, caraio! - um rapaz suplicou em voz baixa e tensa.
- Mas não dá, eu sou virgem... - disse a garota quando foi interrompida.

O rapaz encaixou um soco preciso na boca dela. A garota rolou pelo mato alto, fazendo ruídos. Eu ouvi barulho de galhos secos quebrando.

- Serginho, o que você está fazendo?!
- Hoje você vai dar pra mim! Foda-se! - disse o rapaz apontando para a cara da garota.
- Por favor, amor! Sou virgem! Não faz isso!

Ouvi barulho da fivela do cinto. Ela se debatia freneticamente, aos gritos. Somente o hotel estava por perto, e todos os hóspedes do hotel (outros três forasteiros) escolheram o lado da janela pra ficar. Ele deu mais um soco nela, agora na nuca e a ameaçou:

- Mais um grito e eu te mato, sua puta!
- Serginho, por favor! Eu sou virgem... Não faz isso! Vamos casar, vamos casar! - implorava aos prantos, num choro terrivelmente aflito.
- Cala a boca! Você tá louca, Gisele? Eu não quero casar pra te comer! Eu quero te comer agora!
- Ai meu Deus, me ajuda! - dizia ela de quatro, com a bunda virada para o rapaz.
- Cala a sua boca! Você tá com medo de perder a virgindade, sua puta? Você me chupa toda a noite! Qual é o problema de dar essa buceta?!
- Não! A buceta não! - a garota gritou se debatendo.
- Ah! Então quer no cuzinho? Hoje eu vou te comer, seja por onde for!
- Não, não! Socorro!

Eu assistia a cena com olhar maligno, com vontade de ajudar, mas ao mesmo tempo excitado. O rapaz cuspiu no cu da namorada e no próprio pau e enfiou sem piedade, nem imaginando a dor que estava causando à garota. Começou a bombar violentamente e ao mesmo tempo, xingava a pobre vítima, que nesse momento chorava baixo, suplicando roucamente ao seu Deus. Deus não foi salvá-la. Talvez tentasse ajudá-la, me usando, mas eu sou preguiçoso demais para ser um instrumento de Deus. O rapaz finalmente suspirou e caiu em cima da garota, que gemia de dor.

- Que cu gostoso! Vai acostumando, que agora vou comer todo dia esse cuzinho, até você tomar vergonha e dar essa buceta pra mim!
- Seu monstro! - sussurrou com voz trêmula.

Gozei também. Naquela altura do campeonato, se eu não fosse interromper aquele estupro, eu me masturbaria. E foi o que fiz. Gozei no chão do quarto e deitei na cama, com o pau amolecido. Alguns minutos de descanso e voltei à janela. O rapaz havia ido embora, e a garota estava lá, deitada na mesma posição. Pensei que ela estivesse morta, sei lá, mas ela conversava com seu Deus:

- Meu pai, por quê? Por que não me ajudou?

Compadeci-me de sua ignorância e de seu desespero. Somente os grilos cantavam em alegria e os morcegos emitiam seu som insuportável. Imaginei o terror do estupro, o medo que ela deveria sentir naquela hora, sozinha e sem ajuda. Desprezada no chão, suja de terra e com o rabo gozado. Dei um murro na parede e coloquei a cueca e a bermuda. Camiseta no corpo e lá estava eu, correndo pela recepção. Dei a volta no quarteirão e vi que o matagal era protegido por arame farpado. Rastejei no chão e ao me levantar do outro lado, a camiseta prendeu no arame. Puxei com força e ela rasgou. Não me importei e corri pelo mato.

- Tem alguém aí? Você pode me ouvir? Onde você está? - gritei desesperado.
- Aqui! Eu tô aqui... - respondeu a garota com o braço levantado e trêmulo .

Corri até onde a voz estava e a cena foi terrível. Acendi meu isqueiro e vi uma cena pavorosa. Ela estava roxa, com mechas de cabelo arrancadas e jogadas em suas costas. Seu rosto era uma mescla de lágrimas e terra. O cheiro era terrível: esperma, cu, boceta e suor. Chorei.

- Quem foi o filho da puta que fez isso com você?!

Ela não respondia, só choramingava.

- Vamos, diga porra!

Ela continuava choramingando, reclamando de dores terríveis. Eu sabia quem era o bastardo, mas eu preferia disfarçar, afinal, não queria que ela soubesse que eu poderia ter evitado aquela situação toda. Levei um susto ao ver luzes, muitas luzes e uma gritaria ensandecida vindo de vários homens. Consegui ouvir uma frase em meio à gritaria.

- Parado aí, filho da puta!

Era a polícia, três policiais apontando suas armas para mim. Levantei meus braços.

- Peraê, amigo! Eu tô socorrendo ela! Ela foi estuprada!
- Ah é? Cala a sua boca! Algemem esse filho da puta! - ordenou o delegado.
- Calma aí! Eu fui socorrê-la, porra! - gritei apontando para a garota.
- Ei, ei! Mão pra cima, caralho! - ordenou um dos policiais que chegou perto de mim com a arma apontada para minha cabeça, começando a me revistar.
- Puta merda, o que vocês estão fazendo? Socorram a garota!
- Cala a porra da boca! Não me diga o que fazer! - gritou o outro policial, me acertando um bom soco no fígado.

Caí no chão e lembro de ter sido chutado, pelo corpo inteiro. Desmaiei.

Quando acordei, estava numa cela com mais vinte e três presos que confabulavam sobre mim.

- Olha lá o estuprador! E nem é da cidade! - um preso negro e banguelo disse.
- Eu não estuprei ninguém, filho da puta! - gritei enquanto notava que minha calça estava aberta.
- Vou enfiar minha pica na sua garganta, seu safado! - outro me ameaçou.

Um policial chegou nesse momento e deu uma porrada na grade da cela.

- Cala a boca aê, caralho! Alberto, venha pra cá! - me chamou enquanto abria a cela.
- Eu disse pra vocês que não estuprei ninguém, caipira cuzão! - gritei já no lado de fora da cela.
- Se voltar pra cá, te como, seu viadinho! - alguém me ameaçou.

Mostrei-lhes o dedo do meio e caminhei junto ao policial para dentro da sala do delegado. Enquanto andava, senti que estava sem cueca. Sentei numa cadeira velha e de perna vacilante, que ficava em frente à mesa do delegado.

- Seu filho da puta! Você vem para cá, pra nossa cidade, pra 'estrupar'? - o delegado lançou olhar cínico para cima de mim.
- Eu não estuprei ninguém, senhor delegado. Eu estava socorrendo a garota, pois o meu quarto de hotel ficava de frente para aquele matagal. Eu vi a gritaria e saí correndo! Pergunte à recepcionista!
- Ela disse que não lembra de ter visto você no hotel naquele horário - disse com sorriso de deboche e um cigarro entre os dentes amarelo-escuro.
- Puta que pariu, só o que me faltava isso... - reclamei colocando as duas mãos entre meus cabelos.
- E você pode me explicar isso? - me jogou um saco, onde se encontrava minha cueca, cheia de esperma da minha masturbação proibida.
- É minha cueca! Ué? Não posso ter batido uma punheta durante o dia?
- Você não me engana, rapaz. Olha isso aqui! - lançou uma conta de restaurante. Aquela conta onde coloquei meu número de telefone, lá na cantina.
- Céus! Era a garçonete? Puta merda!
- Então você sabe quem é a garota?
- Agora sei! Quando fui socorrê-la, não deu pra ver o rosto dela!
- Sei, sei. Não acredito nessa história toda... Pra mim é lenda sua.
- Que mané lenda! Eu quero falar com meu advogado! - disse me levantando.
- Ei, ei! Sossega aê, porra! Senta aí se não vai apanhar! - disse o delegado apontando pra mim - Vamos averiguar isso tudo, mas por enquanto vai ficar na cela!
- Eu não volto pra lá, eu quero meu advogado! Você sabe o que é exame de esperma? Examine e verá! E a garota? Perguntaram pra ela?
- Cala a sua boca, sabichão! Eu sei o que fazer e por enquanto é te colocar na cadeia! Ah! E a garota disse que não sabe quem a 'estrupou'!
- Mas sabe que não fui eu! Maldito seja, maldito seja! - disse erguendo o punho direito, enquanto dois policiais me seguravam.

Levei dois murros, um em cada lado do rosto e fui retirado da sala, carregado por dois policiais. Enquanto caminhava entre os guardas, um senhor com seus setenta anos de idade levantou-se da cadeira de espera da delegacia e se dirigiu a mim com uma arma.

- Filho de uma puta! Nunca mais vai 'estrupar' ninguém! - gritou apontando a arma para mim.
- Mas não fui... - fui interrompido pelo tiro da arma do velho.

Os dois policiais tentaram segurá-lo, mas o velho conseguiu atirar. No meu pau. Gritei olhando para o sangue saindo da minha calça.

- Velho filho da puta! Maldito seja! - gritei apontando para o velho.

O delegado saiu da sala correndo e viu a cena.

- Levem o rapaz para o hospital! Medeiros! Coloque o velho na cela, já!

Fui levado às pressas para o hospital que ficava a um minuto dali. Desmaiei no carro. Três dias depois, acordei numa sala de hospital precária e o delegado estava à beira do leito.

- Rapaz, você está bem. Levaremos você para São Paulo. A garota disse que não foi você. Desculpe pelo inconveniente, mas precisamos prezar pela segurança dessa cidade.
- Eu estou bem? Cadê o doutor?
- Um momento.

O delegado voltou com o doutor.

- Doutor, como está meu pau?
- Bem, ele precisou ser amputado, devido ao tiro - disse o médico olhando para o chão.
- Santo Cristo! Mentira! Mentira! - gritei me debatendo.
- Não tente se levantar, senhor Alberto. O senhor está em recuperação! - exclamou o doutor estendendo a mão em direção ao meu pau ou ao que sobrou dele.
- Delegado, você é um miserável! Se não fosse o mal-entendido, nada disso teria acontecido! É isso que vocês fazem às pessoas que querem ajudar?
- Não é bem assim... - respondeu o delegado constrangido pelos meus gritos.
- Eu vou processá-lo! Pode esperar! Pode esperar!

Gritei por mais alguns minutos até que eles, sem paciência, se retiraram. Chorei olhando para os curativos na região íntima e lembrei dos curativos que estavam naquele mesmo lugar, mas num tempo distante, após uma cirurgia de fimose quando eu tinha quatro anos. Me levantei cuidadosamente e caminhei rumo ao corredor. Olhei ao redor e não havia ninguém. Parecia que o pronto-socorro estava vazio. Andei vagarosamente até uma outra sala.

- Prefiro morrer a viver sem meu pau - sussurrei.

Cheguei na outra sala, onde havia apenas um paciente cheio de tubos, dormindo. Avistei uma mesa e um bisturi acima dela. Segurei o bisturi e cortei a garganta do paciente adormecido. Um corte preciso, de um extremo ao outro. Depois desferi vários golpes de bisturi em seu peito, fazendo brotar um chuveiro de sangue em sua roupa. Limpei o sangue no lençol do leito e ganhei o corredor novamente. Lentamente me aproximei da recepção e uma mulher estava de costas, sozinha, sentada numa cadeira. Surpreendi a coitada com um murro em suas costas. Ela deu um grito agudo e caiu no chão. Cortei sua garganta também. A mesma precisão cirúrgica. Eu era bom nisso. O assassino sem pica. Enchi as costas dela de furos. Mais chuveiro, mais sangue. Dei uma risada e me levantei. Os pontos da minha região pubiana soltaram e começou a aparecer focos de sangue na minha calça larga de hospital.

- Foda-se! Não sou mais ninguém.

Lembrei do que um amigo meu, o Eduardo, disse um dia:

- Man, o homem sem grana é um apenas um pênis.

Eu já não tenho grana. Agora não tenho pênis. Logo não sou nada. Dei outra risada.

- Du, você fará falta lá no inferno! - falei em voz moderada, enquanto lipava o bisturi no vestido da moça.

O sangue jorrava cada vez mais na minha calça, e eu começava a sentir uma fraqueza. Minhas pernas tremulavam e eu sentia uma tontura horrível. Voltei ao corredor, aos tropeços, e encontrei outra sala. Um dos pacientes dormia, mas o outro estava com os olhos abertos, soturnos, mirando a parede. Ele me avistou.

- Ei! O que você tá fazendo, rapaz?
- Cala a sua boca, maldito!

Me aproximei do paciente que dormia e cortei sua garganta. Corte fácil, o rosto era pequeno, foi rápido. Mais furos no peito. Mais chuveiro, mais sangue.

- Minha Nossa Senhora! Socorro! Socorro! Me ajudem aqui! - gritou o paciente desesperado, batendo no suporte de soro.
- Cala a boca, caralho! - ordenei enquanto me dirigia a ele.
- Sai daqui! Sai daqui, desgraçado!

De repente a porta se abre com violência. Era o delegado com a arma apontada para mim.

- Largue o bisturi, Alberto!
- Então me dá sua arma! Quero morrer! - respondi ao delegado, enquanto eu segurava a cabeça do paciente que estava desesperado.
- Sem chance, rapaz! Largue o bisturi!
- Você vai me matar? Me mata!
- Você está louco! Solte esse bisturi!
- Delegado, seja sincero - o paciente tentava se debater e sem querer o cortei no queixo - você viveria sem seu pau?
- Eu não sei! Mas largue o paciente!
- Não! - gritei e comecei o corte da garganta, esperando um tiro fatal.

O delegado não pensou duas vezes e atirou duas vezes, no meu braço.

- Desgraçado! Atira na minha cabeça! - praguejei me contorcendo de dor.

O delegado chutou o bisturi e deu um chute na minha perna.

- Vai pra cadeia, moleque!
- Não, por favor, me mata agora! Diz que foi legítima defesa. Matei três pessoas aqui, você será o herói!
- Você tem razão, desgraçado - disse o delegado apontando a arma pra minha cabeça.
- Obrigado. Você me devia essa - agradeci sorrindo, olhando para cima, para o rosto do delegado.
Ele fechou os olhos e atirou. Meus miolos voaram por todos os lados. O paciente com o queixo cortado fazia o sinal-da-cruz em meio ao desespero.

No dia seguinte, lá em São Paulo, meu chefe segurava um jornal e comentava junto ao funcionário puxa-saco e fofoqueiro:

- Puta merda! O Alberto não só estuprou com assassinou pessoas em série! Caralho!
- É chefe, ainda bem que o senhor deu a licença pra ele, hein? Já pensou?
- Já pensei o quê?
- Já pensou se ele tem esse surto aqui na empresa? Estupra a recepcionista e esfaqueia a gente?
- Pensando por esse lado...

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Gelo, Porra e uma Iguaria Bizarra

Sobrancelha arqueada e testa franzida. A fumaça entrava maliciosamente, cheia de curvas, pelas narinas de Alfredo. "Deve haver um lugar pra mim nessa cidade", pensava o homem sinistro que aparentava - pelas rugas profundas e olheiras escuras - bem mais que seus vinte e sete anos. Os dentes não eram radiantes como na infância e ele pensava nisso enquanto esfregava os dentes da frente com o dedo indicador. Olhou para o chão e alcançou o maço caído, dedilhou o interior da embalagem e encontrou um cigarro. Engatilhou o coitado na boca e o acendeu rapidamente. A janela de vidro estava fechada, e ficou assim por alguns instantes, enquanto Alfredo repousava sua testa no vidro e a fumaça se elevava, encobrindo a sua vista com uma espessa e irritante neblina, afinal, a vista estava perfeita aquela noite.

- São Paulo não costuma ser tão bela nesse horário, aliás, que céu! Dá pra ver estrelas! - falou impressionado, enquanto afastava a névoa com as mãos.

Soltou um pouco de fumaça pelo boca e nariz ao mesmo tempo e deu uma cusparada. Olhou o trajeto do cuspe em queda livre até que o mesmo se partiu em dois, se chocando contra o telhado de uma casa à frente do prédio. Fumou o cigarro até queimar o dedo, até o gosto do fumo ficar insuportável. Lá na rua, um carro não respeitou o cruzamento e quase carregou uma moto pela avenida.

- Por Cristo, que filho de uma puta! - murmurou enquanto lançava o filtro pela janela.

Foi até o banheiro e lá na banheira havia água e gelo, muito gelo envolvendo garrafas de vodka e de cerveja. Coçou a cabeça e fitou por alguns segundos - olho fixo - a tampa vermelha de uma garrafa de Smirnoff. Até que sacudiu a cabeça num despertar repentino e se curvou para retirar uma garrafa verde de Heineken. Apoiou a parte de baixo da tampa na quina da pia de granito e bateu com força no topo da garrafa, fazendo a bela tampa soltar da garrafa, como uma magia. E a magia acabou quando a graciosa tampa desfaleceu ao lado da privada. Grande destino, tampa. Caminhou como uma marcha para a morte, olhando para os detalhes de infiltração na parede do corredor. Apagou a luz.

- Merda de infiltração - sussurou - um dia dou um jeito nessa porra.

Deu um gole generoso em sua cerveja meio-amarga e seguiu até a sala. Olhou para os rasgos do sofá e sentou no infeliz móvel de couro fajuto. Cruzou as pernas e olhou para o teto.

- Esse sofá - falou com desânimo incontestável - um dia compro um de couro legítimo.

Soltou um peido e com certa dificuldade, ergueu-se e rumou para a janela. No meio do caminho, olhou para o toca-discos. Voltou-se para o aparelho de som e abriu o protetor de acrílico. Levantou o braço do aparelho e aproximou o seu rosto da agulha e ficou alguns segundos olhando para cada detalhe.

- Seja lá quem diabos inventou essa porra, ele é um gênio.

Devolveu cuidadosamente o braço ao suporte e abriu sua caixa de discos. Passou os dedos por várias capas. Fechou os olhos e continuou o passar de dedos.

- Pronto! Este aqui. Vejamos...

Era Highway 61 Revisited, do Bob Dylan.

- Bob, essas sua camisa é um sucesso... quem será esse cara atrás dele, com uma câmera fotográfica nas mãos? - disse Alfredo passando a mão com carinho pela capa de papelão do LP.

Cuidadosamente tirou o vinil do plástico de proteção e caprichosamente o instalou no prato giratório. Levantou o braço do aparelho e o disco rodou, como um pião nas brincadeiras de sua infância amarga. Suavemente, despejou a agulha sobre o disco e o ruído inicial, fetiche de qualquer apreciador de um bom som, serpenteou pelo ar, entrando pelos seus ouvidos, fazendo-o sorrir timidamente. A harmonia perfeita de 'Like a Rolling Stone' flutuava em sua introdução magistral, até que Alfredo sentou no chão e ensaiou um choro.

- Pai...

Levantou-se e ergueu o braço até agarrar um maço novo de Lucky Strikes. Violou o lacre e cheirou o conjunto de cigarros novos. Cheiro de chá fresco. Retirou um Lucky e com classe o colocou na boca, fazendo-o girar de uma extremidade à outra. Acionou o isqueiro e baforou uma coluna de fumaça. A Heineken estava acabando. Enquanto Dylan cantava, ele voltava ao banheiro ou melhor, à banheira.

How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown
Like a rolling stone?


- Pode crer, Dylan! Sozinho, man, sozinho! - gritou erguendo e cerrando o punho direito.

Abaixou as calças e mijou olhando pra trás, mirando as garrafas. Selecionou a Smirnoff e desrosqueando a tampa, sentiu seu pau ficar duro. Olhou para ele e acariciou o membro por alguns segundos. Começou uma punheta lenta, jeitosa, enquanto dava goles na vodka gelada. Sentou-se no chão do banheiro e começou a pensar na ex-cunhada.

- Por que não comi aquela gostosa?!

E ficou lentamente segurando seu pau, num vai-e-vem sensual e precavido. Queria prolongar o prazer, nada de punheta precipitada de adolescente. Fechou os olhos e vislumbrou sua ex-cunhada Gisele, de quatro, com aquele rabo escultural em sua cara, oferecido como oferenda valorosa, pronto pra ser penetrado, centímetro por centímetro, cada um dos dezessete centímetros de seu pau dentro do cu apertado dela.

- Na praia, quando eu a flagrei pelada no quarto, enquanto se trocava... puta merda! Ela nem reclamou, nem gritou... Deu uma risada e eu, cabaço, pedi desculpas de pau duro! BURRO! - gritou Alfredo, aumentando a intensidade dos movimentos da masturbação.

Acalmou os nervos com mais dois goles da vodka e novamente estava aproveitando cada pensamento, cada fantasia com a Gisele, a ex-cunhada gostosa. Gotas de suor deslizavam sem cessar de sua cabeça e em poucos minutos seu peito exibia manchas vermelhas, enquanto a cabeça do pau estava lambuzada pelo líquido seminal pré-ejaculação. A densidade dos gemidos se alternavam com o baile das formas que a fumaça do cigarro projetava. Ele não aguentava mais. Levantou-se e num urro de alívio, gozou com abundância poucas vezes vista. Gozou dentro da banheira de gelo.

Após limpar o pau, ele estava completamente relaxado e alegre pela bebida. Abriu mais uma cerveja e Dylan permanecia na sala, com sua voz inconfundível.

Well, I wanna be your lover, baby
I don't wanna be your boss
Don't say I never warned you
When your train gets lost


Ao ouvir a música, olhou para a foto de sua ex-namorada, que também é irmã da ex-cunhada gostosa. Agarrou a fotografia e apertou-a com desespero. Lágrimas rolavam pelo seu rosto e ao limpá-las com raiva, lançou a foto no chão.

- Eu tinha tudo, sua filha de uma puta! Você era tudo pra mim! Maldita!

Cuspiu na foto amassada e correu até a cozinha com seu pau mole balançando. Abriu a geladeira e a fechou. Velha mania dos tempos de fome, quando de dez em dez minutos, abria a geladeira na esperança de que alguém com bondade suficiente tivesse deixado algum alimento. Era sempre a mesma ilusão. E Alfredo lembrou dessa época. Voltou para a sala e sentou sua bunda desnuda no chão frio e olhou para um quadro, pendurado no centro da sala. Um barco velho e um pescador o empurrando. Uma paisagem incrível ao fundo.

- Carlinhos, meu irmão...

Pegou o quadro e o abraçou. Sentou-se de novo, e como um pai acolhe o filho, acolheu o quadro e o acariciou. De repente, lançou o quadro na parede, fazendo o mesmo se despedaçar em vários pedaços. Viu que havia silêncio na casa. O lado A havia terminado. Virou o disco com cuidado e ouviu a voz de Dylan regredir com seu descaso e inquestionável brilho. Com os olhos marejados, perambulou bêbado até o quarto e encontrou Mariana nua na cama. Ela havia bebido demais, mas se recuperava e recobrava a consciência.

- Fredo, que porra é essa? Tá chorando por quê?
- Me abraça, babe. Só me abraça!
- Mas...

Mariana era uma drogada, sofrida como o Alfredo. Aparenta uma idade bem superior, mas mantinha uma sensualidade honesta e sim, era bem atraente, embora seu braço fosse marcado por manchas roxas, bem distribuídas. Estava bebendo junto ao amigo, mas apagou em meio à gargalhadas.

Alfredo pulou na cama e se encolheu, puxando os braços da amiga para si. Mariana estava confusa e enquanto mirava a nuca do triste companheiro, cedeu à pressão e o envolveu em seus braços.

- Por que está chorando?

Alfredo não respondeu. Apenas se aconchegou. Enquanto se aconchegava, Mariana esqueceu do estado sofrível do amigo, desejando secretamente o seu corpo.

- Fredo, não faça nada do que vá se arrepender...
- Fazer o quê?
- Você sabe...
- Eu não sei de nada, Mari.

Enquanto Mariana desfalecia em constrangimento, seu amigo permanecia encolhido, como um animal acuado, fechado e decidido a permanecer daquele jeito.

- O que você tem, Fredo?
- Dá pra você me abraçar, porra?
- Tudo bem, mas tá muito estranho.

Mariana sentia sua calcinha umedecer. Foram raras as vezes que teve alguma experiência sexual com o amigo. Um sexo oral rápido, mas sempre embriagados. Nada que pudesse lembrar direito. Agora ela estava num pós-porre consciente, poderia conseguir algo.

- O que você está fazendo, Mari?
- Relaxa, Fredo...

Mari levou sua mão até o pau do amigo e começou a masturbá-lo. Alfredo arregalou os olhos, mas logo voltou ao seu ritual soturno de pranto. Mas enquanto suas lágrimas desciam, seu pau subia, de forma estranha. Ela saiu de trás e se postou à frente da triste figura do parceiro até encaixar sua boceta no membro rígido e roxo. Alfredo chorava, mas logo estava executando o vai-e-vem como se fosse uma trepada normal. Gozou dentro dela. Não tanto como na banheira.

Bob Dylan estava firme e forte, como um trovador de interior, cantando os versos de 'Desolation Row'. A melancolia estava no ar e Alfredo lentamente retirava seu pau das entranhas meladas de sua amiga.

- Gostou, Fredo?
- Vá se foder.
- Como assim?
- Já conseguiu o que queria, certo?
- Você é louco...

Alfredo se levantou com porra escorrendo pela extensão de seu pau, descendo até ao saco, agarrando-se nos pêlos escuros. Adentrou o banheiro e abriu outra garrafa verde de cerveja. Deitou sem cerimônias na banheira, em meio aos cubos de gelo e algumas garrafinhas que sobraram. Tremeu muito e arrepiou-se de um extremo ao outro. Deu um grito de insatisfação e cerrou os olhos.

Mariana levantou-se da cama e deu passos apressados em direção ao banheiro.

Right now I can't read too good
Don't send me no more letters no
Not unless you mail them
From Desolation Row


Alfredo olhou a sombra da amiga cada vez maior. Segurou o secador de cabelos e o ligou.

- Não, porra! Não! - gritou Mariana começando uma corrida.

Lá da sala, o solo desconcertante de gaita rolava solto. Era o fim do disco. Era lindo.

Alfredo soltou o secador e a lâmpada do banheiro e do corredor piscaram com força. Faíscas voavam para todos os lados, num espetáculo de horror. Mariana aterrorizada, brecou sua corrida e andou rapidamente de costas, tropeçando. Caiu nua, pasma e paralisada.

- Meu Deus do céu! Meu Deus do céu!

A amiga rastejou, tentando levantar-se e, ao conseguir, correu até a cozinha. Abriu a pequena porta do registro geral de energia e o desligou. Ligou para o 192 e foi ao banheiro desligar o secador da tomada. Voltou à cozinha e ligou o registro novamente. Vestiu uma bermuda cinza e uma camiseta do Queen. Olhou para o estado deplorável do amigo e chorou.

- Fredo, Fredo... esse era o meu lugar, idiota! Eu não tenho nada, ninguém. Pra quê tudo isso? Esse era o meu lugar!

Mariana agachou-se ao lado da banheira e abaixou os cabelos arrepiados do amigo. Os olhos dele estavam arregalados e ela tentou fechá-los, sem êxito. Chorava muito, em plena confusão de sentimentos e lembranças. Foi até a cozinha e pegou uma faca afiadíssima e voltou ao banheiro. Levantou a perna de Alfredo até visualizar a coxa magra do amigo. Passou com destreza a lâmina da faca na parte inferior, que estava dura, graças à abundância de gelo contida na banheira. Conseguiu destacar uma lasca da coxa do amigo e sem pensar duas vezes, colocou entre os dentes. Mastigou a carne doce e dura do companheiro, sem o mínimo sinal de ânsia. Estava ávida pela iguaria bizarra.

A campainha tocou.

Mariana ignorou o alerta que soava da porta e permanecia fatiando a perna de Alfredo e a consumindo, cada vez mais e maiores pedaços.

O enfermeiro tentou a maçaneta e viu que a porta não estava trancada. Com passos curtos e silenciosos, entrou pela cozinha. Olhos para os dois lados e permaneceu caminhando até ganhar a sala. Quando pensou em chamar alguém, Mariana, completamente descontrolada, surgiu à sua direita e o esfaqueou nas costas.

- Mas que diabos... - praguejou o enfermeiro caíndo de joelhos.

Mariana deu mais quatro facadas nas costas do pobre enfermeiro e o deixou na sala, agonizando em seus últimos suspiros. Correu até a cozinha e trancou a porta. Se dirigiu ao quarto e dentro de uma caixa comemorativa do Lucky Strike, apanhou um três oitão. Conferiu o tambor e lá estavam as oito balas brilhantes.

A campainha tocou novamente. Era o outro enfermeiro, que havia ficado na ambulância para retirar a maca.

- Puta que pariu, cadê o viado do Gilberto? - questionava o enfermeiro sobre o seu colega de trabalho esfaqueado.

Mariana pegou um pino de cocaína e arrumou rapidamente uma carreira desleixada. Aspirou com força todo o pó, ficando com rastros brancos no buço e na ponta do nariz. Tremeu e de um suspiro violento. Alcançou a arma e num rápido movimento, colocou o cano apontado para o céu da boca. Apertou o gatilho.

O estrondo da barulhenta arma de calibre trinta e oito, fez o enfermeiro que estava tocando a campainha ligar para a polícia.

Em doze minutos dois policiais estavam na porta, juntos ao enfermeiro, tocando a campainha. Em três minutos de curta paciência, um dos soldados arrombou a porta. Com armas em prontidão, apontadas para a frente, os policiais faziam movimentos bruscos, vasculhando cada canto. Chegaram à sala e um dos policiais contemplou o corpo ensangüentado do enfermeiro esfaqueado.

- Chame uma ambulância - avisou um dos policiais.
- Já temos um enfermeiro vivo aqui - retrucou o outro policial.
- Aquilo ali? - treplicou o policial apontando para o enfermeiro trêmulo e pálido no canto da sala.
- Tudo bem, vou chamar a ambulância.

Um dos policiais correu até a viatura estacionada afim de chamar a ambulância. Dentro da casa, Mariana, que havia atirado para cima num acesso de loucura, apareceu na sala, sorrateira e enxergou o policial de costas olhando para os pequenos detalhes da sala, revistando a varanda à procura do homicida. Quando o policial voltou de sua revista, deu de cara com Mariana, descabelada e rindo de forma malévola, apontando a arma contra o policial.

- Calma, minha senhora. Muita calma - o policial tentou amansar.

Mariana sem responder aos apelos, deu dois tiros no peito do policial, que ao cair, olhou para o próprio peito, e apagou. O enfermeiro que havia presenciado a cena, estático, deu um salto e correu para fora de casa, berrando.

- Viadinho de merda! - gritou Mariana ao ver o enfermeiro escandaloso fugir de sua vista.

Ao ouvir os passos na cozinha se aproximando, Mariana não hesitou e apontou novamente o cano para o céu da boca. O policial chegou e apontou a arma em direção à ela.

- Largue a arma! - ordenou o policial.

Mariana acenou em despedida para o policial e apertou o gatilho.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

prazer-fêmea

seios voadores, nenhum instinto materno
apenas bicos ardentes em direção
ao sexo
leite para sustento, não
sustento das fantasias dos homens, sim
e não haverei de descer às suas coxas
e o perigo de suas cercanias
ando pequeno, miúdo por um terreno vívido e fértil
humana clara de alma escura
girei meu corpo por cima do seu
procurando a fonte do cintilante calor
que se emaranhou desde os meus pés até a ponta da cabeça
e vi, de um extremo ao outro, que ali se originava
tesão, paixão, excitação
nas suas mãos lá estão
fabricados, embalados e negligentemente distribuídos
ao seu bel prazer
o seu prazer
dentro do seu prazer
porque você é o prazer-fêmea

sábado, fevereiro 16, 2008

Liso, Escorregadio

Homero estava convencido de que havia efetuado o crime perfeito. Sem pistas, sem o mínimo rastro, ele sorria enquanto vasculhava seu bolso procurando um cigarro solto. Lá estava um Marlboro vermelho, enrugado pelo lugar hostil onde se encontrava. Cigarro aceso, perfeito.

- Preciso dormir - pensou.

Arrastou-se pela cozinha apagando a luz. Bateu a cinza no chão, sem se preocupar com um eventual incêndio, tendo em vista que o chão era revestido por um carpete que por sinal, fazia tempo que não era aspirado. Pó, muito pó. À cada passo, pó. Apagou a luz da sala desabotoando sua camisa azul marinho e ao entrar no quarto, fitou o cinzeiro cheio pela metade - cinzas, gimbas e embalagem plástica do maço - e bateu novamente a cinza.

- Puta merda, que frio! De manhã tá quente, à noite esfria! Eu odeio essa cidade! Vai tomar no cu, São Paulo! - gritou olhando as ruas salpicadas de luzes, pela janela do décimo terceiro andar.

Lançou a camisa na cama e sentou-se para tirar a calça. Coçou a cabeça exausto, olhando para uma lasca que permanecia pendendo em sua escrivaninha. Lançou a calça na parede e a fivela do cinto arranhou a pintura.

- Foda-se!

Pegou o Slanted and Enchanted do Pavement e o colocou cuidadosamente no CD Player. Summer Babe começou a jorrar pelas caixas de som. Ao invés da euforia proposta pela canção (pelo menos ele sempre se animava com ela), Homero olhou melancólicamente para seu guarda-roupas, puxou uma bermuda e uma cueca e se dirigiu ao banheiro.

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As sirenes na rua Bartolomeu de Gusmão não paravam de escandalizar a paz dos moradores da Vila Mariana. Azul e vermelho cintilavam pelas paredes das pizzarias e prédios até que os dois carros destacados para o caso frearam bruscamente na frente de um prédio de tijolos, bem alto por sinal.

- Porra, deve ter uma bela vista lá em cima! - disse Osvaldo olhando para cima e limpando o suor da testa com sua carteira de identificação.
- É, Osvaldo... Como é bom entrar em ação no berço da burguesia! - retrucou Ulisses, com ares de revolta e satisfação.
- Você é um comunista idiota, isso é o que você é. - treplicou Osvaldo, levando um cigarro fumado pela metade à boca.
- E você é um cego. Foda-se você Osvaldo, não vou discutir agora - retrucou ao se dirigir à guarita do prédio - sei que seu cu tá piscando pra que eu me esquente e discuta, só pra você rir, se divertir. Vá se foder.
- Tá bom, tá bom. Mas pára com esse papo de burguesia. Isso me cansa, sabia?
- Depois a gente fala sobre isso.

O dia estava frio. O céu começava a juntar imensas bolas de nuvens negras, porém esse baile celestial era disfarçado pela escuridão da noite. O pizzaiolo largou a massa na mesa de manipulação e saiu envolto em farinha para verificar a ação dos homens que pararam na frente do adorável prédio de tijolos.

- Armando, volta aqui! Temos seis pizzas para entregar! - gritou seu João dos fundos da pizzaria.
- Seu João, a polícia colou aqui na frente, vai entrar no prédio!
- Pro diabo com a polícia! Volte pra massa! Sério!

Armando voltou murmurando alguns palavrões e continuou a manusear a massa pálida de pizza, enquanto se esticava para tentar ver algum movimento. Ele queria um tiroteio, uma perseguição. Mas sabia que seu João é um chefe implacável. Faria pizzas para um exército em meio a um front de batalha. Ele queria dinheiro, muito dinheiro.

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- Porra, vou cagar primeiro! - sussurrou Homero, enquanto procurava uma revista no quarto.

Achou um encarte de ofertas de um supermercado e correu para a latrina. In The Mouth A Desert tocava ao fundo. Ele deixou a porta do banheiro semi-aberta pois essa era a canção preferida dele. Enquanto a bosta escorregava pelo seu cu, ele escorregava pela privada, num alívio incrível. Logo retomou a postura e ergueu o encarte:

- Santo Cristo! O feijão não pode estar custando tanto assim! Sete reais! Maldito governo!

Folheou mais algumas páginas até que, ao chegar na parte de limpeza, jogou o encarte no chão e se limpou. Olhou para o box e não encontrou toalha alguma. Abriu a porta balançando os braços para que o cheiro se dissipasse, e dirigiu-se à pequena área de serviço onde o varal se encontrava. Pegou uma toalha vermelha e deixou a luz da cozinha acesa. Sentou no sofá e ligou para a pizzaria e pediu uma pizza.

- Traz troco pra vinte, beleza? E traz uma Brahma também.

Levantou-se e andou até o banheiro. Abriu o box e em seguida o chuveiro. Enquanto a água descia pelos seus longos cabelos, seus músculos cediam e o estresse parecia descer pelo ralo.

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- Pois não? - questionou o porteiro com solicitude em sua voz.
- Estamos aqui sob autorização judicial para deter o senhor Homero, que reside no apartamento 132 - disse Osvaldo com a mais genuina cortesia.
- Opa! É pra já!

O portão se abriu e os dois policiais adentraram o prédio, mostrando suas identificações para o porteiro, que distraído, permaneceu pasmo pensando no Homero.

- Antônio! Tão atrás de quem? - perguntou Armando, o pizzaiolo, do outro lado da rua.
- Do Homero, aquele cabeludo do décimo terceiro, sabe?
- Ah sim, ele vive pedindo pizza aqui. Aliás, pediu uma de anchova agora pouco!
- É melhor cancelar essa merda! Hoje ele vai ver o sol nascer quadrado! Hahahaha - gargalhava o porteiro com seus poucos dentes e o bigode amarelado de café e tabaco.

Enquanto o diálogo escandaloso entre portaria e pizzaria se prolongava com ironia e humor, os dois policiais penetravam a recepção do edifício. Ulisses apertou o botão do elevador.

- Olha essa recepção! Que móveis! Imagine a casa desse Homero. Deve ser um publicitário endinheirado, com seu carrinho do ano, todo folgado. Maldito! - rosnou Ulisses.
- Caralho, Ulisses, foda-se se ele tem grana! Vamos algemá-lo sem cerimônia e levar o safado pra delegacia. E deixe que os outros se encarreguem dele. Aliás, parece que você nunca lidou com ricos!
- Já lidei sim, e cada vez que lido com um burguesinho, morro de raiva! Eles têm dinheiro saindo pelo rabo, pra quê fazer crime?
- Eles são humanos, porra. Dinheiro não melhora ninguém - respondeu Osvaldo com olhar entediado.
- Eles são uns burros mesmo!
- Pra ter dinheiro nesse país, você tem que ser pilantra, esqueceu disso? Se liga Ulisses, para com essa sua raiva comunista!
- E você, pare com essa sua repulsa pela causa trabalhista!
- Eu não tenho repulsa alguma, eu só não fico recriminando quem tem dinheiro.
- Tá bom, depois a gente conversa sobre isso - desconversou Ulisses, enquanto abria a porta do elevador.

Quando Osvaldo apertou o botão do décimo terceiro andar, eles ouviram passos rápidos, de salto alto. Era uma mulher que abrira a porta do elevador. Entrou no mesmo e com semblante cansado, sorriu gentilmente para os policiais carrancudos.

- Boa noite - ela os cumprimentou, arrumando a franja loira.
- Boa noite - responderam em uníssono.

Enquanto o elevador subia, a dupla disfarçava ao máximo os olhares que permeavam o decote da loira, que permanecia olhando para a porta. O elevador chegou ao sexto andar e ela saiu, com um tchau singelo e o barulho de seus saltos a acompanhando.

- Meu Deus, Ulisses! Você viu ela? Puta que pariu! Eu largaria por alguns minutos essa detenção só pra foder ela rapidinho!
- Cala a boca, Osvaldo! Se concentra que a gente vai entrar em ação agora! - Ulisses repreendeu o amigo passando a mão pela cintura afim de pegar seu revólver.
- Comunista eunuco de merda! Só pensa em igualdade social! Sabe o que você precisa? Uma trepada linda!
- Tá bom, depois a gente fala sobre isso.

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Os vapores da água quente vindos do chuveiro elétrico tomavam o banheiro e graças a esses vapores, Homero escarrava sem parar na parede.

- Essa porra dessa água não fica morna! Ou quente ou fria! Puta merda!

Desligou o chuveiro e envolveu a cintura com a toalha. Sacudiu os longos cabelos e abriu a porta do box. Enquanto saía para se enxugar, pisou no sabonete e escorregou. O banheiro não era grande, na verdade era um tanto apertado, o que complicou a situação de Homero que ao cair, bateu a nuca na ponta do vaso sanitário. O impacto foi forte o bastante, fazendo Homero desmaiar, vertendo sangue da boca. A pulsação acabou e no corpo magro de Homero já não restavam resquícios de vida. O corpo dele ficou derramado junto à porta.

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- Senhor Homero, abra a porta agora. É a polícia! - vociferou Osvaldo.
- Porra, vamos ter que arrombar essa bosta - considerou Ulisses
- É, eu arrombo e você me cobre! - combinou Osvaldo.
- Feito!

Osvaldo tentou quatro vezes até que um chute mais forte fez a porta ceder. Inspecionaram a cozinha e a área de serviço. Nada. Com as armas em prontidão e apontadas para frente, vasculharam a sala, mas como nos outros cômodos, nenhuma novidade.

- Olha a TV do cara! - disse Ulisses fazendo sinal de riqueza com as mãos.
- Cala a boca, porra! - respondeu Osvaldo, morrendo de raiva.

Cada um entrou em um quarto, fazendo movimentos bruscos, abrindo guarda-roupas e novamente não encontrando nada. O cheiro de xampu que o vapor do banheiro alastrava direcionou a atenção da dupla para o banheiro e sua luz acesa. Ulisses acendeu um Camel e friamente bateu na porta.

- Senhor Homero, saia do banheiro, o senhor está preso.
- Ah, que se foda, Ulisses! Me cubra pois vou arrombar! - avisou Osvaldo.

Osvaldo conseguiu destruir a tranca da porta, porém a porta não abria. O corpo de Homero obstruia a entrada dos policiais.

- Homero, eu vou atirar na porra da porta! - ameaçou Osvaldo.
- Peraí! - disse Ulisses afastando seu colega do local.

Ulisses fez força e conseguiu visualizar a perna de Homero no chão. O sangue começava a invadir a entrada do banheiro.

- Meus Deus, o burguês se matou! - gritou Ulisses mordendo o próprio braço.
- Como assim? - perguntou Osvaldo enquanto voltava da sala.
- O miserável! Se matou! Puta merda!
- Vamos ver isso!

A dupla começou a trombar a porta com força, até que em uma batida, o corpo se mobilizou para o lado e a porta foi aberta, num espaço suficiente para entrar de lado. Ulisses entrou primeiro e contemplou o corpo morto e nu de Homero. Balançou a cabeça negativamente e bateu cinza na privada.

- Chame uma ambulância. Seja lá o que for, chame uma ambulância.
- Não parece suicídio, Ulisses.
- Diabos, foda-se. Chame uma ambulância.

O Pavement permanecia cantarolando no CD Player, a faixa era Fame Throwa. Ulisses olhou para a direção do quarto.

- Porra, Osvaldo, desliga essa merda de som. Como podem gostar disso?

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Estetoscópios, Radiografias e Mosquitos Noturnos

o chão do hospital não é tão branco
nem as vestes dos médicos
nem mesmo os filtros dos cigarros deles
nem a luz fluorescente da sala de espera
nem o azulejo que se derrama nos banheiros
o sorriso amarelo da atendente
não é branco como gostaria que fosse
nem tudo é como quero
nem sempre estou nos lugares onde quero estar
estar é algo tão condicional, sim, as condições que a vida me dá
para estar em algum lugar
a maca que aguarda um esfaqueado nesses dias de carnaval
jaz amarelada, abandonada, ao lado do segurança que faz plantão
com seu bigode sujo de escuro café
escuro como tudo que lá está, que era para ser branco e não é
se não é branco, é preto - não existem tonalidades para a melancolia
nem para a euforia
hoje cá estou, andando com as mãos atadas, sem notícias
um vela acesa em poços de lama
ansioso, sonolento sem sono
faminto sem fome
sob a sombra tenebrosa do medo
sob a angústia de ver a vela apagar
deus, como seus olhos são lindos e fazia tempo que não os via
pena que você não podia me ver naquela hora
mas as boas novas serpenteiam sorrateiras
nessa atmosfera
em meio ao peso dos maus anúncios
do som que ninguém quer ouvir
M-O-R-T-E
amanhã tudo estará escuro como sempre foi
estetoscópios, radiografias e mosquitos noturnos
negligência e desleixo
bebedouros sem copos
ambulâncias com corpos
a madrugada está apenas começando
e eu aqui, paciente como qualquer um lá dentro
olho pra fora
acho que vai acontecer um estupro no parque da Independência
são quatro e vinte e cinco da manhã
o segurança da guarita diz: que se dane
lanço meu cigarro fora, olho pro céu e penso:
a vida continua...

quinta-feira, janeiro 31, 2008

A Besta

- Eu sou honesto, rapaz! Sou evangélico, jamais faria isso! – gritou Aristeu
- Eu to pouco me fodendo pra sua religião – tentei menosprezar – só quero saber onde diabos você colocou a merda da conta que eu paguei agora à tarde!
- Pelo amor de Deus, Fernando! Você está possesso!

Eu estava de costas para ele, e ao ouvir sua constatação em relação à minha condição, me virei repentinamente:

- Ah! Não vem com essa! Você não é santinho! Aliás, sei de muita coisa que faria sua igreja entrar num vômito coletivo de tanta sujeira e pecado! Se liga, hein? Agora, cadê a joça da conta?
- Você é igual ao diabo! Só sabe acusar! O acusador dos filhos de Deus! Eu sou carne como você, eu peco como qualquer um!
- Corta essa, Aristeu! Vai se foder! E que se foda sua condição humana, só não venha bancar o santo comigo, certo? Até parece que só porque entrou na igreja, tá tudo perdoado, tudo limpo... se liga, porra! Passa a conta que eu paguei, vai!
- Olha só, eu sou sujeito aos mesmos erros que qualquer um, só que a diferença é que eu não vivo pecando como você! Eu posso pecar, mas Jesus limpou meu coração e hoje minha essência não é pecaminosa!

Eu sabia que ia começar a mesma discussão. Qualquer desentendimento toma esse rumo, o religioso. Acendi um cigarro rapidamente, puxei a fumaça e soltei rapidamente, fazendo barulho de sopro.

- Caralho! Do quê você está falando? Pára com essa porra de essência pecaminosa! Você se acha livre, né? “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”! Mas a verdade é que quem lê a bíblia, se torna prisioneiro da concepção do pecado, afinal, tudo é pecado e quando você nota, está preso dentro da mentalidade moralista de que tudo está errado e de que você deve evitar tudo que o leva a pecar, logo você se isola do mundo, esquece de todos os pecadores –
que embora pequem – te querem bem! Essa é a liberdade? – questionei com tom irônico – E pára com essa merda de assunto e me dá a conta!
- Olha aqui Fernando, você tem o direito de pensar o que quiser, mas não pode ficar gritando tantos absurdos! Do quê você está falando? Jesus com sua morte nos lavou com seu sangue! Deus foi tão bom que mandou seu único filho para salvar o mundo! Leia na bíblia! Livro de João, capítulo 3, versículo 16! Deus é amor! – Aristeu gritava exaltado, dando tapas em sua bíblia.
- Aristeu, quem disse que Deus é bom? Será que vocês são tão cegos assim? Será que ignoram o velho testamento, quando ele pedia animais para sacrifício? Quando ele matava gente de outros povos só pra favorecer o seu povo? – sinalizei com as mãos fazendo sinal de “entre aspas” – Porra! Ele cria a humanidade inteira e escolhe só um povo pra reinar sobre? Caralho, ele não é o Deus, criador do Universo? – eu já estava aos berros com o filho da puta – e em nome de Deus, me dá a conta que eu paguei!
- Olha só Fernando, você me decepciona com tantas blasfêmias... Quanta ignorância, rapaz! Eu nunca vi alguém falar tanta besteira em tão pouco tempo! Amigo, você precisa de Jesus! Por que você não vai pra igreja, um dia só? Você vai gostar! O louvor é legal, eles tocam guitarra...
- Só porque tocam guitarra significa que é legal? O Calypso toca guitarra e... – tentei interromper mas logo fui interrompido.
- Deixa eu terminar de falar! Então, você devia ir a igreja! Na boa, minha vida melhorou muito depois que fui lá... O pastor é atencioso, os irmãos vão te acolher!
- A gente já combinou que você não me convidaria novamente, lembra? Eu não toco meus pés numa igreja, a não ser que seja pra entrar atirando!
- Meu Deus! Sabe de uma coisa? Vou orar por você! Você não sabe que o meu Deus é o Deus do impossível?

De repente um silêncio se instalou. Olhei com cara de descrença para Aristeu e joguei o cigarro pela janela.

- Impossível é alguém ser tão burro como você, Aristeu. Era impossível há pouco tempo, mas Deus te fez burro! Hahahaha! Agora sim eu creio nesse Deus!
- Pode debochar, rapaz. Mas um dia você vai se livrar do mau! Toda a maldade que vem de Satanás seja repreendida, em nome de Jesus! – vociferou com a mão direita estendida em minha direção, enquanto a mão esquerda mantinha a bíblia pesada junto ao peito dele.
- Maldade! O que é o mau? Você já tentou raciocinar? Depois que você entrou na igreja, você se esforçou pra questionar o que não tem explicação? Siga o raciocínio: Lúcifer era um querubim perfeito, era a tradução da concepção de Deus sobre a perfeição, correto?
- Correto, mas ele se revol...
- Não me interrompa, porra! Vamos lá: Ele era perfeito e não havia maldade no céu, tudo era perfeito. Aí eu pergunto: de onde veio o mau, a inveja que fez Lúcifer se rebelar contra o criador e pretender tomar seu lugar? Já pensou nisso? Quem fez Lúcifer se rebelar? Quem era “o mau” naquele tempo? E porque Deus não destruiu Lúcifer pra cortar o mal pela raiz?

Novamente silêncio. Apliquei-lhe um nocaute moral com esse argumento, mas como um lutador fraco e cego, que não tem noção do perigo, ele se levantou e continuou o embate.

- Amigo... você não sabe o que fala... A sabedoria de Deus é loucura para os homens!
- Então é isso que você me responde?
- É sim. Vocês nunca entenderão.
- E você entende? Você entende sobre as eras passadas e o que ocorreu para que Lúcifer desenvolvesse a maldade que na época era inexistente? Afinal, você deve manjar da sabedoria de Deus, né?

Incrível, mas eu o visualizava colocando uma venda invisível em seus próprios olhos.

- Deixe de ironia, Fernando. Isso não vai me abalar!
- Ah, claro! E cadê a conta que paguei? Incrível como qualquer conversa com você termina em discussão religiosa, vai se foder!
- Pare de me ofender! Estamos em um debate civilizado!
- Debate? Só eu questiono! Você não tem explicação pra nada, apenas diz “a sabedoria de Deus é loucura para os homens”!
- E quer que eu diga o quê?
- Mano, às vezes o silêncio é o melhor discurso.
- Ora, você só sabe questionar minha crença!
- E você só sabe falar de sua crença! E por Deus, cadê a conta?
- Olha aqui Fernando... Eu gosto de você, quero seu bem. Jesus tem propósitos para a sua vida!
- Ah sim! O mesmo propósito que Deus tinha ao criar Adão e Eva, colocá-los pelados num jardim, com a inocência de uma criança e com o diabo malicioso silvando pelas árvores, pronto pra fazê-los pecar! Aí Adão e Eva pecam, e Deus aponta o dedo gordo e divino dele na cara dos dois e diz: pecadores! Depois os expulsa do jardim, amaldiçoando a mulher com a dor do parto e o homem com a dor do trabalho. Aí deixa a merda rolar pelo mundo, com Caim matando Abel, fazendo dele o primeiro assassino e pai de um povo violento e pecador. Aí Deus em toda sua perfeição e propósito perfeito, se arrepende de sua criação e diz que vai afogar todo mundo num dilúvio! Que maravilha! – gritei batendo palmas – Deus tem um propósito! Aí ele se arrepende de se arrepender e salva apenas uma família, a família de Noé. O resto que se foda nas águas, né?

Agora eu visualizava Aristeu furando seus próprios olhos.

- Fernando, tudo que Deus fez foi por amor!
- Aristeu, vai tomar no seu cu! Eu estou aqui há tempos te falando a verdade e você vem dizer que um marginal divino – vulgo Deus – fez tudo isso por amor? O mesmo amor que fez Deus permitir que o diabo pintasse e bordasse com a vida do paciente e cabaço Jó? Só pra provar a fé dele? Isso é amor? Matou a família dele, os empregados, os rebanhos e ainda mandou um monte de doenças pro corpo dele! Aí no final da estória, Deus o restitui com o dobro. Mas e a mulher dele que morreu? Poderia ser substituída? Isso prova que os homens pra Deus não são nada! São todos um bando de peças substituíveis!
- Não há como sondar a mente de Deus. Ele é diferente de todos nós! – Aristeu disse com olhar de superioridade.
- Ele não é diferente, Aristeu! Nós somos a imagem e semelhança dele, não é? Moisés quem criou Deus! Ele criou Deus para manter aquele bando de escravos hebreus dentro de um bando de leis! Aliás, foi Abraão que inventou toda essa putaria e Moisés resgatou toda essa farsa!
- Abraão foi um homem abençoado! Não fale isso!
- Não adianta, né? É tanta cegueira que não adianta! É o mesmo que tentar explicar como é o vermelho para um cego de nascença! Cadê a merda da minha conta? Eu preciso dela pra comprovar o pagamento!
- Fernando, você é um homem inteligente, mas de tanto ler, você se tornou cético, incrédulo! Mas Deus vai operar em sua vida, pode apostar! Eu declaro a benção de Deus sobre sua vida! – novamente o disse com a mão direita estendida em minha direção.
- Aristeu, corta essa! Enfia essa mão direita no seu cu! Quem disse que você pode declarar algo? Quem te deu essa autoridade?
- Jesus! O nome dele tem poder!
- Ta bom, você realmente acha que pode fazer isso?
- Sim, em nome de Jesus podemos fazer tudo!
- Ah sim! E eu declaro que você agora é do diabo! – esbravejei com os dedos fechados, exceto o indicador e o mindinho que ficaram levantados fazendo o sinal do diabo.
- Ta amarrado em nome de Jesus!
- Ta amarrado porra nenhuma, Aristeu! O diabo que te carregue! Hahahaha!
- Incrível. A gente abençoa uma pessoa e recebe uma maldição de volta!
- É assim com seu Deus! Você o adora mas se cometer um pecadinho, está sujeito a queimar o rabo no inferno!

Finalmente visualizava o cérebro dele escorrendo pelos buracos dos olhos.

- Não é assim, Fernando! Não é!
- Ta certo. Cadê a conta?
- Tudo isso é graças a essa internet, toda essa liberdade de expressão, todo mundo escrevendo o que pensa! E você caiu na deles!
- Não Aristeu, eles caíram na minha. Eu sou o maldoso que escreve. Eles lêem.
- Bem que a bíblia estava correta. A marca da besta era simbólica.
- E o que tem a ver isso com a internet? Vai dizer que é o meio de comunicação do anticristo?
- Também. Mas pense: no Apocalipse está escrito que a marca da besta seria colocada na testa ou na mão direita. Na testa é a luz do monitor e na mão direita, o mouse! Eu sabia! O pastor estava certo!- Que diabos...-Tire esse computador da sala e coloque no seu quarto! Não quero a besta reinando nos espaços por onde eu ando! – fui interrompido.
- Oh! – gritei fingindo susto – Se eu colocar a besta dentro do quarto, ela se torna inofensiva?
- Não importa, só não quero vê-la!
- Ta certo, então você vai fazer o quê em relação às imagens católicas que estão pelas ruas? Mandar guardar num quartinho também?
- São casos diferentes!
- Casos diferentes é o caralho! Eu também pago aluguel, o computador fica na sala! E falar em pagar aluguel, dá a minha conta agora!
- Não admire se seu computador estiver com óleo consagrado na igreja! Vou consagrar esse computador para o Senhor!
- Ah sim! Da mesma forma que você consagrou o computador com aquelas punhetas quando te peguei vendo um site de putaria?
- Lá vem o acusador! – Aristeu fez cara de desprezo.
- Não quero te acusar, até porque pra mim isso é normal. Orgia pra mim é normal, heroína com crack pra mim é normal. Quero que tudo se foda, mas não venha com falso moralismo. Como você é cínico!
- Fernando, aquilo é passado. Eu já pedi perdão pra Deus. Ele me perdoou, afinal, ele é fiel e justo para nos perdoar de todo o pecado e nos purificar de toda iniqüidade!
- Crente é tudo a mesma bosta, né? Sempre tem um chavão bíblico pra tentar escapar das merdas! Sua essência é pecaminosa! Você bate punheta aí enfrente ao computador quase todos os dias, aí com a mesma mão que manipulou a pica, você manipulou a bíblia.
- Mentira! Mentira! Ta amarrado o acusador! – gritou com os dedos indicadores tapando os ouvidos.
- Agora você não quer ouvir, né? Puta merda, que raiva! Aristeu, você me cansa com esse papo! Cadê a conta?
- Eu te canso? Vou te cansar até que você vá pra igreja! Já leu a parábola da viúva e o juiz?
- Eu já li a bíblia de cabo a rabo, bem mais vezes que você! Não vem com essa. Sua perseverança não vai adiantar. E cala a boca! Crente chato de merda! CADÊ A CONTA?
- As pessoas sentem falta de você lá no grupo de jovens!
- As pessoas sabem que você bate punheta antes de ir pra igreja?
- Eu fui comprado com o sangue precioso de Jesus!
- Ah sim! Jesus, o filho burro de Deus! - O quê?!- Um dia Deus disse: filho, meu único filho, você pode morrer pelo pecado de todas essas pessoas que criei? Jesus deve ter respondido: pai, por que o senhor não aniquila o mau de vez? Por que tenho que morrer pra absorver todo o pecado do mundo? Deus respondeu: porque eu sou complicado, porque eu quero espetáculo, eu quero emoção! Jesus responde: mas Pai, manda um anjo! Ele poderia morrer pelo pecado de todos! Por que eu? Deus reponde: porque todo mundo dirá: como Deus sofreu ao ter que enviar o único filho pra morrer! Jesus responde: então por que o senhor não desce? E Deus finalmente responde: cale a boca e se prepare pra entrar no bucho de uma virgem!

Aristeu se ajoelhou com olhar complacente e piedoso, e ergueu seu rosto para cima:

- Senhor, não considere o que ele fala neste momento! Perdoa o seu pecado, ele não sabe o que fala!
- Oh! Eu não sei o que falo? Fora da igreja não há inteligência! Oh! – respondi com ironia.
- Fernando, não diga mais nada, para não piorar a situação espiritual.

Em todo esse tempo, nós permanecemos em pé. Até que peguei um copo, enchi dois terços dele com whisky e sentei no sofá. Aristeu permanecia de pé com a bíblia firmemente guardada em seu peito. Eu cruzei as pernas, levantei o copo e brindei:

- Ao amor de Deus! Deus é amor! Paz na Terra! Aleluia! Aleluia, caralho!
- Fernando, Fernando. Deus é misericordioso. Mas não é burro.
- Ah não, claro que não – respondi com sarcasmo estampado em cada palavra.
- Eu vou colocar uma música aqui. Peraê.
- Se colocar essas porras de gospel eu quebro o CD e a sua cara!
- Eu tenho o direito de ouvir o que quiser! Eu pago o aluguel!
- Foda-se, eu tenho o direito, ou melhor, o dever de quebrar sua cara!
- Espírito de violência, eu te repreendo em nome de Jesus!

Dei um gole mais longo até o whisky acabar e joguei o copo na parede. Rajadas de cacos de vidro cortavam o ar.

- Fernando, vou chamar a polícia!
- Oh! O que aconteceu com o nome de Jesus? Porque ele não me impediu de quebrar o copo?
- Não brinque com o nome de Jesus!
- Ah! Pro diabo com o nome de Jesus! Cadê a minha conta?
- Como você fala besteira! Mais uma dessas e chamo a polícia!

Levantei, me apoderei da garrafa de J&B e a levei para beber ali no sofá.

- Sem essa, Aristeu! Como você é chato, que inferno! Eu não sei como ainda moro aqui!
- Eu sou o seu ponto de equilíbrio, Fernando – me respondeu com olhar soturno.
- Papo de veado! Pode parando com essa merda! Você é meu lado burro e cego!

Aristeu se afastou, deixou a bíblia numa cadeira e foi ao banheiro. Após alguns segundos, tocou a descarga e saiu do banheiro.

- Você precisa de mim e precisa parar de beber!
- Não. Não preciso de você, não tenho que parar de beber – respondi acendendo um cigarro e terminando meu segundo copo.
- Já vai beber o terceiro! Você precisa de ajuda! Vamos à igreja, Fernando! É um bem que você faz a si mesmo!
- Pára de me chamar pra ir naquela merda! Caralho de cara chato!
- Eu não vou desistir de você, assim como Jesus nunca desistiu de mim.
- Amigão, Jesus desistiu de mim há anos! Desista! – falei girando o cigarro, fazendo espirais de fumaça.
- Não. Eu te amo – me olhou com olhar sereno.
- Que porra de olhar é esse?
- Eu amo você, Fernando. Amo sua alma. Não quero que ela vá pro inferno. Só não amo seus pecados.
- Já chega! – levantei do sofá – Você ta com veadagem pro meu lado! Uma coisa é ser cristão, outra é ficar de papo bicha pro meu lado. Não preciso do seu amor! Só preciso da outra metade das despesas desse apartamento. Dispenso seu amor, preocupação, pena, piedade e o caralho a quatro!
- Você tem coração de Pedra, Fernando. Coração duro como o de Faraó quando não quis deixar o povo de Deus sair do Egito.
- Seria bom se ele tivesse eliminado todo aquele povo. O mundo seria outro!
- Libertino e pecador, né? Assim seria o mundo!
- Amém!

Peguei a garrafa que apenas continha dois dedos de bebida e a levei pro quarto. Apaguei o cigarro no cinzeiro de motel que um dia roubei e voltei para a sala.

- Cadê a conta, Aristeu?
- Você não quer aceitar Jesus como seu senhor e salvador?
- Não, eu quero a conta.
- Você precisa de Jesus!
- Olha aqui seu filho da puta, eu quero que Jesus vá tomar no cu, me dá a conta – intimei levantando a gola de sua camiseta.
- Me larga! Eu vou chamar a polícia!
- Se você não me der a conta, vou te acusar por extravio de correspondência!
- Faça o que quiser! Mas eu vou chamar a polícia!

Ergui minha mão direita e encaixei um soco na cara dele.

- Fernando! Pare! Me solta!
- Cadê a minha conta! A internet está cortada e preciso do número do protocolo para pedir que eles conectem minha internet de novo!
- Pra quê internet? Pra quê isso?
- Pra entretenimento, comunicação e trabalho. Ah! E pra você bater punheta também!
- Você precisa de libertação! Jesus pode te libertar, sabia?

Encaixei um bom murro em seu fígado. Aristeu deu um salto para trás e desvencilhou do meu domínio. Corri atrás dele e lhe passei uma rasteira por trás. Ele tropeçou e ralou o joelho.

- Me deixe! Pelo amor de Deus! Você está bêbado!
- Aristeu, qual é o problema? Onde você escondeu a conta?
- Jesuuuuuusss! – clamou histericamente.
- Puta que pariu, que crente idiota!
- Isso é preconceito!
- Cala a boca!

Ele ainda estava deitado de barriga para cima e assim acertei a boca dele com um cruzado de direita. Das gengivas brotou sangue.

- Jesus, estou sofrendo pela sua palavra! Me ajude!
- Eu estou te batendo pela conta da internet! Não pela bosta da palavra de Jesus!
- Glória a Deus!

Enquanto ele se vangloriava de seu momento de martírio cristão, acertei dois tabefes em sua cara, deixando-a vermelha como uma manga madura. Ele permanecia em seu estado de júbilo enquanto eu começava a me cansar.

- Olha aqui Aristeu. Seja coerente. Por mais que a internet seja a besta e tudo mais, na bíblia diz que as pessoas adorariam a besta, não é?
- É sim – Aristeu concordou com poucas lágrimas deslizando pelas maçãs de seus rostos.
- Então, deixe que eu adore a besta!
- Não onde eu moro!
- Mas eu também pago! Se eu quiser adorar ao bode satânico eu posso!
- Você não faria isso!
- Faria. Só por pirraça! E ainda beberia o sangue dele! Ou só os crentes podem se banhar com sangue de cordeiro?
- Mas é o cordeiro de Deus!
- Foda-se.

Aristeu olhou para a gaveta da cômoda que fica na sala e fez sinal para que eu a abrisse. Abri prontamente e vislumbrei diversos livros. Apontou para um dos livros. Quando o abri, lá estava a conta da internet, com a autenticação do meu pagamento.

- Obrigado Aristeu. E vá limpar esse sangue.
- Você ainda vai mudar. Tenho certeza. Ah! E da próxima vez que me bater, vou acionar a polícia.
- Não importa. Deixa eu ligar pra central e confirmar o pagamento.

Peguei o telefone e liguei para a central de atendimento. Quinze minutos a internet conectou novamente. Sentei enfrente ao computador e tirei o atraso virtual, respondendo scraps, e-mails e lendo as últimas notícias da música.

- Céus, o Aristeu um dia vai ser internado num manicômio. Que cara louco! Marca da besta... – pensei enquanto um site demorava a carregar.

Ao anoitecer, liguei o som e coloquei o Dark Side of the Moon do Pink Floyd. Acendi mais um cigarro e finalizei os dois dedos de whisky que permaneciam na garrafa. Às duas da manhã, enquanto pegava no sono, ouvi barulho de teclas sendo tocadas. Levantei bruscamente e abri a porta lentamente.

- Porra! – sussurrei com raiva, pois havia batido a canela na quina da cama.

Olhei pela fresta e vi o monitor ligado. Aristeu estava apenas vestido em seu pijama, com postura encurvada e o rosto bem próximo ao monitor. Sua mão esquerda estava dentro da calça, em seu pau e a direita alternava entre o teclado e o mouse. Forcei um pouco a vista e visualizei cenas bizarras de sexo. De tempo em tempo ele olhava para trás e para os lados para se certificar de que eu não estava por perto. Olhei para a mesa da sala, a bíblia estava aberta, ao lado de um copo de água. Desisti da idéia de flagrá-lo e voltei para a cama, passando a mão na canela machucada. Peguei no sono minutos depois – eu estava consideravelmente bêbado – e Aristeu continuava na sala, abafando até os pigarros, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Ao acordar, lá pelas onze da manhã, Aristeu estava dormindo no sofá, devidamente vestido com seu pijama. O cansaço da discussão e da epopéia pornográfica da madrugada o fazia babar muito e roncar de forma moderada. Olhei para a bíblia na mesa e ela estava aberta no livro de Apocalipse, capítulo 21, versículo 8.

"Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte"

No final das contas, o mentiroso terá o mesmo lugar que o homicida.

- Como isso pode ser chamado de justiça? – pensei ao pegar o copo vazio que ele deixou na mesa.

Ao me dirigir para a cozinha, olhei Aristeu em repouso, inofensivo. O sono do perverso, do mentiroso. Até quando?

- Todo homem tem seus segredos. E como já dizia a bíblia, não há segredo que não venha a ser revelado. Pobre Aristeu. Pobres crentes – pensei, abrindo a torneira para lavar a louça.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Amarelo Mostarda

quando o papel se abre, eis o desafio
são poucos os segundos que nos separam
de uma genialidade
ou de uma estupidez
vislumbro a mostarda e queria meus dias
amargos e saborosos como ela
dias amarelo mostarda
quando andava sem camisa em cima de muros
de telhados e sonhos
quando não via futuro, quando tudo era
muito riso e pouco ciso
quando a vara de bambu saiu da bíblia direto para as minhas costas
quando a barata interviu na ceia e parou uma oração
quando jogávamos futebol em campos de cuspe
quando devíamos e não temíamos

dias amarelo mostarda
não voltarão
dias se tornam vermelho sangue
dia após dia
e a trilha se estreita
assim como queria o homem que um dia foi tudo
e hoje nem sei quem é
ando uma trilha estreita
mas não vou morar no céu
na estrada só cabe um pé
mesmo assim
não vou morar no céu
no seu céu sereno
serenatas e cerejeiras

será? será o que?

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Luta ou Morte!

os deuses estão loucos
a guerra chegou
e você veio com ela

luta ou morte - um deles disse.
mas eu quero casar!
vocês irão brigar - disse com olhar vago mirando as nuvens.
mas nunca brigamos! - respondi.
mas um dia brigarão.
não aceito isso.
CERTO. então você vai morrer!
como assim?
luta ou morte, oras.

os deuses da guerra estão loucos
imposições voluntárias
de um destino involuntário
malditos deuses!

(vida, minha vida... olha só o que é que eu fiz...)

Like a Leper Messiah

me abrace mendigo!
toma um cigarro, pobre diabo!
me envolva leprosa!
você cheira como banheiro feminino
em dia de menstruação
e essas pintas brancas em sua pele
será que serão minhas, em minha pele?

lepra no braço
lepra na coxa
sou coxo
deitado no colchão
pensando no coxão
abraçado à colcha
pisando em conchas
pensando em coisas
dessa lepra cerebral

o abraço da leprosa
me fez imundo
por sete anos
não, pela vida toda
lepra cerebral
que caiam um por um
meus pensamentos
sobre o chão empoeirado
dessa Jerusalém de ninguém
até que o messias me diga
"vai-te em paz, estás limpo"

onde está o seu messias?

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Entranhas Amargas

Acho que morri em algum lugar por aí
Minhas tripas estão em algum lugar por aí
Foi uma morte cruel que não lembro
E finalmente morri

E só fui avisado sobre minha morte
Pelas aves de rapina
Que reclamaram do gosto sofrido e amargo
Das minhas entranhas

- Tem gosto de jurubeba! - diz um abutre.
- Não, ele tem gosto de café torrado! - discorda o urubu com uma ferida no pescoço.
- Sem essa, gente, ele tem gosto de casca de limão! - diz o condor.
- Ô, ô! Calma aê! - eu interrompo - Que putaria é essa?

Olhem onde cheguei
Morto por não-sei-o-quê
E as aves de rapina confabulando sobre meu sabor
Eu não esperava por isso
Não queria que fosse assim

Mas meu corpo ainda mexe
Eu sinto
Mas algo está morto em mim
Eu sinto
Que diabos está acontecendo?

sábado, janeiro 05, 2008

Jéferson Peninha

A Liberdade é de fato um lugar de liberdade. Enquanto calçadas se esforçam em comportar tantas mesas cheias de cervejas e petiscos, rodeadas de pessoas sorridentes, a palavra liberdade como conhecemos, pula do abstrato para o concreto em segundos. Concreto envelhecido e lascado. Concreto pichado e judiado. Judiado como os vagabundos e loucos que desfilavam por entre as mesas, exibindo uma habilidade incrível de se desviar de obstáculos, garçons, cadeiras e ombros. Mas Jéferson Peninha não mostrou aptidão para desvios bruscos e chocou-se contra meu ombro. Olhei pra trás e olhei para seu rosto. As rugas havia tomado conta de sua face, mas havia uma jovialidade inegável em seu sorriso.

- Desculpa aê - disse Peninha estendendo as mãos para mim, em cumprimento.
- Opa, fica tranqüilo - disse eu, estendendo minha mão aceitando as escusas dele.
- Tô um pouco desorientado, saí há pouco tempo da prisão. Matei um homem ali naquela esquina - disse, apontando para a esquina da rua dos Estudantes com a rua Galvão Bueno - mas hoje não mato mais ninguém, tô velho.
- Por que você matou?
- Dedo-duro tem que morrer.
- Ah sim...

Jéferson Peninha continuou suas narrativas, em pé, com um copo de cerveja nas mãos (que ele conseguiu da nossa mesa após fazer uma mágica incrível), sempre fazendo questão de mostrar um estilete enferrujado que segundo ele, era pra jogar no pescoço de vacilão. Mas na verdade o que vacilava era seu equilíbrio, que vez em outra falhava, fazendo-o balançar um pouco para o lado oposto ao meu. E balançando como um João Bobo, ele apontou para o prédio Regente Feijó:

- Tenho uma filha que mora ali! No quinto andar, pode procurar, ela é "modela". Esteve em Madri... você tem que ver os armários que saem juntos dela! Cheia de guarda-costas!
- Mas você não fala com ela? - perguntou minha amiga, Tálita.
- Ela não quer saber mais de mim! - respondeu fazendo com as mãos um gesto de desprezo.
- O que importa é a saúde - eu disse tentando amenizar a situação.
- Mas eu já fui o maior traficante aqui da região! O Glicério todo era meu! - disse com orgulho estampado no fechar do olhos e com semblante austero.
- Até a polícia pegar né? - Thiago, outro amigo meu. lançou.
- Me deduraram! Eu andava tranqüilo pelas ruas, sempre com um "oitão" na cintura e uma PT na bota! Sempre andava com um sobretudo preto e botas. Eu fazia a polícia dar marcha ré! Aqueles "cascavél", carro preto, vermelho e branco. Eles me olhavam com a mão nos bolsos e recuavam!
- Caralho! - eu exclamava pra passar algum interesse (apenas a Tálita prestava alguma atenção, enquanto o Thiago começava a ceder para o álcool).
- Matei o dedo-duro. Fiquei preso por catorze anos, seis meses e oito dias no Carandiru. Pavilhão 9. Ali só tinha bandido fodido. - contou, mostrando o antebraço riscado por uma cicatriz de estilete - Quase morri lá, algumas brigas. No pavilhão 6 estavam os "estrupadores", menininhas, mocinhas, "mulherzinhas", só os protegidos. Se fosse no meu pavilhão, passava o estilete na barriga! - continuou contando, agora levantando a camiseta e mostrando a barriga cortada por faca, centímetros acima do umbigo.

Continuávamos bebendo a cerveja, enquanto as pessoas de outras mesas nos fitavam, parecendo pensar qual seria o motivo da gente dar tanta trela para um mendigo. E meio às suas histórias, cortavamos as narrações com comentários breves, ou expressões monossilábicas. Às vezes me distraia com o clima fervilhante do bar, que estava lotado de trabalhadores, bandidos e putas. Observei um negro com uma touca branca de lã, que eu jurava ser um muçulmano. Mas logo dispensei minha concepção ao vê-lo esfregar a mão por debaixo da saia de uma puta, rindo com um cigarro repousado ao lado da boca. O Peninha mais tarde me disse que ele é conhecido como Chocolate e é um dos piores bandidos da região. Assim está melhor. Peninha detalhava cada história com uma malandragem que eu havia sacado: quanto mais tempo ele nos tomava, mais cerveja ele tinha pra mendigar da nossa mesa. Ignorei a malandragem amadora dele e continuei observando as pessoas. Em meio à exaltação de risadas despreocupadas de uma sexta-feira, que nem a chuva que caía maliciosamente estragava, uma mulher se destacou como uma chama em meio às cinzas. Não por sua alegria. Não havia sorriso no rosto dela, mas havia uma angústia assombrosa em seu rosto. Rosto que era de uma beleza poucas vezes vista, com incrível harmonia de espaço entre os boca, nariz, olhos, sobrancelhas. Seu cabelo loiro despencava em cachos teimosos, teimavam em ser belos. Ela se estendia na possível altura de um metro e setenta e cinco centímetros, exibindo curvas caprichosamente colocadas numa silhueta inebriante. Anéis adornavam seus dedos longos e elegantes, dedos estes que pegaram o celular que tocava. Ao falar, consegui ver seus dentes perfeitamente alinhados e brancos como nuvens de um dia ensolarado. Sua fisionomia orgulhosa foi substituída por uma que emanava uma mistura de raiva e decepção. Deus, quem a decepcionaria? A beleza dela me enjoou como um doce comido em excesso e logo voltei minha atenção para o Peninha e sua boca sofrida cheia de dentes tortos.

- Já matei muita polícia!
- Mas eram maus, não eram pais de família, né? - perguntou Tálita
- Siiiim, siiim, eram maus, filhos das putas! - respondeu imediatamente

Peninha olhou para o Thiago, apertou seu braço:

- Esse aqui ía lutar bem na cadeia!
- Quê isso... - Thiago disse tímidamente com cabeça baixa e sorriso vago.
- Hahahaha! Ía ser mocinha na cadeia! - Tálita se exaltou
- Não, não! Do meu lado não! Se ele tiver comigo, ninguém mexe nele! - Peninha interrompeu, erguendo o rosto, com ar de proteção.

Jéferson Peninha continuava alcançando memórias dos mais profundos abismos de sua mente. E de repente, com olhar soturno, sugerindo uma lembrança amarga, confessou:

- Existe um crime que me arrependo. Só um! - dizia olhando para baixo - Matei uma menina de 12 anos. Ela me pediu de joelhos para que eu não matasse o pai dela: "Por favor! Não mate meu pai!". Eu peguei a menina e coloquei a arma em sua cabeça. A polícia já estava lá embaixo, com um megafone o coronel gritou: "Peninha, se renda!". Eu atirei na menina e joguei o corpo dela do quinto andar. Negociei com a polícia e entreguei as armas. O coronel pessoalmente colocou o grampo nas minhas mãos e me levou. Paguei a fiança com a grana que tinha do tráfico e o cigano estava solto de novo!

De repente uma discussão sobre crimes afinçáveis se estabeleceu. O Edu que estava na mesa conosco, discordou de algo que o Peninha falou. O nosso amigo das ruas ficava ameaçando lançar a "cigana voadora" no pescoço de Edu. A "cigana voadora" consistia em lançar de forma certeira o estilete enferrujado na garganta do oponente. Tálita comentou em alta voz que se não matasse pelo corte, mataria pelo tétano. Peninha sorriu e apontou para ela:

- Você é inteligente! E bonita! Podia ser "modela"! Se fosse "modela", seria seqüestrada. E eu seria o primeiro a seqüestrar!

Todos caíram na risada. Jéferson Peninha ficou indignado com a cerveja e disse que sairia pra buscar cachaça, porque cerveja não funciona com ele. Aparentemente seriam os últimos momentos dele conosco naquela noite, ainda mais quando nos disse:

- Não entrem no crime. A vida do crime não compensa.

Mas embora ele tenha saído, às vezes voltava pra comentar algo, para dizer quem era quem naquele bar. Pra cerrar nosso cigarro. Pra apontar alguma mulher gostosa que passava pela calçada tumultuada.

- Você viu os peitos daquela morena? Nossa vou chupar eles! - disse Peninha com sorriso excitado.
- DUVIDO! - disse eu para atiçá-lo a fazer a merda, para ver o circo pegar fogo.
- Duvida? Então tá bom! - respondeu se dirigindo à morena.

O que aconteceu depois não deu pra ver, pois ele a seguiu até entrar num bar.

Jéferson Peninha é uma figura odiada por garçons e amada por jovens daquele cenário. Mas perambula como uma alma penada pelas calçadas daquela região, flutuando como uma leve pena, uma peninha de um imundo pombo. Sujo, esquecido e aflito por lembranças que ele não sabia se eram histórias ou estórias. Lembro da última coisa que ele me disse:

- Porra! Fui deitar ali no banco da praça e os "urubu" mandaram eu sair de lá! Barrrrrrbaridade!