terça-feira, fevereiro 26, 2008

Gelo, Porra e uma Iguaria Bizarra

Sobrancelha arqueada e testa franzida. A fumaça entrava maliciosamente, cheia de curvas, pelas narinas de Alfredo. "Deve haver um lugar pra mim nessa cidade", pensava o homem sinistro que aparentava - pelas rugas profundas e olheiras escuras - bem mais que seus vinte e sete anos. Os dentes não eram radiantes como na infância e ele pensava nisso enquanto esfregava os dentes da frente com o dedo indicador. Olhou para o chão e alcançou o maço caído, dedilhou o interior da embalagem e encontrou um cigarro. Engatilhou o coitado na boca e o acendeu rapidamente. A janela de vidro estava fechada, e ficou assim por alguns instantes, enquanto Alfredo repousava sua testa no vidro e a fumaça se elevava, encobrindo a sua vista com uma espessa e irritante neblina, afinal, a vista estava perfeita aquela noite.

- São Paulo não costuma ser tão bela nesse horário, aliás, que céu! Dá pra ver estrelas! - falou impressionado, enquanto afastava a névoa com as mãos.

Soltou um pouco de fumaça pelo boca e nariz ao mesmo tempo e deu uma cusparada. Olhou o trajeto do cuspe em queda livre até que o mesmo se partiu em dois, se chocando contra o telhado de uma casa à frente do prédio. Fumou o cigarro até queimar o dedo, até o gosto do fumo ficar insuportável. Lá na rua, um carro não respeitou o cruzamento e quase carregou uma moto pela avenida.

- Por Cristo, que filho de uma puta! - murmurou enquanto lançava o filtro pela janela.

Foi até o banheiro e lá na banheira havia água e gelo, muito gelo envolvendo garrafas de vodka e de cerveja. Coçou a cabeça e fitou por alguns segundos - olho fixo - a tampa vermelha de uma garrafa de Smirnoff. Até que sacudiu a cabeça num despertar repentino e se curvou para retirar uma garrafa verde de Heineken. Apoiou a parte de baixo da tampa na quina da pia de granito e bateu com força no topo da garrafa, fazendo a bela tampa soltar da garrafa, como uma magia. E a magia acabou quando a graciosa tampa desfaleceu ao lado da privada. Grande destino, tampa. Caminhou como uma marcha para a morte, olhando para os detalhes de infiltração na parede do corredor. Apagou a luz.

- Merda de infiltração - sussurou - um dia dou um jeito nessa porra.

Deu um gole generoso em sua cerveja meio-amarga e seguiu até a sala. Olhou para os rasgos do sofá e sentou no infeliz móvel de couro fajuto. Cruzou as pernas e olhou para o teto.

- Esse sofá - falou com desânimo incontestável - um dia compro um de couro legítimo.

Soltou um peido e com certa dificuldade, ergueu-se e rumou para a janela. No meio do caminho, olhou para o toca-discos. Voltou-se para o aparelho de som e abriu o protetor de acrílico. Levantou o braço do aparelho e aproximou o seu rosto da agulha e ficou alguns segundos olhando para cada detalhe.

- Seja lá quem diabos inventou essa porra, ele é um gênio.

Devolveu cuidadosamente o braço ao suporte e abriu sua caixa de discos. Passou os dedos por várias capas. Fechou os olhos e continuou o passar de dedos.

- Pronto! Este aqui. Vejamos...

Era Highway 61 Revisited, do Bob Dylan.

- Bob, essas sua camisa é um sucesso... quem será esse cara atrás dele, com uma câmera fotográfica nas mãos? - disse Alfredo passando a mão com carinho pela capa de papelão do LP.

Cuidadosamente tirou o vinil do plástico de proteção e caprichosamente o instalou no prato giratório. Levantou o braço do aparelho e o disco rodou, como um pião nas brincadeiras de sua infância amarga. Suavemente, despejou a agulha sobre o disco e o ruído inicial, fetiche de qualquer apreciador de um bom som, serpenteou pelo ar, entrando pelos seus ouvidos, fazendo-o sorrir timidamente. A harmonia perfeita de 'Like a Rolling Stone' flutuava em sua introdução magistral, até que Alfredo sentou no chão e ensaiou um choro.

- Pai...

Levantou-se e ergueu o braço até agarrar um maço novo de Lucky Strikes. Violou o lacre e cheirou o conjunto de cigarros novos. Cheiro de chá fresco. Retirou um Lucky e com classe o colocou na boca, fazendo-o girar de uma extremidade à outra. Acionou o isqueiro e baforou uma coluna de fumaça. A Heineken estava acabando. Enquanto Dylan cantava, ele voltava ao banheiro ou melhor, à banheira.

How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown
Like a rolling stone?


- Pode crer, Dylan! Sozinho, man, sozinho! - gritou erguendo e cerrando o punho direito.

Abaixou as calças e mijou olhando pra trás, mirando as garrafas. Selecionou a Smirnoff e desrosqueando a tampa, sentiu seu pau ficar duro. Olhou para ele e acariciou o membro por alguns segundos. Começou uma punheta lenta, jeitosa, enquanto dava goles na vodka gelada. Sentou-se no chão do banheiro e começou a pensar na ex-cunhada.

- Por que não comi aquela gostosa?!

E ficou lentamente segurando seu pau, num vai-e-vem sensual e precavido. Queria prolongar o prazer, nada de punheta precipitada de adolescente. Fechou os olhos e vislumbrou sua ex-cunhada Gisele, de quatro, com aquele rabo escultural em sua cara, oferecido como oferenda valorosa, pronto pra ser penetrado, centímetro por centímetro, cada um dos dezessete centímetros de seu pau dentro do cu apertado dela.

- Na praia, quando eu a flagrei pelada no quarto, enquanto se trocava... puta merda! Ela nem reclamou, nem gritou... Deu uma risada e eu, cabaço, pedi desculpas de pau duro! BURRO! - gritou Alfredo, aumentando a intensidade dos movimentos da masturbação.

Acalmou os nervos com mais dois goles da vodka e novamente estava aproveitando cada pensamento, cada fantasia com a Gisele, a ex-cunhada gostosa. Gotas de suor deslizavam sem cessar de sua cabeça e em poucos minutos seu peito exibia manchas vermelhas, enquanto a cabeça do pau estava lambuzada pelo líquido seminal pré-ejaculação. A densidade dos gemidos se alternavam com o baile das formas que a fumaça do cigarro projetava. Ele não aguentava mais. Levantou-se e num urro de alívio, gozou com abundância poucas vezes vista. Gozou dentro da banheira de gelo.

Após limpar o pau, ele estava completamente relaxado e alegre pela bebida. Abriu mais uma cerveja e Dylan permanecia na sala, com sua voz inconfundível.

Well, I wanna be your lover, baby
I don't wanna be your boss
Don't say I never warned you
When your train gets lost


Ao ouvir a música, olhou para a foto de sua ex-namorada, que também é irmã da ex-cunhada gostosa. Agarrou a fotografia e apertou-a com desespero. Lágrimas rolavam pelo seu rosto e ao limpá-las com raiva, lançou a foto no chão.

- Eu tinha tudo, sua filha de uma puta! Você era tudo pra mim! Maldita!

Cuspiu na foto amassada e correu até a cozinha com seu pau mole balançando. Abriu a geladeira e a fechou. Velha mania dos tempos de fome, quando de dez em dez minutos, abria a geladeira na esperança de que alguém com bondade suficiente tivesse deixado algum alimento. Era sempre a mesma ilusão. E Alfredo lembrou dessa época. Voltou para a sala e sentou sua bunda desnuda no chão frio e olhou para um quadro, pendurado no centro da sala. Um barco velho e um pescador o empurrando. Uma paisagem incrível ao fundo.

- Carlinhos, meu irmão...

Pegou o quadro e o abraçou. Sentou-se de novo, e como um pai acolhe o filho, acolheu o quadro e o acariciou. De repente, lançou o quadro na parede, fazendo o mesmo se despedaçar em vários pedaços. Viu que havia silêncio na casa. O lado A havia terminado. Virou o disco com cuidado e ouviu a voz de Dylan regredir com seu descaso e inquestionável brilho. Com os olhos marejados, perambulou bêbado até o quarto e encontrou Mariana nua na cama. Ela havia bebido demais, mas se recuperava e recobrava a consciência.

- Fredo, que porra é essa? Tá chorando por quê?
- Me abraça, babe. Só me abraça!
- Mas...

Mariana era uma drogada, sofrida como o Alfredo. Aparenta uma idade bem superior, mas mantinha uma sensualidade honesta e sim, era bem atraente, embora seu braço fosse marcado por manchas roxas, bem distribuídas. Estava bebendo junto ao amigo, mas apagou em meio à gargalhadas.

Alfredo pulou na cama e se encolheu, puxando os braços da amiga para si. Mariana estava confusa e enquanto mirava a nuca do triste companheiro, cedeu à pressão e o envolveu em seus braços.

- Por que está chorando?

Alfredo não respondeu. Apenas se aconchegou. Enquanto se aconchegava, Mariana esqueceu do estado sofrível do amigo, desejando secretamente o seu corpo.

- Fredo, não faça nada do que vá se arrepender...
- Fazer o quê?
- Você sabe...
- Eu não sei de nada, Mari.

Enquanto Mariana desfalecia em constrangimento, seu amigo permanecia encolhido, como um animal acuado, fechado e decidido a permanecer daquele jeito.

- O que você tem, Fredo?
- Dá pra você me abraçar, porra?
- Tudo bem, mas tá muito estranho.

Mariana sentia sua calcinha umedecer. Foram raras as vezes que teve alguma experiência sexual com o amigo. Um sexo oral rápido, mas sempre embriagados. Nada que pudesse lembrar direito. Agora ela estava num pós-porre consciente, poderia conseguir algo.

- O que você está fazendo, Mari?
- Relaxa, Fredo...

Mari levou sua mão até o pau do amigo e começou a masturbá-lo. Alfredo arregalou os olhos, mas logo voltou ao seu ritual soturno de pranto. Mas enquanto suas lágrimas desciam, seu pau subia, de forma estranha. Ela saiu de trás e se postou à frente da triste figura do parceiro até encaixar sua boceta no membro rígido e roxo. Alfredo chorava, mas logo estava executando o vai-e-vem como se fosse uma trepada normal. Gozou dentro dela. Não tanto como na banheira.

Bob Dylan estava firme e forte, como um trovador de interior, cantando os versos de 'Desolation Row'. A melancolia estava no ar e Alfredo lentamente retirava seu pau das entranhas meladas de sua amiga.

- Gostou, Fredo?
- Vá se foder.
- Como assim?
- Já conseguiu o que queria, certo?
- Você é louco...

Alfredo se levantou com porra escorrendo pela extensão de seu pau, descendo até ao saco, agarrando-se nos pêlos escuros. Adentrou o banheiro e abriu outra garrafa verde de cerveja. Deitou sem cerimônias na banheira, em meio aos cubos de gelo e algumas garrafinhas que sobraram. Tremeu muito e arrepiou-se de um extremo ao outro. Deu um grito de insatisfação e cerrou os olhos.

Mariana levantou-se da cama e deu passos apressados em direção ao banheiro.

Right now I can't read too good
Don't send me no more letters no
Not unless you mail them
From Desolation Row


Alfredo olhou a sombra da amiga cada vez maior. Segurou o secador de cabelos e o ligou.

- Não, porra! Não! - gritou Mariana começando uma corrida.

Lá da sala, o solo desconcertante de gaita rolava solto. Era o fim do disco. Era lindo.

Alfredo soltou o secador e a lâmpada do banheiro e do corredor piscaram com força. Faíscas voavam para todos os lados, num espetáculo de horror. Mariana aterrorizada, brecou sua corrida e andou rapidamente de costas, tropeçando. Caiu nua, pasma e paralisada.

- Meu Deus do céu! Meu Deus do céu!

A amiga rastejou, tentando levantar-se e, ao conseguir, correu até a cozinha. Abriu a pequena porta do registro geral de energia e o desligou. Ligou para o 192 e foi ao banheiro desligar o secador da tomada. Voltou à cozinha e ligou o registro novamente. Vestiu uma bermuda cinza e uma camiseta do Queen. Olhou para o estado deplorável do amigo e chorou.

- Fredo, Fredo... esse era o meu lugar, idiota! Eu não tenho nada, ninguém. Pra quê tudo isso? Esse era o meu lugar!

Mariana agachou-se ao lado da banheira e abaixou os cabelos arrepiados do amigo. Os olhos dele estavam arregalados e ela tentou fechá-los, sem êxito. Chorava muito, em plena confusão de sentimentos e lembranças. Foi até a cozinha e pegou uma faca afiadíssima e voltou ao banheiro. Levantou a perna de Alfredo até visualizar a coxa magra do amigo. Passou com destreza a lâmina da faca na parte inferior, que estava dura, graças à abundância de gelo contida na banheira. Conseguiu destacar uma lasca da coxa do amigo e sem pensar duas vezes, colocou entre os dentes. Mastigou a carne doce e dura do companheiro, sem o mínimo sinal de ânsia. Estava ávida pela iguaria bizarra.

A campainha tocou.

Mariana ignorou o alerta que soava da porta e permanecia fatiando a perna de Alfredo e a consumindo, cada vez mais e maiores pedaços.

O enfermeiro tentou a maçaneta e viu que a porta não estava trancada. Com passos curtos e silenciosos, entrou pela cozinha. Olhos para os dois lados e permaneceu caminhando até ganhar a sala. Quando pensou em chamar alguém, Mariana, completamente descontrolada, surgiu à sua direita e o esfaqueou nas costas.

- Mas que diabos... - praguejou o enfermeiro caíndo de joelhos.

Mariana deu mais quatro facadas nas costas do pobre enfermeiro e o deixou na sala, agonizando em seus últimos suspiros. Correu até a cozinha e trancou a porta. Se dirigiu ao quarto e dentro de uma caixa comemorativa do Lucky Strike, apanhou um três oitão. Conferiu o tambor e lá estavam as oito balas brilhantes.

A campainha tocou novamente. Era o outro enfermeiro, que havia ficado na ambulância para retirar a maca.

- Puta que pariu, cadê o viado do Gilberto? - questionava o enfermeiro sobre o seu colega de trabalho esfaqueado.

Mariana pegou um pino de cocaína e arrumou rapidamente uma carreira desleixada. Aspirou com força todo o pó, ficando com rastros brancos no buço e na ponta do nariz. Tremeu e de um suspiro violento. Alcançou a arma e num rápido movimento, colocou o cano apontado para o céu da boca. Apertou o gatilho.

O estrondo da barulhenta arma de calibre trinta e oito, fez o enfermeiro que estava tocando a campainha ligar para a polícia.

Em doze minutos dois policiais estavam na porta, juntos ao enfermeiro, tocando a campainha. Em três minutos de curta paciência, um dos soldados arrombou a porta. Com armas em prontidão, apontadas para a frente, os policiais faziam movimentos bruscos, vasculhando cada canto. Chegaram à sala e um dos policiais contemplou o corpo ensangüentado do enfermeiro esfaqueado.

- Chame uma ambulância - avisou um dos policiais.
- Já temos um enfermeiro vivo aqui - retrucou o outro policial.
- Aquilo ali? - treplicou o policial apontando para o enfermeiro trêmulo e pálido no canto da sala.
- Tudo bem, vou chamar a ambulância.

Um dos policiais correu até a viatura estacionada afim de chamar a ambulância. Dentro da casa, Mariana, que havia atirado para cima num acesso de loucura, apareceu na sala, sorrateira e enxergou o policial de costas olhando para os pequenos detalhes da sala, revistando a varanda à procura do homicida. Quando o policial voltou de sua revista, deu de cara com Mariana, descabelada e rindo de forma malévola, apontando a arma contra o policial.

- Calma, minha senhora. Muita calma - o policial tentou amansar.

Mariana sem responder aos apelos, deu dois tiros no peito do policial, que ao cair, olhou para o próprio peito, e apagou. O enfermeiro que havia presenciado a cena, estático, deu um salto e correu para fora de casa, berrando.

- Viadinho de merda! - gritou Mariana ao ver o enfermeiro escandaloso fugir de sua vista.

Ao ouvir os passos na cozinha se aproximando, Mariana não hesitou e apontou novamente o cano para o céu da boca. O policial chegou e apontou a arma em direção à ela.

- Largue a arma! - ordenou o policial.

Mariana acenou em despedida para o policial e apertou o gatilho.