quinta-feira, julho 19, 2012

Dois Milagres


Chovia muito lá fora.

- Não sei, cara. Não sei se tenho uma ideia de mulher perfeita. Pra ser sincero, não ando muito seletivo - teci meu comentário sobre o velho assunto desgastante.
- A ideia da mulher perfeita nos leva ao amor. O amor pra mim não existe. É um mito criado no decorrer da evolução humana. É simples assim. Os animais não amam. Se reproduzem e saem fora pra caçar, sei lá - Ernesto é a frieza em pessoa, pragmático ao extremo, um cientista do subterrâneo. Jamais se apaixonou.
- Se uma cabrocha casasse com um pedaço de gelo, teria mais emoção do que casando com você - Artur replicou enquanto levantava para ir ao banheiro - Vou mijar.
- Eu só acho que os sentimentos que não são instintivos são superestimados pela sociedade - Ernesto continuou com a voz mais baixa.
- E o que você diz dos pinguins e sua fidelidade? - desafiei enquanto meu olhar passeava pela sala em busca do maço de cigarros.
- Isso é uma necessidade devido ao ambiente que eles vivem. Devido ao esforço da fêmea ao botar um ovo. O macho cuida de tudo porque quer garantir a continuação da família, instinto que qualquer animal tem.
- Do que vocês estão falando? - Artur voltava do banheiro.
- Fidelidade dos pinguins - respondi enquanto acendia o cigarro.
- Deixe eu terminar - interrompeu Ernesto - E desde quando fidelidade é amor? O cachorro é fiel ao homem por instinto, a genética dele foi modificada ao passar do tempo, desde quando o homem começou a domesticar esse animal.
- E por que o amor não pode ser transformado em instinto? - Artur parecia mais irritado que curioso.
- Pra mim o amor é fruto de uma mente evoluída. O cérebro humano à partir do momento que pode pensar e criar, pode criar ilusões relacionadas aos instintos. Temos o dom de complicar as coisas.
- E como você acha que os seres humanos deveriam viver? - era minha vez de perguntar, ou melhor,  provocar.
- Artur, me passe a garrafa de licor, por favor - pediu Ernesto enquanto se acomodava no sofá.

O licor era de chocolate, bebida que eu julgava fraca. Mas era um deleite para Ernesto, que tinha suas peculiaridades. Ernesto despejou uma boa quantidade do líquido leitoso e escuro em seu copo e continuou:

- O que eu acho? Se dependesse de mim, todo mundo transaria só pra reprodução e claro, teríamos que reproduzir muito, engravidando várias mulheres.
- Eu não consigo imaginar o mundo assim. A mulher só seria comida se estivesse no cio? Não, obrigado. Prefiro a putaria humana mesmo - Artur falava em tom jocoso, abrindo sua caixa de cigarros.
- E você, Artur? Tem alguma ideia de mulher perfeita? - eu era o maldito moderador da conversa.
- Eu sou um maldito romântico, tenho que confessar.
- O que isso significa? Está esperando achar uma princesa encantada nos puteiros que você frequenta? - Ernesto despejou ácido como resposta aos deboches.
- Você com essa maldita cara de Matt Dylon, sempre com esse sorrisinho tímido no rosto... não tem muito o que dizer de mim.
- O que tem a minha cara com o Matt Dylon? E o que essa suposta semelhança tem a ver com o assunto? Estou confuso - Ernesto exibia o sorriso descrito por Artur.
- Esqueça - pigarreou por alguns segundos e continuou -  Minha mulher ideal tem o corpo e o rosto da Helena Ramos nos tempos áureos.
- Quem diabos é Helena Ramos? - interrompi o diálogo tentando buscar essa mulher em meu arquivo mental.
- Você não conhece a Helena Ramos? Nunca viu nada sobre Helena Ramos? - Artur se exaltava impressionado, como se visse um matemático que não soubesse somar.
- Não, nunca ouvi falar. Você já ouvi falar dela, Ernesto? - joguei a peteca para meu amigo.
- Nunca vi mais gorda - um resquício de licor se alojava ao lado da boca de Ernesto. Não me manifestei.
- Gorda? Vai se foder, Ernesto! Ela é a musa da pornochanchada! Ela é maravilhosa! - falando isso, puxou sua carteira do bolso traseiro e puxou um papel dobrado.

Artur abriu o papel e exibiu orgulhoso uma foto de Helena Ramos mal impressa por uma impressora jato de tinta.

- Você é um maníaco, Artur - Ernesto já não tinha mais o sorrisinho no rosto. Estava claramente chocado.
- Por Deus, Artur, que porra de foto é essa em sua carteira? Seu pervertido! - ao dizer isso, estendi meu braço e tentei capturar a foto, mas ele com reflexo felino escapou do meu bote.
- O que foi? Qual é o problema? - perguntava defendendo a foto, abraçando-a - Problema seria se fosse um homem, seus linchadores de idosos.
- Você é um garoto punheteiro, apenas isso - respondi com feição perplexa.

Artur devolveu a foto à carteira e sentou no chão.

- Ela é ou não é linda?
- É, realmente é maravilhosa. A típica gostosa brasileira.
- Então, essa é a mulher perfeita, falando da parte física, é claro - Artur fez uma pausa e quando Ernesto ia começar a falar, fez um gesto com a mão direita, como se pedisse a palavra - Ainda não terminei, Ernesto, seu falastrão. Odeio que me interrompam, você não faz ideia disso, camarada.
- Fique a vontade e me poupe disso tudo... - Ernesto levantou-se e foi ao banheiro novamente.
- A minha mulher ideal teria que cantar como a Elis Regina. Teria que cantar os versos de "Me Deixas Louca". Eu fico embriagado quando ouço a Elis cantando essa música. Ficaria em estado de ataque se uma mulher cantasse essa música pra mim.
- Estado de ataque? - Ernesto questionou em voz alta, direto do banheiro.
- Um estado diferente do estado vacilante em que você frequentemente vive.

Ao terminar sua resposta em voz alta, Artur continuou:

- O estado do verdadeiro homem primitivo, diante de sua caça. Louco, faminto pela carne de sua presa. Acho que é isso... Isso que é instinto, Ernesto! Eu, Artur Gonçalves, louco pelas tenras carnes de um híbrido de Elis Regina e Helena Ramos. Deus do céu, quem me dera... - literalmente Artur suspirou e desabou no sofá após tamanho discurso emocionado.

Eu já havia deixado de ficar chocado há tempos com essas reações e palavreado démodé do Artur. Ele é um bom rapaz, sempre com lapsos de grandes ambições, que acabam sufocadas por sua personalidade acanhada. Ele apenas fica a vontade entre amigos. Diante da sociedade é um ser obscuro e desconfiado.

- Pois bem, meus amigos, - me ergui do sofá e com um copinho de cerveja à mão e pedi a atenção para mim - eu preciso contar sobre uma mulher. Ela não é perfeita, mas se trata de um perfeito equilíbrio. Ela existe, mas é uma confusão extrema. A intensidade de tesão que sinto por ela é a mesma do desespero que ela me faz sentir, esse é o equilíbrio.
- Como assim desespero? Ela tem enfiado o dedo no seu anel enquanto trepam? - Artur perguntou em tom de sarro.
- Não, não... Antes fosse! Daria meu cu pra ver esse desespero sumir. Mas a merda está feita e como sempre, me envolvo com cadelas desgraçadas, sem sentimento algum ou então com sentimentos demais.
- Isso é verdade! Eu nunca vi alguém para atrair tantas mulheres vis! - Artur continuava interagindo.

Ernesto ficava observando, esfregando o queixo com dois dedos, com aquele sorriso discreto no canto direito da boca, analisando a história.

- Enfim, é uma jornalista lá do Sul. De Santa Maria. Rio Grande do Sul. Dos pampas. Terra de veados. Terra de Getúlio!
- Tá, tá... Sabemos disso tudo. Continue! - Ernesto quebrou seu silêncio.
- Pois bem, eu a comi. Foi uma cilada! Eu juro! - resolvi dar uma pausa para acender um cigarro. Esses assuntos pedem um bom cigarro.
- Cilada? Como assim, homem? Pare de fazer suspense e seja direto! - Artur estava ansioso, inquieto.

Soprei uma boa quantidade de fumaça em direção ao rosto de Artur e o observei tentar se desvencilhar dos jatos acinzentados.

- Ela me chamou para sua despedida, um almoço na casa dela, numa sexta-feira. Eu pensava que seria uma reunião entre amigos dela e não vi problema algum, afinal, é sempre bom aumentar nossa lista de contatos. Fui na melhor das intenções, juro! Nunca havíamos tido nada, nem sequer um beijinho, tudo estritamente profissional. Levei um livro de presente, com dedicatória e tudo mais. Ao chegar no apartamento dela, apenas o tio gay dela estava lá. O tio é o dono do apartamento, ela apenas estava hospedada lá.
- O tio quis te comer? Quis participar ao menos? - Ernesto e aquele maldito sorriso na boca, no canto direito.
- Vou ignorar essas perguntas e continuar a história, seu filho da puta - respondi apontando a brasa do cigarro para ele - Então, aí a merda começou a acontecer. Almoçamos nós três e em seguida, o tio se levantou limpando a boca com o guardanapo e disse: "é isso pessoal, o almoço estava ótimo mas preciso ir". Eu olhei para ela, e o seu olhar era pura malícia, como se dissesse por telepatia: "agora você é meu, garotão". Por Deus, comecei a suar muito, e ao mesmo tempo sentir tesão por ela.
- Era disso que você falava quando se referia à intensidade do tesão ser a mesma do desespero? - Artur questionou com olhar analítico.
- Não! Calma! Isso é só o princípio da bosta. O roteiro foi seguido perfeitamente. Nos jogamos na cama dela e fodemos por uma hora seguida. Tive uma linda performance, é sério. As pernas dela tremiam! Segundo ela, fazia tempo que ela não fazia nada de sexo. Ela me disse que deixou o marido lá no Sul pra fazer um trabalho aqui. Vê se pode?
- Casada, devassa... É um raro exemplar que não se deixa passar, hein? São sigilosas, carentes, loucas na cama.
- Sigilosa? Uma ova! É aí que mora o problema, Ernesto! A vadia vai foder com meu relacionamento. Ela disse que vai largar o marido e me caçar aqui em São Paulo. Ela é louca!
- Mas você não está em crise no namoro com a Elisa? Você disse que já terminaram várias vezes, por que o desespero? Talvez seja disso que você precise para terminar de vez.
- Ernesto, você é louco, só pode ser! Eu não termino de vez porque amo a Elisa, porra. Tô tentando fazer dar certo.
- Ama tanto que se esbaldou na vulva da chinoca gaúcha, não foi? - Artur e seu linguajar inadequado.
- Artur, quem é você pra questionar meu amor? Aliás, vão tomar no meio dos seus cus! Não tô pedindo conselho sentimental, não estou numa maldita terapia ou estou?
- Só constatei o óbvio - Artur agora falava baixo, em tom de escusa.
- Olha só, ela disse que vai causar escândalo, vai arrombar a porta do meu apartamento, que vai perturbar minha namorada. Vai falar tudo. Ela é louca!

Eu realmente me vi desesperado, e isso já havia acontecido em relação ao ocorrido. Mas diante dos meus amigos, o medo foi potencializado. Talvez porque tenha me mostrado frágil demais diante deles, não sei. Mas eu estava apavorado, ansioso, com dormência bem leve nas pontas dos dedos. Era terrível.

- Meu amigo, você está em maus lençóis.
- Artur, você não ajuda muito falando isso - Ernesto interrompeu.
- Me desculpe, foi apenas um comentário - novamente em voz baixa, Artur se constrangeu

Ficamos pensativos, como se estivéssemos tendo alucinações, observando seres encantados voando pelo ar.

Que tal abrirmos um scotch? Bebericar até ficar de pileque é sempre uma boa saída. Temporária, eu sei, mas é - propôs Artur.
- Só tenho Jack Daniels aqui, nada de scotch.
- Vou lá no mercado comprar, você merece, meu camarada - Artur se levantou e tomou o rumo da porta.
- Vamos tomar o Jack mesmo!
- Odeio Jack Daniels - dizendo isso, fechou a porta.

Ernesto e eu trocamos olhares por alguns segundos, ambos perplexos, e logo em seguida, dirigimos nossos olhos para o chão.

- E o que pensa em fazer, Nelson?
- Eu não sei, eu não sei. Tenho o quê fazer? Não imagino uma saída.
- Sei lá. Polícia, denúncia, fuga no meio da noite, terminar o namoro e segurar o rojão... - Ernesto balbuciava algumas soluções enquanto tinha o olhar fixo para seu copo vazio, com alguns resquícios de licor.
- Não, não. Nada disso...
- Por que não mata a vagabunda?

Dei uma risada e continuei com olhar fixo para a lâmpada acesa.

- Vai pirar igual o Maulin? Que enlouqueceu e achava que era uma mariposa? Ficava olhando para a luz, sem poder se mexer, lembra?
- Lembro sim, pobre diabo.
- Ao menos se livrou da Agnes, aquela pedra no sapato. Tá vendo? A morte às vezes é a solução.
- Ernesto, pela alma dos santos martirizados, pare de falar em assassinato. Me desculpe, mas tenho dignidade.
- Dignidade, quem disse que isso é algo? Você tem que viver os instintos! Você tem que se preservar! Ela vai foder sua vida, Nelson! ACORDA! - num salto repentino, Ernesto gritou e logo foi ao banheiro.
- Por que você não caga no chão e mija em postes? Vá se foder com essa sua ausência de espírito, com todos os instintos animais! Daqui a pouco você estará numa selva, liderando um bando de macacos - gritei olhando para trás, para a direção do banheiro.
- Bem, na verdade quem vai se foder é você!
- Vá pro inferno, seu... Tarzan!

Levantei do sofá e peguei três copos de uísque e os coloquei na mesa de centro. Liguei o som e deixei Tom Zé tocando. O bom, velho e louco Tom Zé, não se fazem mais gênios como ele. Deitei no sofá, com as mãos atrás da nuca e vi um filme, projetado no teto da sala, de um possível homicídio cometido por mim, contra a vaca da Cecile. Senti uma pequena vertigem, um curto enjoo. Meu coração pulou e bateu intenso, enlouquecido. E de repente, voltou ao normal. Eu odeio ficar ansioso, como odeio.

- Pára de enlouquecer, veado - Ernesto deu um chute leve na minha costela.
- Me deixe em paz, rei da floresta...
- Não fique assim. Ela vai chegar em Santa Maria e vai reconsiderar, vai te esquecer. Aliás, você devia se desesperar somente quando ela ligar e avisar que tem voo comprado pra São Paulo, não acha?
- Faz sentido. Mas eu não consigo parar de pensar nisso. Ela me manda mensagens, ela é louca! Quando esqueço, por alguns minutos, ela me manda uma mensagem de texto. Filha de uma puta...
- Ela já foi embora?
- Não, vai embora amanhã, no meio da tarde, eu acho.
- Então vá lá conversar com ela! Vá no aeroporto, converse numa boa, faça um apelo sem mostrar desespero. Seja convincente!
- É uma boa ideia. Embora eu tenha quase certeza de que nada vai fazê-la mudar de ideia. Mas é válido.

Levantei do sofá e peguei meu celular. Liguei para a vagabunda.

- Alô, Cecile?
- Oi meu AMOR! Como está? Está com saudades? - a voz dela era puro entusiasmo.
- Hummm, tudo bem por aqui... E você?
- Sim! Está com saudades ou não?
- É.
- É?
- É isso - eu queria que o Ernesto não estivesse ali. Era o Nelson medroso e frouxo que falava ao telefone, não o Nelson corajoso, que enfrenta os desafios aos trancos e barrancos.
- Não estou sentindo muita firmeza nisso! É igual responder a um "eu te amo" com "obrigado"!
- Sim, estou.
- Melhor assim! Olha só, avisei ao meu marido que quero conversar sério com ele. Sou determinada, QUANDO QUERO, EU CONSIGO! - e riu malevolamente, uma maldita serpente diabólica.
- Deus de amor... Você está certa disso? - eu suava em bicas.
- Sim
! ESTOU CERTA! - gritava como se estivesse reclamando num atendimento de um serviço qualquer.

Cada palavra dela de determinação fazia meu cu piscar de medo.

- E se eu não quiser, Cecile? Como você acha que pode obrigar alguém a gostar de você? Como pode tentar obrigar alguém a te amar? Não acredito que tenho que falar sobre isso com uma mulher adulta, esposa e mãe de filhos... - passei a palma da mão na testa, em sinal de desespero.
- VOCÊ VAI ME AMAR! VOCÊ VAI QUERER ME AMAR, VAI BEIJAR MINHA BUNDA!

Senti algo molhar a parte traseira da minha cueca. Literalmente me caguei. O frio na barriga era intenso.

- Misericórdia... Bem, vamos nos encontrar no aeroporto? O que acha? Amanhã, para me despedir de você. Peço uma folga na parte da tarde. Meu banco de horas está imenso mesmo...
- QUE MARAVILHA! Está combinado! Me encontre às duas e meia, ali perto do check-in da TAM. Congonhas, hein?
- Tá certo, tá certo. Duas e meia, check-in da TAM em Congonhas.
- Ótimo, meu AMOR! Nos vemos lá! Beijos, lindo!
- Beijos, Cecile.
- TE AMO.

Pensei em responder "obrigado", mas eu queria ser diplomático. Queria minha paz de volta.

- Beijos, querida.
- NÃO VAI RESPONDER AO MEU "EU TE AMO"?
- Deus do céu, Cecile, você ainda não me ama.
- EU-TE-AMO, Nelson! - eu tinha dó das pessoas ao lado dela, onde quer que ela estivesse.
- Que seja, amanhã nos vemos.

Desliguei o telefone. Antes que ela me aprisionasse via telefone. Olhei constrangido para Ernesto.

- Que grande merda, Nelson. Vamos pensar em algo, cara. Você vai ter que ser persuasivo amanhã. Caso não dê certo, diga que gosta de homens, ou tem fantasia por sexo com animais, que sonha em casar com uma chipanzé ou um pinguim.
- Já chega, Ernesto. Amanhã será amanhã. Vou trocar minha cueca pois acho que me borrei aqui - saí andando lentamente, com as pernas abertas.
- Eu não acredito nisso! Está cagando de medo de uma mulher! - Ernesto chorava de rir, deitado no chão.

Ignorei as gargalhadas e me troquei. Havia uma linda freada de caminhão lá atrás. Aproveitei pra cagar o material que estava me importunando. Depois caminhei até a geladeira e percebi que havia apenas uma lata de cerveja. Peguei o celular e liguei para Artur, mas enquanto o celular chamava, ele bateu à porta. Atendi.

- Queridos, bebamos e morramos - Artur chegou com uma garrafa de Red Label e uma caixa de cervejas.
- Caralho, que maravilha! A cerveja estava acabando eu até te liguei, mas você estava aqui no corredor...
- Eu havia bisbilhotado a geladeira e notei a ausência do líquido dourado.
- Valeu cara, eu pago pelas cervejas.
- Cortesia minha, meu amado companheiro, cortesia minha.

Agradeci a cortesia e abri uma lata. Joguei uma para Ernesto e novamente estávamos sentados, gozando de um pouco de silêncio. Artur chegou.


- Bebamos e morramos! - ergueu seu copo de uísque sem gelo, apenas dois terços de água e um de uísque.
- Você só sabe falar isso? - Ernesto se indignou.
- Ficou valente com seu licor? Perdeu o juízo, meu irmão?
- Vou te mostrar o seu irmão...

Quando Ernesto ensaiou se levantar, eu coloquei minhas mãos em seu ombros e o mandei ficar sentado. Artur já estava em pé, ensaiando algum gingado precário de boxe.

- E chega por hoje, Artur. Parecem duas bichas.
- Foi ele quem começou - Artur apontava para Ernesto com feição de criança ofendida.

Bebemos muito. Bebemos a garrafa toda. Bebemos todas as latas. E eu não via mais nada, apenas sentia a embriaguez, a leveza das pernas, a facilidade na fala. A facilidade em antipatizar com as pessoas quando estou bêbado. E como é de praxe, expulsei as visitas do meu apartamento. Me lancei contra meus dois amigos, com violência e os puxei pelas camisetas. Abri a porta com uma faca grande e afiada nas mãos.

- Pra fora! As duas maricas pra fora! - vociferei golpeando o ar com a faca. Golpes diagonais.
- Pare com isso, já estou me retirando! - Artur estava trêmulo como sempre. Uma menina diante do perigo.
- Você me paga, Nelson. Você me paga, ouviu? - Ernesto era corajoso, frio, mas temia levar facadas a toa.
- Saiam daqui, seus covardes! Saiam daqui! - eu gritava no corredor do meu andar. Os vizinhos estavam acostumados a ouvir as minhas baixarias. Eu sempre expulsei amigos ou amigas, independente do horário.

No outro dia acordei com ressaca forte. A mistura de cervejas e uísques nunca davam certo em meu corpo. Acordei ainda tonto, me arrastei pelado até o banheiro e deitei no chão do box. Espichei meu braço direito e por alguns milímetros, não alcancei a torneira do chuveiro. Me ergui lentamente e consegui. A água caía gelada, o que me fez levantar de supetão. Regulei a água, pacientemente, sentindo náuseas. A água enfim estava morna e consegui deitar novamente. Por fim, senti um espasmo no esôfago e virei o rosto para a esquerda. Vomitei muito. Vômito marrom, acompanhado por amendoins mal mastigados e uns pedaços de folhas escurecidas. Quando senti que a coisa ficou séria, me ajoelhei e continuei a vomitar. Magnífico.

- Cristo amado, que maravilha - balbuciei dando um pequeno sorriso.

Vomitar impurezas faz bem. A ressaca perde suas rédeas e nos desvencilhamos de sua tortura. Levantei confiante e com oitenta por cento a menos de dor de cabeça. Vomitar é um milagre. Saí revigorado do banho e me troquei rapidamente. Corri até o ônibus e fui até o metrô, sim, o mesmo maldito caminho de todos os dias. Peguei o trem na Barra Funda e confesso que ainda senti um calafrio. Ser linchado num trem é algo indescritível. Apenas sinto as dores dos socos e ponta-pés que tomei naquele dia. Já cruzei com alguns dos idiotas que me espancaram e eles ao me reconhecerem, desviam o olhar, num constrangimento para os dois lados. Lembro de poucos rostos, mas infelizmente eles voltam para casa no mesmo trem que eu e eles simplesmente aparecem no meu caminho. A vida segue, como se nada tivesse acontecido, assim é o mundo. Cheguei em meu trabalho e falei com meu chefe imediato. Falei que tinha uma pendência urgente para resolver e precisaria da tarde. Pra variar, ele contestou, disse que a situação era crítica na empresa e que ele precisaria de mim. Eu repliquei que não conseguiria trabalhar, que eu estava com horas e mais horas no banco de horas e que aquilo era meu direito. Depois de uma leve discussão, consegui a folga. Fiquei chateado porque sabia que ele iria me perturbar a vida nos dias seguintes, me sobrecarregando de trabalho, graças a essa folga, graças a maldita Cecile. Mas tinha que ser assim, sempre foi assim. Trabalhei até o horário do almoço e saí correndo. Fui até a avenida Paulista e peguei um ônibus azul, Aeroporto. Cheguei às duas e quinze e resolvi comer algo mas ao ver os preços, mudei de ideia. Comprei uma cerveja, muito cara por sinal, mas eu precisava da cerveja, ao menos isso. Cheguei no check-in da TAM às duas e vinte e seis e ela já estava lá. Quando ela me avistou, abriu os braços e correu em minha direção, como se eu fosse uma zebra e ela uma leoa faminta:

- MEU AMOR! - ela gritou, gritou bem alto, as pessoas paravam para olhar.
- Oi Cecile, tudo bem? - respondi segundos antes de ser esmagado por um abraço bem efusivo. Ganhei alguns beijos na boca.
- Você é pontual! Espero que meu avião não seja! QUERIA FICAR COM VOCÊ POR MAIS HORAS!

Senti um tremor no joelho. Minha barriga começou a gelar, lembrei que me borrei no dia anterior e constatei que dessa vez iria me cagar todo.

- É... Vamos nos sentar? Precisamos conversar.
- Claro, MEU AMOR!
- Você pode parar de gritar, Cecile? Deus eterno...
- Vamos nos sentar! ESTOU ANSIOSA POR SUAS PALAVRAS!

Um peido forçou sua saída, mas eu o prendi com maestria. Andei lentamente para não soltá-lo bruscamente. Sentamos em frente a um quiosque de café, perto da escada rolante que leva ao embarque. Fui ao caixa e pedi dois cafés. Levei-os à mesa e sentei, sem encostar as costas no encosto da cadeira. Eu escondia meu olhar do olhar dela, mas os olhos dela brilhavam como os de uma criança em manhã de natal.

- Pois bem, Cecile...
- ESTOU TÃO FELIZ POR VOCÊ TER VINDO SE DESPEDIR DE MIM! É MUITO AMOR! - fui interrompido.
- Cecile, é o seguinte...
- DIGA, MEU AMORZINHO! - interrompido novamente.
- Tá certo - fiz uma pausa para respirar e olhei para a espuma do café - Vamos lá, nós não podemos continuar com isso. Eu namoro, você é casada e tem dois filhos! Não podemos levar isso adiante! Não mesmo!
- VOCÊ ESTÁ ME DISPENSANDO? É ISSO, AMOR?
- Por que você faz as coisas se tornarem mais difíceis?
- Se você me dispensar, vou transformar sua vida num inferno! Você já tentou me dispensar lá na casa do meu tio! E voltou atrás dessa ideia idiota, não foi! E agora quer me dispensar de novo? EU FIZ TUDO POR VOCÊ! VOU LARGAR MEU MARIDO POR VOCÊ!
- Shhhhhhh! - pedi silêncio a ela, com olhar constrangido, direcionado às pessoas que estavam nos observando - Silêncio! Não grite! Ninguém precisa saber dos nossos problemas! - sussurrei como se quisesse gritar com ela.
- VOCÊ SÓ QUERIA SEXO, NÃO? SÓ QUERIA ME COMER!
- Pare de gritar, por Deus, pare! - mais sussurros.
- Pois bem, senhor Nelson. Você vai ter o que merece! Aguarde por notícias minhas... - de repente ela se conteve e falou me olhando soturnamente.
- Eu só quero resolver essa situação numa boa, sem estresse pra você. Me ajude nisso! - meu desespero podia ser tocado.
- Vou fumar ali fora. Não me siga! VOCÊ TERÁ NOTÍCIAS MINHAS! - e saiu com aquele bundão enorme, rebolando e com passos fortes, fazendo os saltos altos estalarem no chão.

Pensei seriamente em correr para o banheiro e cagar todo meu medo e apreensão. Ensaiei levantar e segui-la, fazê-la desistir da ambição louca dela, mas fiquei sentado, seria mais escândalo e provavelmente ela iria partir pra cima de mim. Pensei que se tomasse café, ficaria ainda mais agitado. Mandei meus pensamentos para o inferno e tomei o meu café. As pessoas me olhavam com piedade, sabiam dos meus problemas, mas ninguém queria resolve-los. Maldita humanidade. Fiquei ali por um tempo, e ela não saía da parte de fora. Fui verificar e ela estava se acabando nos cigarros. Olhei no painel de voos e percebi que o voo dela saía em uma hora, mais ou menos. Cinco minutos depois, ela passou como um raio por mim. Senti vapores quentes saindo de suas ventas, como se Satanás, numa versão rabuda, passasse por mim rumo ao submundo. Senti um calafrio e também senti o perfume dela, maldito perfume. Não lembrava o nome, mas era o mesmo de uma antiga namoradinha. Lá se foi a boa lembrança que eu tinha com essa fragrância.

A última visão que tive dela foi na entrada da área de embarque. Eu a segui sorrateiramente, como um detetive aposentado. Passou sua bagagem de mão no detector de metal, cumprimentou a todos os funcionários da Infraero e sumiu de minha vista. Fiquei observando, paralisado, todo o tráfego intenso de pessoas naquela tarde de sexta-feira. Pra variar, um caos no aeroporto, muitas reclamações, da maior variedade. E eu no meio daquele fuzuê, paralisado. Sentei numa cadeira e fiquei ali, olhando para o painel. Apenas olhava, não prestava atenção em nada. Assim fiquei por uma hora, pensando no que seria da minha vida a partir daquela tarde. Já imaginava ligações enlouquecidas para a pobre da minha Elisa. E falando nela, recebi uma ligação dela. Obviamente ignorei a chamada. Não dava pra atendê-la. Ela iria me perguntar onde eu estava, fazendo o quê, por quê e além do mais, ela ouviria o barulho do auto-falante do aeroporto e ficaria ensandecida querendo saber o que eu estava fazendo no aeroporto. De vez em quando, eu pensava em terminar com ela. Seria mais fácil. Ela se tornara um monstro que só cuspia reclamações e pragas. Mas eu a amava. Como a amava. Ficar naquela situação de brigas e discussões acabava comigo. Queria paz com ela, tudo o que mais queria era paz com a Elisa.

Fiquei ali na espreita, numa tocaia sem sentido (já que a Cecile não sairia mais dali), ao lado da entrada da área de embarque, e lá de dentro ouvi o auto-falante:

- ATENÇÃO CLIENTES DA TAM , DO VOO 3045 QUE VAI PARA PORTO ALEGRE, FAVOR SE DIRIGIR PARA O PORTÃO DE EMBARQUE DE NÚMERO 8, ONDE SERÁ FEITO O PROCEDIMENTO DE EMBARQUE.

Fiquei em pé enquanto meu coração explodia. Fui fumar alguns cigarros com outra cerveja que comprei. As pessoas percebiam minha inquietação, meus passos eram rápidos e sem direção. Eu queria que uma solução caísse do céu, mas como sempre, nada cai do céu. Sou cético demais para acreditar num milagre. Realmente eu estava fodido e ponto. Uma senhora quis puxar assunto comigo, mas eu a ignorei virando as costas. Ouvi algo parecido com "rapaz insolente". Ignorei o insulto. De repente parei e pensei: "o quê diabos estou fazendo aqui?". E realmente era inútil! Eu não sei o que me prendia ali. Olhei para o painel de voos e havia a notificação de que o embarque estava encerrado para Porto Alegre. "Deus do céu, leve essa mulher para longe e que ela nunca mais volte", pedi desesperado, em pensamento.

A tarde estava ensolarada, diferente do dia anterior, porém o tempo virou novamente. Muito comum em São Paulo. O céu escuro trovejava e espirrava suas primeiras gotas de chuva. Praguejei por isso, pois como toda pessoa normal, não costumo andar com guarda-chuva em dias de tempo aberto. Fui para fora e fiquei em uma parte coberta, onde outros desesperados fumavam intensamente, olhando para o nada. Uma cortina de fumaça cobria nossas cabeças. Era o último cigarro. Praguejei novamente. Peguei o isqueiro e nada do fogo acender. Tentava e apenas faíscas saíam. Praguejei mais um pouco. Tentei mais uma vez e quando o fogo apareceu, ouvi um estrondo enorme, jamais ouvido ou imaginado em minha vida. Foi terrível, como se o aeroporto tivesse desabado. Vi um clarão gigantesco à minha esquerda, saindo da avenida Washington Luís. As pessoas pularam para fora da parte coberta e se dividiram: uns corriam para dentro do aeroporto, outros corriam para a direção da avenida, curiosos para saberem o que havia causado tamanho clarão. Eu continuei fumando e erguendo a cabeça, procurando saber, ali de onde eu estava, o que poderia ter acontecido.

- Acho que um prédio desabou! - uma voz feminina gritou.
- Vamos lá ver! Vamos! - um grupo de três pessoas correram, parecendo cavalos selvagens galopando.
- Acho que foi um avião, cara! Acho que foi um avião! - um homem com os óculos tortos, afogado em terror gritava.

E quando o pobre diabo gritava que era um avião, as possibilidades se ligaram em minha cabeça.

- Qual avião? Qual voo?! - perguntei ao homem enlouquecido.
- Não sei! Não sei!
- Foi um da TAM! Foi um da TAM! - um  outrohomem apareceu, esverdeado pelo pavor, saltitando como se fosse um mensageiro de guerra.
- Alguém me diga qual foi o voo! PELO AMOR DE DEUS! - clamei aos céus, às pessoas, ao mundo.

Passaram minutos, poucos minutos que pareciam uma eternidade. Eu corria sem rumo junto com outros loucos sem rumo, na área onde eu fumava. Era um caos, parecia com filmes de cinema. Eu me sentia ridículo, totalmente ridículo. Eu queria saber se Cecile estava no voo, meu desespero era maldoso, horrível. Pessoas torcendo para que um ente querido não estivesse no avião e eu torcendo para que uma pessoa específica estivesse lá. Eu era o diabo em meio a anjos voando desorientados.

- Meu Deus! FOI O DE PORTO ALEGRE! FOI O VOO DE PORTO ALEGRE! MEU DEUS! - um homem horrorizado, desfigurado pelo terror, pela maldita revelação da tragédia. A tragédia havia batido à porta. Sim, aquela tragédia que ninguém espera acontecer jamais.

Quando eu ouvi 'PORTO ALEGRE', ajoelhei no chão e agradeci a Deus, gritando:

- OBRIGADO SENHOR! MILAGRES ACONTECEM! DEUS SEJA LOUVADO!

Na mesma hora o corre-corre fez um pausa e as pessoas se aproximaram lentamente. Todos transtornados, com cara de descrença e revolta. Olhei à minha volta e que Deus me ajude, era muita gente.

- MINHA FILHA ESTÁ NESSE VOO! - uma mulher gritou em prantos.
- VOCÊ NÃO
 TEM ALMA! TENHO NOJO DE VOCÊ, FILHO DA PUTA! - uma moça bonita, com seios grandes que balançavam enquanto ela gritava, apontava o dedo para mim.
- COMEMORANDO A QUEDA DE UM AVIÃO? VOCÊ É LOUCO? - um homem bem apessoado, de terno chegou em fúria, fazendo o sinal de loucura com o dedo girando ao lado da cabeça.
- Calma, minha gente, uma mulher maldosa ia estragar minha vida e ela estava naquele voo... - comecei a ter a sensação de morte, sim, a morte acariciava meu ombro novamente, como no trem - e ela estava naquele voo e...

Eu sei que não fazia sentido eu me explicar. Piorou tudo. Tudo mesmo. E quando eu olhei para os céus em busca de mais um milagre, descobri que dois milagres não caem do céu num mesmo dia. Um jovem de vinte e poucos anos, no auge de sua saúde, correu como aquele jogador da seleção de 94, o Branco, corria para bater uma falta. E o chute não deixou a desejar: pegou bem embaixo de minha axila direita. Senti alguns ossos tremerem intensamente. Dei um grito fino.

Daí pra frente, fugi em pensamento para um lugar lindo, onde minha querida Elisa não brigava comigo, apenas me amava e me desejava loucamente. É sério, estávamos há três meses sem sexo. Eu não acreditava naquilo.

Em seguida, senti uma solada na minha nuca. Que pisada incrível! Isso fez eu cair de cara no chão. Eu ainda ouvi a minha testa estalar no chão. Foi de uma violência incomparável. Eu já podia ser mártir cristão na Nigéria. Já tinha know-how suficiente pra apanhar por alguma causa nobre. Alguém pegou meu braço e o torceu para trás, malditos filhos das putas, era muito ódio, era muita dor. Por que as pessoas descontavam sua tristeza com ódio? Não poderiam amar mais? Poderiam me entender, onde estava a era de aquário? A era da compreensão e do entendimento? Onde estava a evolução humana?

- Vem cá, seu desgraçado! - era uma mulher sem os saltos, puxando meu cabelo e erguendo meu rosto.

Os tapas dela não doeram. E acho que ela percebeu que não tinha muita força e acabou pegando seu cigarro e queimando minha fronte. Isso doeu muito. Meu corpo era uma espécie de Judas da TAM para ser malhado em praça pública. Eles sabiam que teriam que processar a TAM, aparecer na TV emocionados, eu os entendia. Mas eles poderiam me compreender.

Por fim, eu apaguei, um pouco depois da queimada com o cigarro. A polícia não apareceu, ninguém, nenhuma autoridade. Nenhuma boa alma. Todas as autoridades estavam concentradas na explosão do avião. Maldito avião, maldito piloto estúpido. Provavelmente ele não conseguiu levantar voo e acabou caindo em plena avenida, se chocando contra algum prédio ao lado do aeroporto. E os amigos, parentes que presenciaram a minha presepada, cansaram de me bater. Engraçado como as pessoas cansam de espancar os outros. É como se fosse um exercício físico qualquer. Uma hora cansa.


Acordei em uma sala de hospital, totalmente imóvel, sem mexer nada. Mexer as sobrancelhas doía. Era terrível. E para meu desespero, a porta foi aberta bruscamente. Era Elisa e sua mãe entrando na sala. O amor da minha vida - pensei - com um buquê de flores na mão. Minha sogra não tão querida, vindo para desejar melhoras, uma boa recuperação. Cecile carbonizada dentro de um avião, Elisa sensibilizada pelo meu infortúnio, mais carinhosa do que nunca. Elisa começou a chorar, o que me fez pensar que ela estava emocionada por me ver daquele jeito, todo sofrido. Fiquei emocionado também, esboçando um sorriso discreto. Mas não era choro de tristeza, era de ódio.

- EU FIQUEI SABENDO DE TUDO, SEU FILHO DE UMA PUTA! – dizendo isso, começou a me surrar com o buquê de flores. Que buquê pesado, meu Deus do céu.

Eu não conseguia falar direito, apenas emitia sons incompreensíveis, bizarros. Eu grasnava como um grande e fodido pássaro desesperado. A mãe dela finalmente conseguiu contê-la, para meu alívio. E quando tudo parecia ter terminado, dona Ana bateu com o buquê na minha cara. Senti um espinho da rosa furar minha testa. Comecei a me balançar e fazer mais sons, até que a enfermeira chegou e afastou as duas loucas.

- EU SOUBE! A VADIA, A CECILE, AQUELA PUTA ME LIGOU HOJE! SEU FILHO DA PUTA! – Elisa rosnava e babava com ódio mortal, só faltou latir.

Meu desespero era aparente e doloroso. Doía mesmo, porque eu fazia expressões de dúvida, de desespero e isso doía muito.

- Como diabos a Cecile ligou para a Elisa? A Cecile está morta! Meu Deus, será que tive um derrame? Será que enlouqueci? - pensei atordoado, desesperado.

A enfermeira veio me acalmar e limpar meu corpo e a cama que ficaram cheios de pétalas e folhas. Cuidou do corte causado pelo espinho em minha testa. Mas nada disso me acalmou. Eu estava inquieto, afobado, querendo falar, gritar. Só saiam sons bizarros de minha pobre boca espancada. Eu já havia percebido a falta de alguns dentes. De repente ouvi a voz de um dos companheiros de quarto.

 - Enfermeira, ligue a televisão, pela cruz do Senhor, tenha compaixão - era um velho preto, parecia uma uva passa gigante, deitado, como se nada mais no mundo pudesse o tirar de lá.

A enfermeira disse que deixaria ligada apenas por meia hora. Era noite e um jornal dava algumas notícias. Fiquei atento esperando saber de algo. O corte do espinho na testa estava doendo.

- FAMILIARES DAS VÍTIMAS DO VOO JJ 3054 DA TAM AINDA NÃO SE MANIFESTARAM SOBRE OS PROCESSOS QUE SERÃO MOVIDOS CONTRA A COMPANHIA AÉREA. O ACIDENTE OCORREU NA ÚLTIMA TERÇA-FEIRA, QUANDO UM AVIÃO VINDO DO AEROPORTO SALGADO FILHO EM PORTO ALEGRE NÃO CONSEGUIU DESACELERAR NO PERCURSO DE POUSO E SE CHOCOU CONTRA UM DEPÓSITO DE CARGAS DA PRÓPRIA COMPANHIA - noticiou o âncora do jornal televisivo.

- O QUE? NÃO ESTAVA INDO PRA PORTO ALEGRE? ESTAVA VINDO DE PORTO ALEGRE?

Tentei me mexer, buscando algo para tentar um suicídio. Mas a ideia passou logo. Me conformei imóvel em minha cama de hospital. Tudo estava liquidado. Perdi meu relacionamento. A vadia da Cecile havia cumprido sua promessa e agora viria para São Paulo atrás de mim, maldita seja essa gaúcha. Naquela noite de tragédia, constatei que um segundo milagre não cai do céu num mesmo dia. Na verdade o segundo vem depois do primeiro. E no meu caso, nem o primeiro veio. Pensando melhor, veio sim, sobrevivi novamente. Pensando melhor, já são dois milagres.