terça-feira, abril 30, 2013

Os Apuros de um Futuro Papai

Era mais um dia seco em Brasília. Seco mesmo, como se giletes transpassassem minhas narinas. Você sente o corte a cada inspiração e um leve alívio a cada expiração. O ato básico da vida é um sacrifício quando se vive sob quinze por cento de umidade relativa do ar. Mas eu já estava me acostumando e até então, meu nariz nunca sangrara.

O metro às seis da tarde exibia sua coleção abarrotada de pessoas, todas elas com presença cativa naquela plataforma curta e cada vez menos capaz de comportar tanta gente. É como se tirassem o fogo do inferno, mas mantivessem o calor. O desespero, a falta de ar, a negligência com o próximo, as cotoveladas, os rostos desfigurados, como se manequins assumissem vida, mas continuassem sem coração e sem exageros, a distância de Deus e do seu Paraíso, transformavam aquela cena em uma figura que desesperaria Dante e sua descrição bonitinha de inferno. Quando o trem de modelo defasado (sim, existem alguns modelos modernos com narradora robô) chegava lentamente, prenunciando o ritmo sereno de sua jornada até o fim da linha, as pessoas se apinhavam ao redor das portas, o empurra-empurra, pessoas se atirando, saltitando, girando e trombando nas barras de alumínio do trem, promoviam um balé assombroso do cotidiano. Eram bailarinos sofridos, sem flexibilidade, com apenas um passo ensaiado, o passo do desdém, da busca do alívio, da busca por um assento. São raros os momentos em que os instintos se sobrepõem a qualquer ato de humanidade, seja a cortesia, ou seja o pensar. Pensar na vida, pensar nos planos, no amanhã, no ontem. Naquele momento, não existia o homo sapiens. Era como se um bando de macacos estivesse a se refugiar, sob o abrigo de uma caverna, de um sol flamejante, torturante. Ali eles apenas existiam. E existir era apavorante. Eu estava aquém daquela feira de odores e fluídos, aquele contrabando de olhares. Eu sempre deixava aquela loucura cessar e entrava triunfante, ficando em pé mesmo. Prefiro minha paz, nem que o preço seja permanecer por meia-hora sobre meus pés chatos. Sempre tinha uma leitura interessante ou simplesmente ficava bolinando meu celular. Mas nem sempre eu conseguia repousar em quietude perspicaz; pessoas que esperavam pelo trem que levava a outro destino (em Brasília são dois os destinos que partem da estação Central: Samambaia e Ceilândia - ambos sofridos) montavam um batalhão de choque, declarando aquele território como seu, impedindo a entrada de pessoas que ainda não entraram no trem, evitando aquele alvoroço. Eles simplesmente teimavam firmes como se fossem numerosas espadas do rei Arthur, postada em frente às portas do trem. Eu pedia licença, dava doces cutucões nos ombros, mas eles fingiam não ouvir, não sentir. Eram múmias em sarcófagos abertos, empoeirados pela ignorância. Forcei minha entrada como se quisesse arrombar uma porta, e aquilo geralmente despertava os ânimos. Passei entre uma velha descabelada e suada e um homem nanico, com a cabeça mais larga que o comum, exibindo pouco revestimento capilar em sua extensão. Parecia uma caricatura desenhada por um cego reumático. Enfim entrei e me voltei para a porta, encarando aquelas múmias sem expressão, envoltas por lençóis de indiferença. Deus como estou poético.

Naquele dia, eu ouvia Perry Como, um cantor tão defasado como os trens velhos do metrô de minha amada capital. Eu flutuava, abençoado pela interpretação de 'Come Rain or Come Shine'. "Oh, Deus, essa música eu dediquei à Elisa", pensei com a testa enrugada. Lembrava do meu olhar entrelaçado ao dela. A canção era entoada pela Billie Holiday. Me arrepio só de lembrar. O nariz dela, levemente enrugado, cúmplice daquela boca discreta, que insistia em me provocar com aquele sorrisinho atrevido. "Maldita seja Elisa, queria você aqui comigo, miserável do inferno". Chacoalhei minha cabeça discretamente, para me desprender daquela imagem do passado. Ainda doía muito. Fiquei a observar o sossego e a harmonia que enfim subjugou aquela massa de reprimidas figuras. Como em qualquer concentração de pessoas, a paz era espetada por tagarelices das mais diversas. Aquilo em muitos casos me desconcentrava. Mas um homem, comprimido em seus trinta anos, barba falhada, mas farta, com roupas mal ajambradas gritava como um vendedor da rua vinte e cinco de março.

- Que Deus abençoe a viagem de vocês! Que Deus nunca deixe acontecer com vocês o que aconteceu comigo! - caminhava com dificuldade entre os cidadãos que, como era esperado, permaneciam indiferentes ao clamor do pobre diabo.

Percebi uma inquietação fora do normal em seu rosto. A expressão de desespero se promovia sobre os vincos de sua face morena e bem avermelhada, com algumas pequenas cicatrizes. Rosto claramente castigado pelo sol e pela desconfiança. Um cara novo como aquele não devia ter tantas rugas. Pausei a música e deixei um dos fones de ouvido cair.

- Eu fui um idiota! Eu sou um idiota! Não me julguem, pelo amor de Deus. Que Jesus tenha misericórdia de mim - apontou para o céu, sem erguer muito o braço - Mas eu não quero pagar por isso! Eu preciso de ajuda! Ah, Senhor, eu preciso de ajuda!
- Credo, o que você fez, véi? - era uma adolescente gotejada por piercings em todos os cantos aparentes, se destacando em meio a outros moleques com ar de deboche.
- Eu vou ser julgado, eu sei que vou. Por favor, tentem me entender! - o homem urrava, deixando aquelas múmias atentas.
- Desembucha logo aí, porra! - um homem musculoso ergueu sua voz, nervos evidentes no pescoço, com a mão aberta e estendida para o louco, como se fosse estapeá-lo.

As pessoas estavam apreensivas, o silêncio era unânime. Apenas os ruídos do trem castigando os trilhos cortava aquela interrupção brusca do barulho. As pessoas arregalavam seus olhos, como se esperassem pelo desenrolar do último episódio de uma novela.

- EU ENGRAVIDEI MINHA NAMORADA! - dizendo isso, despencou sua postura já vacilante e quase se esparramou pelo chão do trem.
- Puta que me pariu, cara! Vai se foder! - um homem de óculos e camisa amassada quebrou o silêncio, abrindo espaço para mais críticas.
- Meu Deus! Pensei que ele tinha matado alguém!
- Eu também! Tipo, a mãe dele! Sei lá! Algo parecido

Já não se tratava de burburinho. O trem parecia uma convenção de vendedores. Um misto de alívio e chacotas passeava pela atmosfera em forma de comentários rápidos e altos. E como já era previsto, as pessoas que conversavam antes do episódio, voltaram com seus assuntos, dando risadas. Quem não estava conversando, começou a conversar. E eu avesso a tudo isso, meneei negativamente minha cabeça e fitei o louco e futuro papai. O trem freou e o condutor anunciou que chegávamos na estação 102 Sul. Mais pessoas com juízo adormecido entravam como zumbis, lentamente, lançando olhares uns para os outros, como formigas que se chocam no caminho do formigueiro.

- EI! EU NÃO ACABEI! - o homem sofrido voltou berrar.
- Ei campeão, já deu, hein? Chega! - era o homem musculoso novamente, com aqueles nervos saltitantes no pescoço, aquilo me provocava repulsa.
- Opa, opa! - gritei e me dirigi ao grandalhão, enquanto enrolava meus fones de ouvido e os colocava no bolso da calça.

O homem tomou um susto, como se fosse um milagre alguém enfrentá-lo. Ele era mais baixo que eu, mas o braço dele tinha o diâmetro da minha coxa. Eu tenho boas pernas. Ele soltou sua mochilinha de rato de academia, estufou o peito e gesticulou muito.

- Opa O QUÊ, meu irmão? Vai querer criar problemas? - O Golias vociferava em minha direção. Minhas pernas tremiam, mas meus olhos se mantinham alinhados aos dele.
- Não quero criar problemas, mas você não tem o direito de ameaçar um cara tão desesperado - minha calma estava inabalável, como se fosse um grosso véu escuro revestindo uma porção trêmula de gelatina.
- Você virou juiz pra dizer meus direitos?! - mais gritos. A voz dele não era lá essas coisas, não era grossa.
- Amigão, deixe o cara esmolar. Ele já está cheio de problemas... - fui interrompido.
- Amigão um caralho!
- Ué, você me chamou de seu irmão no começo dessa discussão - eu era um monge urbano, embasado na pacífica retórica.
- CALE A BOCA! - ele apontou pra mim e em seguida forçou passagem entre as múmias entorpecidas pelo espanto que a situação provocava.

Eu estava um pouco longe da muralha humana, e quando ele se deslocou, ginguei um pouco, peguei minha mala e me escondi atrás de algumas figuras empalhadas que serviam apenas como obstáculos, não como seres humanos animados. Isso era uma vantagem.

- Ei, tire sua mão de mim, filho de uma quenga! - um homem com sotaque bem forte de Pernambuco se desvencilhou de mim.
- EI! Pare com isso, seu veado! - o homem louco e bagunçado, futuro papai, se lançou contra o incrível Hulk do cerrado.
- Tire suas mãos de mim, seu corno desgraçado! - o grandalhão latia, enquanto tombava no chão.

As pessoas se apinhavam ao redor dos assentos, deixando uma espécie de ringue para que lutássemos. Eu odiei a ideia. Quando aquela torre animada tombou, aproveitei para me fazer de apaziguador. Não seria legal chutar aquele morro de músculos quando ainda estava caído. Não eu, Nelson, espancado duas vezes, sendo uma dessas vezes, num trem. Lancei-me entre os dois brigões, como um juiz de vale-tudo, finalizando o embate. Ilusão minha. Senti uma mão calejada, como se fosse um tijolo lascado, se apoderar de meu fino braço. Dei um grito agudo e comecei a me debater. Como um sabonete molhado, me livrei da opressão do homem bombado. E ele estava irritado. O louco, futuro papai, levantou-se em um só movimento e se afastou. "Filho da puta, você me paga, maldito", praguejei contra o recuo do meu aliado. O monstro sagrados dos trilhos levantou-se usando as duas mãos e bufou. Sua pele estava roxa, como se tivessem trocado a pele dele por um tecido grosseiro e escuro. "Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito", pensei enquanto lembrava que sempre sonhava em dizer isso diante da face da Dona Morte. Não era bem aquela senhora de capuz e foice que se apresentava diante de mim. Mas era tão assustador quanto. Quando a montanha de ódio preparava sua investida fatal, o alucinado que seria papai gritou:

- PUTA QUE PARIU! ALGUÉM ME OUÇA!

As pessoas pararam e o touro com fisionomia humana desviou seu olhar para o louco. Respirei ofegante, por alguns segundos. Enquanto calculava minha fuga, lamentava a coincidência de estar em um dos trechos mais longos entre estações. Da estação 102 Sul, o trem só pararia na estação 108 Sul, negligenciando a 104 e 106. Culpa do governo. Maldito PT.

- Eu não quero causar essa zona toda, pelo amor de Deus! Só quero pedir dinheiro para pagar o aborto da minha namorada! - havia convicção nos olhos reféns dos sulcos que dominavam a pele de seu rosto. Sim, havia convicção.
- Pra pagar o que? - perguntei em voz alta e chocada, meio impressionado, meio procurando desviar a atenção do brutamonte para a nova situação que se desenhava.
- Para minha namorada abortar! Quem quer mais um marginal nas ruas? Eu não tenho condição pra criar esse moleque! - se explicava como se fosse um advogado em meio a um tribunal.
-  Você precisa de Jesus! Tome vergonha na cara, seu safado! - uma velha reuniu forças e abandonou seu assento preferencial, dirigindo-se ao louco, que agora, não sei se será papai.
- Minha senhora, com todo o respeito... - o homem sentia a hostilidade da humanidade. Eu sabia como era isso.
- PESTES COMO VOCÊ DEVERIAM MORRER! - o titã do planalto central latiu. A atenção dele já era do cara doido. As batidas do meu coração estavam mais calmas. "Deus, não é dessa vez que entrego meu espírito", pensei dando risada do conteúdo patético da minha cabeça.

E mais uma vez - que me perdoe o leitor pelo tema repetitivo das minhas narrativas - o pau comeu.

O louco - que levando em consideração aquela situação - realmente não seria mais papai, apenas se jogou no chão, em posição fetal, protegendo sua cabeça e erguendo de forma penosa o outro braço. Pessoas jorravam contra o pobre indigente. E o pior: ele não era indigente. Era um louco apenas. E as pessoas não se davam conta disso. De estado vegetativo, evoluíram ou regrediram para o êxtase violento. "Essas coisas me preocupam, o mundo está perdido", pensei enquanto ouvia o anúncio do condutor do trem, de parada iminente na próxima estação.

O trem parou, mas antes de escapar daquele vagão da morte, me meti no meio do emaranhado de bárbaros e, pronto para saltar até a plataforma em um só movimento, esperei o apito que anunciava o fechamento das portas. Quando as luzes que ficavam acima das portas piscaram, desferi um murro na nuca do grandalhão, que desmoronou em cima de alguns idiotas que gritavam com o louco. Saltei rapidamente, sentindo o golpe de uma das portas no meu pé esquerdo. O gorila branco estava esboçando alguma reação enquanto eu via o trem deixar a estação lentamente. Acenei para aquela tribo de loucos e ganhei os degraus da escada. Naquela noite, voltaria para casa de táxi.