sexta-feira, novembro 06, 2009

A Vingança Romana

E lá estava ele de novo. Antonio Durval Correia. Católico apostólico romano, vezes dez. Papa Bento XVI é um alvo a ser alcançado. "Que homem!" ele pensava ao lembrar do líder máximo da fé católica (não era pra ser Jesus? Deus?). Que o Antonio não me ouça ou ele começaria uma discussão. Mas lá estava ele, como de costume, na espreita, encostado no muro da igreja de Nossa Senhora da Saúde. A avenida Domingos de Morais estava fervilhando. Pessoas com rostos padrões, cinzas, azulados, sem forma alguma se apinhavam na calçada, esperando o sinal vermelho para os carros. Antonio observava tudo com decepção moldando sua expressão. Diferente das pessoas que transitavam pela avenida, Antonio tinha um rosto colorido, nariz vermelho, olhos verdes, bochechas rosadas. Todas as cores do passado, das consequências impiedosas que um ex-alcoólatra sofre. Mas lá estava o guerreiro católico, ex-alcoólatra, vigiando as pessoas, como se pudesse detectar suas auras, detectar seus anjos e demônios.

- Marco, são poucos. São pouquíssimos! - Antonio cabisbaixo falava ao telefone, num orelhão da rua Santa Cruz.
- Poucos o quê? Do que você está falando?
- Eu vi tudo, na frente da igreja. É de partir o coração.
- Mas o que você viu?, pelo amor de Deus!
- As pessoas, esqueceram de Deus.
- Mas isso todo mundo sabe! Conte-me algo novo! Puta que pariu!
- Me faça um favor: não fale palavrões, certo? Estou querendo desabafar com alguém e você me ofende?
- Mas eu não te ofendi, foi expressão apenas, pelo amor de Deus! E você não está desabafando, você está me deixando curioso e com raiva!
- Sinal da cruz, Marco. Ninguém mais faz o sinal da cruz ao passar pela igreja.
- Oras, e se forem evangélicos? Eles estão crescendo a todo vapor. Você tem que considerar isso.
- Que nada, acho que eles são trinta por cento da população, ou seja, de cada dez pessoas que passam pela igreja, sete deveriam reverenciar a fé católica.
- Você sabe que a vida não é assim. Estatísticas não passam de baboseiras. Sempre tem uma margem de erro. Se fosse algo exato, não teria margem pra erro.
- A matemática é exata, Marco.
- Mas as pessoas não. A cada minuto, católicos viram evangélicos, filhos viram pais, homens viram viados.
- Mas homossexualismo é um desvio de caráter, existe cura - retrucou Antonio, coçando o nariz.
- Bem, foda-se, não é...
- Olha o palavrão, Marco...
- Olha Antonio, você me liga pra dizer que quase ninguém faz sinal da cruz. Depois entra num assunto que não faz sentido e ainda pede pra eu maneirar nos palavrões? Vai tomar no seu cu, seu puxa-saco do papa! Enfia um crucifixo no seu rabo e reza três ave-marias pra ver se você sara desse fanatismo boçal!
- Olha, eu vou desligar. Você está descontrolado, não espere que eu desça ao seu nível - respondeu Antonio, assim como Jesus responderia.

Marco desligou.

- Maldito o dia que eu fui aos Alcoólicos Anônimos e conheci esse babaca! - vociferou Marco contra o teto.

O encontro de alcoólicos anônimos não havia rendido nenhum fruto bom para Marco. Ele continuava bebendo, sem esperança alguma, vivendo a libertinagem que sempre sonhou. Putas, travestis e mulheres aleatórias. O único fruto na verdade foi ter conhecido Antonio que não passava de uma figura deplorável, sem motivação alguma e que tentava de todas as formas se redimir consigo mesmo. Depois inclui Deus na lista de pessoas com quem devia se desculpar. Mas o fato é que Antonio parou de beber, se agarrou com unhas e dentes à igreja Católica e a Deus. Comprou uma imagem de Santo Onofre, protetor dos alcoólatras anônimos e sossegou o rabo. Passa o dia inteiro meditando na palavra de Deus, visitando igrejas, fazendo trabalhos voluntários. O padre da paróquia vizinha a sua casa garantia uma cesta básica a ele, frequentadores da mesma paróquia faziam contribuições para pagar as contas do bangalô de Antonio. Todos sabiam que ele não batia bem das ideias, e por isso era considerado pelas pessoas como inapto para se sustentar. Antonio se casou com Deus, com Maria (ainda virgem) e com todos os santos. Parecia um homem feliz.

- Nossa Senhora de Aparecida, por que o mundo está assim? Por que o mundo virou as costas para a igreja? Por que o mundo esqueceu-se de reverenciar sua fé católica? Rogo a ti, que rogues ao teu filho Jesus para que os puna! Para que vejam que dar as costas para a fé é a mesma coisa que a morte! Confio nos teus bondosos braços, no teu olhar maternal, eu te amo, minha santa!

Fez o sinal da cruz lentamente e se ergueu do chão, onde estava ajoelhado. Quando se direcionava a bíblia enorme que permanecia na sala, uma voz gritou em seu ouvido, em sua mente:

- MATE-OS!

Deixou o terço cair de suas mãos. Logo após o terço, Antonio caiu também.

- VINGUE-SE PELA IGREJA!

Uma voz feminina, poderosa - como se fosse o mar batendo contra as rochas - gritava em sua mente.

- Minha santa? É a senhora? - perguntou Antonio, trêmulo, com palpitação e suor intenso.

Ele não ouviu mais nada. Nenhum assovio divino, nem uma tosse celestial. Silêncio. Antonio se ergueu, pegou o terço e o deixou na bíblia. Colocou suas sandálias surradas e correu até a paróquia.

Chegando às portas da paróquia, procurava atentamente pelo padre.

- Padre Afonso! Padre Afonso! PADRE AFOOOONSO!

Silêncio. Ninguém respondia. Os santos parados no altar olhavam para ele com compaixão. Outros olhavam para cima. Jesus na cruz olhava para ele com frieza. Uma voz se revelou.

- VINGUE-SE POR MIM! PELA IGREJA! PELO SUCESSOR DE PEDRO!
- Você quis dizer SÃO PEDRO, não?
- TANTO FAZ! VINGUE-SE POR TODOS NÓS!
- Mas quem seria a senhora? - Antonio sentia suas pernas cada vez mais vacilantes. Apoiou-se em um dos bancos.
- Eu sou a mãe de todos os seres, a mãe de Deus, a mãe da humanidade!
- NOSSA SENHORA! - gritou e se prostrou, suando em bicas.
- LEVANTE-SE E VINGUE-SE POR NÓS!

A voz se dissipou e Antonio já estava praticamente deitado de bruços, se retorcendo. Começou a balbuciar palavras sem sentindo, em uma língua estranha. O padre Adolfo se aproximou em alta velocidade e se abaixou para socorrer o pobre fiel.

- Em nome de Cristo, o que você tem?
- Padre, eu ouvi a santa!
- Qual delas?
- A maior de todas! SANTA MARIA MÃE DE DEUS!
- Quando? Como? Onde?
- Agora! Ela começou a falar! Na minha casa e aqui também! - gritava exaltado, com espumas de saliva nos cantos da boca.
- Antonio, vamos beber água. Descanse um pouco e fale um pouco mais sobre isso.
- Não padre! Não tenho tempo a perder. Eu recebi ordens divinas! Sou um servo obediente!
- Que ordens?
- Divinas! Ordens divinas!
- Meu Deus eterno! QUAIS ORDENS?

Antonio se ergueu se desvencilhou das mãos do padre que o sacudia enquanto fazia as perguntas, e correu para fora da paróquia. O padre olhou para a estátua de Maria e esboçou um sorriso forçado.

- Tem gente que não tem conserto - pensou o Padre, limpando os resquícios de saliva que Antonio deixara no chão.

O céu estava limpo, o sol convidativo, os pássaros voavam em círculos e algumas nuvens desfilavam secas, isoladas. Antonio chegou em sua casa e sem pensar muito, correu até a cozinha. Abriu a gaveta e puxou uma faca de cortar carne. A faca devia ter vinte centímetros, afiada e com o cabo desgastado. Trocou sua camisa, bebeu um copo d'água, rezou um pai nosso e uma ave-maria e correu para a porta. Fez um sinal da cruz ao sair e foi até o ponto de ônibus. Aguardou pacientemente a chegada de seu ônibus. Paciência que só pessoas que sabem o que fazer na vida, têm. Antonio sabia o que fazer. Ele era um mártir, um santo maldito, um instrumento desafinado nas mãos de Maria. O terço estava enrolado em sua mão direita e a cada conta que desfilava pelos seus dedos, ele rezava um pai-nosso, uma ave-maria e um credo dos apóstolos.

No ônibus, assuntos triviais permeavam o ar. Fofocas, mentiras, verdades. A humanidade se entrelaçava em verbos e substantivos. Eu faço, tu fazes, eles fazem. Primeira pessoas, segunda e terceira. Pessoa pra dar e vender. Mulheres com axilas mal raspadas, axilas cinzas. Braços gordos, cabelos mal penteados. O motor do ônibus tentava dialogar na mesma intensidade das pessoas. Decibéis e mais decibéis circulavam o ambiente. Janelas fechadas, janelas abertas. Espirros e tosses. Era o mundo em seu nível mais subterrâneo. A periferia tinha vida. A vida que Deus não desejou para seus filhos. Mas quem se importava?

Antonio parecia alheio a tudo.

Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome...

Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco...

Creio em Deus Pai, todo-poderoso...

A linha chegava ao fim. Terminal Santa Cruz. Desceu lentamente e se dirigiu ao shopping. Atravessou a avenida e rumou para a igreja de Nossa Senhora da Saúde. Eram cinco horas da tarde e Antonio preferiu aguardar até o anoitecer. Ficou parado com sua faca parada entre a cintura e a calça. Continuou rezando e observando as pessoas, apressadas, cabisbaixas, passarem pela igreja e não prestarem reverência alguma com o sinal da cruz.

Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome...

Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco...

Creio em Deus Pai, todo-poderoso...

Após uma hora de espera, foi até o orelhão.

- Marco? Está mais calmo?
- Só me faltava essa! Só me faltava essa! - Marco berrava ao telefone.
- O que? O que lhe falta?
- Nada, Antonio. Esqueça! O que você quer?
- Marco, eu tive uma revelação. Maria, nossa querida mãe, falou comigo!
- Mas que diabos! Como assim "nossa querida mãe"? Você tá louco?
- A virgem santíssima!
- Você diz a Maria, nossa senhora e tal?
- Isso! Ela falou comigo! Ela falou comigo! - repetia o acontecido enquanto apontava para o céu.
- Hahahaha! Você está levando isso muito a sério, Antonio! Vamos num psicólogo, é sério...
- Ai de você que não acredita em mim! Ela falou comigo, ela é real! Ela pediu vingança!
- Meu Deus do céu! Antonio, onde você está? - Marco captou a situação.
- Aqui na Santa Cruz.
- Espere aí! Espere aí, ouviu? Espere!

Marco desligou o telefone e se arrumou prontamente. Pegou seu celular e discou para o 190.

- Polícia Militar de São Paulo, em que posso ajudá-lo? - uma voz fanhosa escorria do telefone.
- Por favor, envie uma viatura para a igreja Nossa Senhora da Saúde! O mais rápido possível. Algo terrível está para acontecer! Sejam rápidos!
- Mas do que se trata a ocorrência? Pode me detalhar? - a voz parecia se derreter.
- Um lunático está para matar muita gente... coisa religiosa! - Marco corria até o metrô, enquanto falava de forma ofegante a atendente.
- Qual seria o endereço?
- Avenida Domingos de Moraes! É ao lado do shopping!
- Entendido. Uma viatura está indo até lá.
- Mas tem que ser rápido! Obrigado!

Marco correu por mais alguns metros e alcançou a estação do Tucuruvi. Puxou o bilhete único e mirou a catraca que separava a área comum da área de embarque. Porém algumas notas de dois reais caíram no chão. Velha mania de pegar o troco da padaria e não se dar ao trabalho de puxar a carteira, abri-la e depositar o dinheiro lá. O troco sempre ficava pra fora da carteira.

- Com todos os diabos! - exclamou enquanto se prostrava para apanhar as notas fugitivas.

As pessoas ziguezagueavam pelas escadas e Marco descia como um deslizamento de terra. Chegou ao embarque do trem, sentido Jabaquara (só existia esse sentido mesmo, afinal, o Tucuruvi é o outro extremo da linha azul do metro paulistano) e se dirigiu a uma das pontas da plataforma, porém não havia sinal de trem chegando. Agachou-se e pôs-se a respirar fundo. Uma frustração contaminou seu peito e a impaciência se refletia nos movimentos frenéticos de seus pés.

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Na Santa Cruz, Antonio continuava sua observação. A revolta de sua mente se confundia com seus pensamentos. Explosões de confusão irradiavam toda sua cabeça.

Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome...

Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco...

Creio em Deus Pai, todo-poderoso...

Pessoas riam e se encaravam. Animais em sua caça sexual, bancando idiotas para se exibirem, tentando mostrar suas penas de pavão, numa conquista artificial, com aquele fundo que fede a sexo e libertinagem. O carrinho do acarajé estava rodeado de pessoas que faziam seus pedidos, com dinheiro à mão, exigindo mais camarão, menos caruru, um capricho benevolente no vatapá. A Bahia e sua culinária se concentravam naquele metro quadrado a frente da igreja e ninguém dava bola para as imagens de pedra, imponentes à frente da igreja. Os portões de ferro estavam abertos, mas ninguém arriscava entrar. Ninguém seria um exagero. Algumas senhoras rastejavam suas carcaças velhas pela escadaria desgastada rumo ao templo.

Antonio puxou sua faca e observou um homem, nos seus quarenta anos, passando pela igreja. Dirigiu-se a ele, decidido no intuito da vingança divina. Porém teve que recuar. O homem colocou sua pasta na mão onde tinha algumas sacolas e, olhando para a igreja, fez o sinal da cruz. Antonio sorriu. Porém aquilo não salvaria o dia. Virou seu olhar para a direita e acompanhou os passos de uma adolescente solitária, loira, vestindo uma saia média e all-star branco, tomando um sorvete de casquinha. Ela cuidava para que a massa do sorvete não derretesse e passou reto pela igreja, como se não houvesse nada por ali. Ele correu até a jovem e parou. Sincronizou seus passos ao da moça e esperou pelo seu trajeto. Virou na rua Santa Cruz. Antonio sorrateiro se apressou e puxou a faca. Um corte profundo se projetou nas costas da menina. Ela deu um passo largo para frente e tornou para ver quem a atingira. O cheiro perfumado de seus cabelos se alastrou pelo ar. Gritou. Porém Antonio não se abalou e em questão de milésimos, enfiou a ponta da faca em sua garganta. Jatos de sangue ganhavam o ar sujando a calçada. Sua casquinha caiu e se misturou ao sangue. Pessoas que viram a barbárie gritavam do outro lado da rua. Carros passavam às dezenas e não deixavam ninguém atravessar. Quem estava na mesma calçada de Antonio se deu ao trabalho de fugir do louco. Um homem pegou um cabo de vassoura abandonado num poste junto a uns sacos de lixo e correu em direção de Antonio. Parecia o fim da linha. Girou sobre seus calcanhares e correu novamente até a entrada da igreja. O homem com o cabo da vassoura se deteve ao passar pela garota ferida, que se contorcia no chão. Parou para socorrê-la aos gritos.

- ASSASSINO! PEGUEM O ASSASSINO!

O guerreiro católico com a faca exposta parou enfrente à barraca de acarajé e percebeu que os carros continuavam a transitar intensamente. Algumas pessoas do outro lado da rua gritavam desesperadamente. Antonio viu ali mais uma oportunidade de vingança. Um homem gordo, olhos vazios, calvo e cabisbaixo, caminhava com a classe de um andarilho maldito. Passou pela igreja, porém apenas vasculhou seu bolso direito. Não achou nada. Também não fez o sinal da cruz. Como um raio, a faca de Antonio trespassou a nuca do homem. Ele apenas ergueu suas mãos, não tão alto, e caiu de joelhos, logo em seguida, se esparramou pelo chão, como se estivesse num transe. Expirou.

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- ESTAÇÃO SANTA CRUZ - a voz feminina saía chiada do alto-falante do trem.
- Cacete de trem maldito, vai logo, desgraça! - Marco rosnava junto a porta do trem.

As portas se abriram e o cheiro de fast-food do shopping anexado à estação tomou conta do ambiente. Marco cortou aglomerações de pessoas e escolheu a escada convencional. Pulava de três em três degraus e em segundos chegou às catracas. Avançou pela saída da Avenida Domingos de Morais e ganhou a calçada. Jovens e mais jovens conversavam e gritavam, dando largos sorrisos e pequenos abraços uns nos outros. Marco não pôde observar toda a humanidade que seguia pela região. Ele precisava salvar essa humanidade, ou melhor, um pouco dela. Pessoas corriam por todos os lados. Gritos histéricos de mulheres permeavam a atmosfera do lugar, carros paravam curiosos e motoristas na altura da rua Loefgreen buzinavam sem parar. Marco encontrou o caos e ficou decepcionado, pois nenhuma viatura podia ser vista, nenhuma autoridade, apenas desespero. Correu erguendo sua vista, atrás de Antonio, dando pequenos saltos com o pescoço erguido, a fim de ver alguém que fosse o centro das atenções, o motivo de todo o alvoroço urbano que se instalara. De repente uma sirene se juntou a gritaria, cantadas de pneus e um cheiro de borracha queimada. Marco aliviou sua expressão, baixando as sobrancelhas, tirando a tensão de sua testa. Enfiou-se no meio da massa, procurando por Antonio, empurrando alguns curiosos, trombando em outros desesperados.

- Ele está armado! Ele está armado! - alguém gritou se descabelando.

Pessoas ficavam à espreita ao lado da banca de jornal, outras acendiam seus cigarros e observavam de longe, perto do ponto de ônibus. No meio da balbúrdia, Antonio estava eufórico, babando, girando a faca para o alto.

- Virgem Maria! Rogai por nós pecadores! Despertai católicos! Despertai!
- Antonio, seu desgraçado, o que você fez?! O que você fez?! - Marco juntos as mãos à frente de sua boca, incrédulo diante do homem esfaqueado na nuca.
- Marco! Eu disse que me vingaria!
- Vingaria o quê, seu maluco? - um popular questionou com ódio banhando cada palavra.
- A igreja! A igreja católica apostólica romana!
- Pela cruz de Cristo! Largue essa faca agora! - um cabo da polícia militar ordenou apontando sua arma - Eu vou atirar, largue essa faca!
- Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco... - Antonio começou a rezar novamente, ignorando a intimação do policial.
- Senhor policial! Eu conheço esse lunático. Deixe-me tentar negociar com ele! - Marco se antecipou a qualquer movimento da polícia.
- Qual é o seu nome?
- Marco Antônio Alves Nazário.
- Tente alguma coisa com esse doido. Mas vá logo!

Carros das emissoras de televisão já disputavam espaço nas calçadas da região. Links ao vivo congestionavam a programação. Repórteres conversavam com cidadãos comuns que davam seus depoimentos, segundo o que haviam visto.

- Antonio, pelo amor de Deus, pare com isso. Largue essa merda agora, por tudo o que é sagrado!
- Pelo o que é sagrado! Exatamente isso! Pelo o que é sagrado!
- Cala essa boca e largue essa faca! Eles vão te matar se você fizer algum movimento idiota! Desista disso! Você já matou todo mundo que queria! Se entregue!
- Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador... - começou a mesma ladainha.
- Tenha paciência! - Marco se virou e mirou o policial - Matem esse porra, pelo amor de Deus, ele é louco!

Marco se afastou da multidão e sacou um cigarro. Acendeu-o lentamente e soltou um jato de fumaça. De repente uma dezena de repórteres rodeou-o, espetando todas as partes de seu corpo com seus microfones. Luzes fortes queimavam seu rosto e faziam seus olhos arder. Infinitas perguntas entravam por seu ouvido, deixando-o confuso. Um repórter da RedeTV esbarrou em seu cigarro fazendo-o cair. Outro repórter pisou. Foi a conta.

- Saiam daqui, seus bostas! Saiam! Eu vou acabar com vocês, raça de merda! - e saiu esmurrando todo repórter que encontrava.

Conseguiu se desvencilhar da horda da imprensa e saiu correndo até a entrada do metrô. A zona sul de São Paulo sofria com o congestionamento causado pela interdição da avenida e as vias ao redor estavam entupidas de carros buzinando, pessoas estressadas. Padarias lotadas com pessoas acompanhando programas sensacionalistas que divulgavam os boletins médicos das vítimas de Antonio, comentários de senhoras com braços cruzados, cachorros mijando em postes. A cidade respirava com dificuldade.

- Pela última vez, largue essa arma! - desta vez o negociador da polícia ordenou.
- Qual é a necessidade de um negociador? Pelo amor de Deus! - um homem de terno comentou com uma mulher horrorizada - Desce a porrada nesse vagabundo!

Inesperadamente, uma pedra cortou o ar e atingiu a cabeça de Antonio. Ele largou a faca e colocou a mão na cabeça. Sangrava muito. Sentiu uma tontura e olhou para baixo, tateando o nada, procurando pela faca. O povo que estava num misto de horror e ódio se amotinou e correu na direção de Antonio. Um chute atingiu sua cabeça, alguém pisou em suas costelas, uma gota de saliva tocou sua fronte. Alguém se apoderou da faca do assassino e cravou a mesma na perna de Antonio. Ele estava liquidado. Um policial atirou pra cima e começou a gritar. A maioria se abrigou atrás dos carros e gritava. Alguns policiais correram para socorrer Antonio e se depararam com um homem quase sem vida. Seus olhos não abriam mais e a tonalidade de seu rosto era roxa. Ossos e mais osso quebrados. Ele não se movia. Mal respirava. Subitamente um sussurro:

- Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? - dizendo isso, Antonio expirou.

Marco assistiu a cena incrédulo, movendo sua cabeça negativamente, sem parar. Um investigador da polícia tocou no ombro dele.

- Você vem com a gente, meu chapa.
- Que seja - respondeu Marco olhando por trás do ombro.

Foram horas desgastantes, exaustivas, mas Marco finalizara seu depoimento. O investigador o agradeceu e pediu que entrasse em contato com ele caso soubesse de algo que pudesse ajudar na investigação.

- Pelo amor de Deus, se eu soubesse diria - disse a si mesmo enquanto saía da delegacia.

Com sua frieza calejada de anos, acendeu um cigarro e caminhou lentamente ganhando a calçada. Arqueou a sobrancelha e avistou um bar. Hesitou um pouco e passou reto. Jogou o cartão do investigador em uma caçamba de entulhos e cuspiu catarro numa árvore. Ando pela rua Onze de Julho até virar na Domingos de Morais. Poucas pessoas esperavam ônibus num ponto. Chegou ao metrô Santa Cruz. Uma longa jornada até o Tucuruvi, zona norte de São Paulo. Apenas ele estava no vagão quando o trem chegou ao destino final. Enquanto andava pela rua Ausônia, acendeu mais um cigarro e permaneceu ligado. Virou na avenida Mazzei e se arrastou por poucos metros até seu prédio. Sem porteiro com condomínio baixo. Subiu as escadas até o terceiro andar e abria a porta. O cheiro de cigarro já havia sido anexado ao ambiente e as paredes pareciam cada vez piores. O taco no chão estava descolado e vez em outra, Marco tropeçava em um. Foi até à geladeira e não encontrou cerveja alguma. Foi novamente à sala e abriu um pequeno armário onde achou um terço de garrafa de uísque. Serviu um copo arredondado e colocou três pedras grandes de gelo. Pensativo, sentou na velha poltrona empoeirada, vencida pelo tempo, e pegou o telefone.

- Alice, você viu no que deu toda a brincadeira? - em seguida tomou um gole do drink.
- Eu vi, eu vi. Estou aterrorizada! E se me descobrirem? Eu tô fodida! - sussurrou de forma exaltada a amiga de Marco.
- Cala essa boca, por Deus! O investigador se convenceu da história que os contei. Alguns conhecidos de Antônio, inclusive o padre da paróquia dele alegaram que ele tinha distúrbios mentais. E ninguém vai imaginar que a voz na casa dele e na igreja era sua. Fique tranquila - Marco girava o gelo no copo - executamos um plano perfeito!
- Plano perfeito? Não era para ele morrer! Só ser preso, só isso!
- E eu tenho culpa se a polícia demorou pra chegar? Se tivessem chegado, teriam prendido o Antonio com a faca na mão. Mas é um bando de incompetentes! Recebem uma denúncia, mas preferem ficar comendo coxinha. É foda, viu!
- Tá, tá bom. Pelo menos você está livre dele. Assim, nem de um sanatório ele liga. Ele já era.
- Sim, Alice. Vamos esquecer essa merda toda, ok? - Marco tentava finalizar o assunto enquanto tomava o último gole da bebida.
- Claro. Mas me diga uma coisa: não era mais fácil você se mudar daí? Ou trocar o número do telefone? - Alice enrolava o fio do telefone com seu dedo indicador.
- Você tá louca, Alice? Sabe o trabalho que é encontrar alguém que alugue apartamento sem seguro-fiança? Sem fiador? Quase impossível! Morou num apê legal, numa região legal, perto do metrô. O Antonio não servia pra nada mesmo, foda-se! Ele iria morrer de uma forma ou outra. Que se foda o Antonio!
- Calma, calma! Só estava curiosa! Mas eu entendo seu ponto de vista. Bem, eu passo aí amanhã, pra gente meter um pouco, aliviar a tensão... - sua voz já se esparramava em desejo.
- Vem agora. Te pego no metrô. Na catraca. Aproveito e passo no posto de gasolina pra comprar mais cerveja. Topa?
- Tô lá em quarenta minutos. Beijo.