sábado, janeiro 05, 2008

Jéferson Peninha

A Liberdade é de fato um lugar de liberdade. Enquanto calçadas se esforçam em comportar tantas mesas cheias de cervejas e petiscos, rodeadas de pessoas sorridentes, a palavra liberdade como conhecemos, pula do abstrato para o concreto em segundos. Concreto envelhecido e lascado. Concreto pichado e judiado. Judiado como os vagabundos e loucos que desfilavam por entre as mesas, exibindo uma habilidade incrível de se desviar de obstáculos, garçons, cadeiras e ombros. Mas Jéferson Peninha não mostrou aptidão para desvios bruscos e chocou-se contra meu ombro. Olhei pra trás e olhei para seu rosto. As rugas havia tomado conta de sua face, mas havia uma jovialidade inegável em seu sorriso.

- Desculpa aê - disse Peninha estendendo as mãos para mim, em cumprimento.
- Opa, fica tranqüilo - disse eu, estendendo minha mão aceitando as escusas dele.
- Tô um pouco desorientado, saí há pouco tempo da prisão. Matei um homem ali naquela esquina - disse, apontando para a esquina da rua dos Estudantes com a rua Galvão Bueno - mas hoje não mato mais ninguém, tô velho.
- Por que você matou?
- Dedo-duro tem que morrer.
- Ah sim...

Jéferson Peninha continuou suas narrativas, em pé, com um copo de cerveja nas mãos (que ele conseguiu da nossa mesa após fazer uma mágica incrível), sempre fazendo questão de mostrar um estilete enferrujado que segundo ele, era pra jogar no pescoço de vacilão. Mas na verdade o que vacilava era seu equilíbrio, que vez em outra falhava, fazendo-o balançar um pouco para o lado oposto ao meu. E balançando como um João Bobo, ele apontou para o prédio Regente Feijó:

- Tenho uma filha que mora ali! No quinto andar, pode procurar, ela é "modela". Esteve em Madri... você tem que ver os armários que saem juntos dela! Cheia de guarda-costas!
- Mas você não fala com ela? - perguntou minha amiga, Tálita.
- Ela não quer saber mais de mim! - respondeu fazendo com as mãos um gesto de desprezo.
- O que importa é a saúde - eu disse tentando amenizar a situação.
- Mas eu já fui o maior traficante aqui da região! O Glicério todo era meu! - disse com orgulho estampado no fechar do olhos e com semblante austero.
- Até a polícia pegar né? - Thiago, outro amigo meu. lançou.
- Me deduraram! Eu andava tranqüilo pelas ruas, sempre com um "oitão" na cintura e uma PT na bota! Sempre andava com um sobretudo preto e botas. Eu fazia a polícia dar marcha ré! Aqueles "cascavél", carro preto, vermelho e branco. Eles me olhavam com a mão nos bolsos e recuavam!
- Caralho! - eu exclamava pra passar algum interesse (apenas a Tálita prestava alguma atenção, enquanto o Thiago começava a ceder para o álcool).
- Matei o dedo-duro. Fiquei preso por catorze anos, seis meses e oito dias no Carandiru. Pavilhão 9. Ali só tinha bandido fodido. - contou, mostrando o antebraço riscado por uma cicatriz de estilete - Quase morri lá, algumas brigas. No pavilhão 6 estavam os "estrupadores", menininhas, mocinhas, "mulherzinhas", só os protegidos. Se fosse no meu pavilhão, passava o estilete na barriga! - continuou contando, agora levantando a camiseta e mostrando a barriga cortada por faca, centímetros acima do umbigo.

Continuávamos bebendo a cerveja, enquanto as pessoas de outras mesas nos fitavam, parecendo pensar qual seria o motivo da gente dar tanta trela para um mendigo. E meio às suas histórias, cortavamos as narrações com comentários breves, ou expressões monossilábicas. Às vezes me distraia com o clima fervilhante do bar, que estava lotado de trabalhadores, bandidos e putas. Observei um negro com uma touca branca de lã, que eu jurava ser um muçulmano. Mas logo dispensei minha concepção ao vê-lo esfregar a mão por debaixo da saia de uma puta, rindo com um cigarro repousado ao lado da boca. O Peninha mais tarde me disse que ele é conhecido como Chocolate e é um dos piores bandidos da região. Assim está melhor. Peninha detalhava cada história com uma malandragem que eu havia sacado: quanto mais tempo ele nos tomava, mais cerveja ele tinha pra mendigar da nossa mesa. Ignorei a malandragem amadora dele e continuei observando as pessoas. Em meio à exaltação de risadas despreocupadas de uma sexta-feira, que nem a chuva que caía maliciosamente estragava, uma mulher se destacou como uma chama em meio às cinzas. Não por sua alegria. Não havia sorriso no rosto dela, mas havia uma angústia assombrosa em seu rosto. Rosto que era de uma beleza poucas vezes vista, com incrível harmonia de espaço entre os boca, nariz, olhos, sobrancelhas. Seu cabelo loiro despencava em cachos teimosos, teimavam em ser belos. Ela se estendia na possível altura de um metro e setenta e cinco centímetros, exibindo curvas caprichosamente colocadas numa silhueta inebriante. Anéis adornavam seus dedos longos e elegantes, dedos estes que pegaram o celular que tocava. Ao falar, consegui ver seus dentes perfeitamente alinhados e brancos como nuvens de um dia ensolarado. Sua fisionomia orgulhosa foi substituída por uma que emanava uma mistura de raiva e decepção. Deus, quem a decepcionaria? A beleza dela me enjoou como um doce comido em excesso e logo voltei minha atenção para o Peninha e sua boca sofrida cheia de dentes tortos.

- Já matei muita polícia!
- Mas eram maus, não eram pais de família, né? - perguntou Tálita
- Siiiim, siiim, eram maus, filhos das putas! - respondeu imediatamente

Peninha olhou para o Thiago, apertou seu braço:

- Esse aqui ía lutar bem na cadeia!
- Quê isso... - Thiago disse tímidamente com cabeça baixa e sorriso vago.
- Hahahaha! Ía ser mocinha na cadeia! - Tálita se exaltou
- Não, não! Do meu lado não! Se ele tiver comigo, ninguém mexe nele! - Peninha interrompeu, erguendo o rosto, com ar de proteção.

Jéferson Peninha continuava alcançando memórias dos mais profundos abismos de sua mente. E de repente, com olhar soturno, sugerindo uma lembrança amarga, confessou:

- Existe um crime que me arrependo. Só um! - dizia olhando para baixo - Matei uma menina de 12 anos. Ela me pediu de joelhos para que eu não matasse o pai dela: "Por favor! Não mate meu pai!". Eu peguei a menina e coloquei a arma em sua cabeça. A polícia já estava lá embaixo, com um megafone o coronel gritou: "Peninha, se renda!". Eu atirei na menina e joguei o corpo dela do quinto andar. Negociei com a polícia e entreguei as armas. O coronel pessoalmente colocou o grampo nas minhas mãos e me levou. Paguei a fiança com a grana que tinha do tráfico e o cigano estava solto de novo!

De repente uma discussão sobre crimes afinçáveis se estabeleceu. O Edu que estava na mesa conosco, discordou de algo que o Peninha falou. O nosso amigo das ruas ficava ameaçando lançar a "cigana voadora" no pescoço de Edu. A "cigana voadora" consistia em lançar de forma certeira o estilete enferrujado na garganta do oponente. Tálita comentou em alta voz que se não matasse pelo corte, mataria pelo tétano. Peninha sorriu e apontou para ela:

- Você é inteligente! E bonita! Podia ser "modela"! Se fosse "modela", seria seqüestrada. E eu seria o primeiro a seqüestrar!

Todos caíram na risada. Jéferson Peninha ficou indignado com a cerveja e disse que sairia pra buscar cachaça, porque cerveja não funciona com ele. Aparentemente seriam os últimos momentos dele conosco naquela noite, ainda mais quando nos disse:

- Não entrem no crime. A vida do crime não compensa.

Mas embora ele tenha saído, às vezes voltava pra comentar algo, para dizer quem era quem naquele bar. Pra cerrar nosso cigarro. Pra apontar alguma mulher gostosa que passava pela calçada tumultuada.

- Você viu os peitos daquela morena? Nossa vou chupar eles! - disse Peninha com sorriso excitado.
- DUVIDO! - disse eu para atiçá-lo a fazer a merda, para ver o circo pegar fogo.
- Duvida? Então tá bom! - respondeu se dirigindo à morena.

O que aconteceu depois não deu pra ver, pois ele a seguiu até entrar num bar.

Jéferson Peninha é uma figura odiada por garçons e amada por jovens daquele cenário. Mas perambula como uma alma penada pelas calçadas daquela região, flutuando como uma leve pena, uma peninha de um imundo pombo. Sujo, esquecido e aflito por lembranças que ele não sabia se eram histórias ou estórias. Lembro da última coisa que ele me disse:

- Porra! Fui deitar ali no banco da praça e os "urubu" mandaram eu sair de lá! Barrrrrrbaridade!