domingo, dezembro 19, 2010

Desalmado

Eu acho que eram as contas, às vezes penso que era o meu momento conturbado com a Elisa. Enfim, eu andava nervoso naquela época e tudo me irritava. Eu era um animal acuado e inseguro. A falta de dinheiro e de amor me deixam extremamente assombrado e toda essa ausência de elementos de conforto me fazem ouvir jazz melancólico. Eu geralmente me fecho num mundo de tom esverdeado como lodo, como um pântano, um brejo amaldiçoado. Me alimento de sombras e fugas, de tristeza auto-induzida, de lágrimas saborosas. Quem não gosta de sofrer quieto num canto, curtir a sarjeta e se rastejar nos espinhos de uma depressão? O homem precisa disso, todos precisam. Mas santo Deus, estou me perdendo com toda essa divagação.

Eu lembro que eu ouvia Charlie Parker no meu iPod, tentando acalmar todo o turbilhão de pensamentos violentos que apareciam em série na minha mente. Eu andava tão preocupado e carente que existiam duas linhas de pensamentos: as violentas e as indecentes. Ou eu estava com raiva de algum cidadão sofrido que trafegava à minha frente tentando um lugar na lotada escada rolante da plataforma do trem que ia para a Julio Prestes, na Barra Funda ou estava babando em algum rabo. Seria melhor dizer ‘qualquer’ rabo. Eu me flagrava falando em voz baixa: preciso de uma boceta. Eu me envergonhava disso. Eu me auto-julgava, eu me auto-condenava e eu me auto-castigava. E toda aquela situação começava a me irritar porque eu - logo eu - um cara tão simpático e popular, estava impaciente para conversas junto às pessoas mais próximas. Eu não tinha saco para pequenos papos, estava cansado da humanidade. Olhar todos trafegando, entrando no trabalho, sabendo que fariam a mesma coisa de sempre, com o olhar conformado ou o sorriso de pobre estúpido, com todos os diabos, como isso me cansava.

Caminhei até a frente do meu trabalho e finalizei o meu cigarro. Meu pulmão estava pedindo arrego e eu, teimoso que sou, continuei a fumar, no pior clima seco e calorento que a cidade nos oferecia. Eu precisava daquela merda de vício. Puxei me crachá e me identifiquei no portão. Abaixei minha cabeça como um bom operário dos anos 20 faria, e me arrastei pelas estreitas ruas da empresa. Avistei a porta do meu setor e suspirei.

- Mais um dia, puta que pariu... – deixei escapar um breve murmúrio.
- É, mais um dia, amigão! – era Lopes, um paspalho pelego que sempre portava um sorriso pronto para os seus superiores na hierarquia da corporação.
- Hum... – olhei para o lado e ao avistá-lo tentando repousar sua mão em meu ombro direito, me desvencilhei e o desprezei.

Ele permanecia com um sorriso brilhante enquanto eu me afastava rapidamente de suas mãos sujas. Subi a escada e praguejei levemente, amaldiçoando os cigarros que raptaram e esquartejaram minha saúde. Malditos cigarros. Bati o cartão e percebi que estava dentro da tolerância de atraso. Pisquei os olhos lentamente, sentindo que minhas pálpebras pesavam toneladas. Bebi três copinhos de água e alguma garota de má-fama se dirigiu a mim.

- Que bela ressaca, Nelson! A noite foi foda, hein? – era Creusa, uma mulher horrorosa, mal penteada, mal organizada, mal compilada, enfim, mal feita. Deus não foi o responsável por ela. Não o Criador do Universo. Não teria feito tamanha presepada.
- Foda? Faz tempo que não fodo, coração. E não bebi ontem. Tô sem dinheiro. E se tivesse dinheiro, não beberia porque só beberia se não tivesse dinheiro...
- Você está confuso, isso sim.

Esbocei uma réplica à constatação da lambisgóia, mas preferia me reservar. Apenas fuzilei-a com meu olhar de homem vencido e me retirei do recinto. Cheguei em minha mesa e dei outro suspiro. Um peido sacana ameaçou abandonar meu corpo, mas o aprisionei com uma apertada no cu. De mim ele só sairia no banheiro. Chega de constrangimentos. Já vivo constrangido por viver, porra. Me acomodei na cadeira e iniciei minhas operações.

- Bom dia, Nelson! – Diogo me cumprimentava sem pretensão alguma.
- Bom dia – fui seco na resposta, mas ele entenderia, eu estava focado no trabalho.

E dentro do foco, eu passei boa parte do dia, sem olhar para o relógio, sem trocar uma bendita palavra com alguém, a não ser com os clientes que vez em outra insistiam em complicar minha bela vida. Mas eu estava lá, sentado como um velho negro sábio às margens do rio Mississippi, fumando um bom cachimbo e conversando com os pássaros. Eu era o senhor do meu trabalho. Eu era bom naquilo. Enquanto viajava, pensando em New Orleans, com toda aquela música e comida, fui interrompido pelo Diogo.

- Estou com dores, cara. Dor na nuca, sabe?
- Sei sim, tem um ambulatório lá embaixo, passa lá – eu não desviava o olhar da tela de meu computador.
- Putz, não sei se vou chegar até lá. Tô com uma dormência, um formigamento no rosto! O que pode ser? – Diogo estava angustiado, perdido em seus sintomas.
- Bom Deus, man. Deve ser dor de cabeça.
- Meu Deus, minha cabeça parece que vai explodir! Minha nuca, Pai Eterno, o que é isso?! – Diogo exaltou de vez a sua voz e se ergueu.

Como um raio partindo minha mente, parei para pensar: “ele está sofrendo um AVC!”. Levantei de minha cadeira e fui beber mais alguns copinhos d’água. Observei a feição do rosto de Diogo e era de dar dó. Ele estava atordoado, e sentia que ele tentava reagir, mas não conseguia se levantar. Eu realmente estava amargo naqueles dias. Fiquei ao lado do bebedouro, avistando de longe o pobre diabo. Estava esperando ele empacotar de vez para voltar ao meu lugar. Eu não sentia compaixão. Nenhuma boa atitude me atraía, eu queria paz, e paz significava silêncio e distância de qualquer confusão. E o Diogo era a tradução de uma boa confusão. Se ele morre ao meu lado, ou tem um derrame ou sabe Deus o quê, todos cairiam em cima de mim, com perguntas, fofocas do tipo: “ele não socorreu porque não quis” , “ele tinha inveja do Diogo e o deixou morrer” ou “o Nelson é um covarde e desalmado”. Pelo amor do que é mais sagrado, eu quero quilômetros de distância dessas picuinhas.

Diogo permanecia com um mão na cabeça e outra na nuca. Ninguém teve o trabalho de o notar. Nenhuma alma sequer parou para auxiliá-lo, para ouvir seus gemidos de dor. Um pingo de remorso se apoderou de mim, mas logo o sequei e voltei ao meu estado de sentinela. Eu esperava pelo desmaio do Diogo para voltar ao meu assento e continuar meu bom trabalho. Eu estava numa verdadeira tocaia sacana, bebendo litros e mais litros de água. O café chegou na hora certa e lentamente despejei uma boa quantidade do liquido negro no copinho de plástico. Fiquei assoprando e bebendo aos poucos, sempre de olho no desgraçado do Diogo que não cedia à pressão alta. Comecei a ficar impaciente e fui até o restaurante da empresa. Perguntei qual seria o cardápio do dia e quando a senhora que servia o almoço foi conferir as panelas, peguei um saleiro e o enfiei no bolso.

- Carne de panela, arroz, feijão e salada – a mulher me anunciou a lista de atrações do almoço.
- Ah ta, ta certo. Bem, até mais – me despedi com passos apressados. Minha produtividade no trabalho estava comprometida por um homem doente que me assolava com seus pedidos de ajuda.

Voltei ao bebedouro e alcancei um outro copinho de plástico. Abri lentamente a tampa do saleiro e despejei o equivalente a uma colher de sopa de sal. Preenchi o resto com água e misturei com o dedo indicador. “Agora ele morre de vez”, pensei, guardando o saleiro novamente no bolso. Não posso deixar de repetir, eu estava muito amargo naqueles dias. Pelo amor de Deus.

Quando me dirigia para a mesa dele, para oferecer meu elixir da morte, o desgraçado apareceu como uma visão infernal, correndo em minha direção, gritando e praguejando.

- Nelson, me ajude! Nelson! Minha cabeça vai explodir! Maldição! – dizendo isso, trombou comigo, me fazendo cair de bunda, derramando toda a água com sal.
- Vai se foder, Diogo! Que ideia idiota é essa? Sai de cima, desgraçado! - ele caiu como um dejeto por cima de minha barriga.

Ao virar seu corpo, seu rosto estava ensanguentado. Muito sangue saía de seu nariz e seus olhos estavam fechados. Ainda o ameacei, mais pela raiva que por qualquer outra coisa. Mas ele estava imóvel. Pessoas correram ao nosso encontro até que alguém gritou “chamem um ambulância!”. Me livrei do peso de Diogo e o larguei no chão. Um enfermeiro do ambulatório chegou com pressa e mandou as pessoas se afastarem.

- Porra, o que aconteceu com ele? Alguém sabe se ele estava se queixando de algo? Algum sintoma? – o enfermeiro tinha voz firme e inquiria a multidão enquanto segurava a cabeça do Diogo com seu braço direito.

Todos ficaram calados, inclusive eu. Eu não queria ser estrela naquela palhaçada. “Foda-se”, pensei. Mantive silêncio sepulcral.

- Alguém pode me ajudar a carregar o coitado lá pra baixo? – o enfermeiro deixava vazar um pouco de pânico em sua voz. As pessoas estavam paradas, atônitas e inutilizadas pela curiosidade.

Eu prontamente me afastei e fui para a minha mesa. E voltei a trabalhar. Aos poucos as pessoas se dispersaram e em alguns minutos aquela pausa coletiva havia acabado. Claro que o clima era outro. Pessoas tagarelavam sobre a boa pessoa que Diogo era, outras especulavam o que poderia ter acontecido. Eu olhei finalmente para o relógio e vi que faltava ainda um bom tempo para o fim do expediente.

- O Diogo não disse nada para você, Nelson? – minha supervisora era asquerosa com seus quarenta e tantos anos. Dentes apodrecidos e fantasia por homens de fio dental.
- Não me disse nada. Conversávamos sobre um pedido absurdo que presenciamos. Estávamos questionando algumas atitudes do setor de entregas. Só isso. Quando fui beber água, ele começou a sentir os sintomas.
- Que desgraça. Temos que esperar pelo diagnóstico do hospital.
- Vamos esperar. Tomara que dê tudo certo – voltei meu olhar para o monitor.
- Que Deus o abençoe... – ela estava transtornada, com olhar de piedade digno de santa da igreja católica.
- Amém – respondi sem ânimo, tentando fazer com que ela percebesse que estava sendo inconveniente naquele momento.
- Vou te deixar trabalhar agora.

Não respondi, apenas a chamei de galinha grávida em meu pensamento e permaneci hipnotizado pelas luzes de meu monitor.

As horas enfim passaram. Às dezessete horas, a supervisora chegou com a cara inchada, cheia de lágrimas besuntando suas bochechas flácidas e avermelhadas. Ela abraçava um analista enquanto uma outra mulher apertava sua mão.

- Foi um derrame! Ele está entre a vida e a morte! Meu Deus, ajude ele! Por favor, meu Deus! –
ela clamava no meio de todo o setor. As pessoas se sensibilizaram e foram até a triste mulher para consolá-la.
- Vamos rezar por ele, minha querida... – a faxineira ensaiou um abraço tímido.
- Vamos fazer uma corrente de oração. Vai dar tudo certo! – outra boa alma se pronunciou.
- O foda é que esses derrames em pessoas novas são como um enfarto, muito difíceis de se recuperar, acho que ele vai ficar com sequelas – resolvi quebrar meu silêncio.
- Como você é desalmado, Nelson! Agora é hora de pensamento positivo! – uma colega de meu setor, negra como um tição, vociferou como se convocasse um tipo de greve.
- Vá pro inferno, porra. Estou dando meu parecer – eu mantinha uma frieza impressionante.
- Tá certo, Nelson. Vá trabalhar que é melhor – minha supervisora me orientou em meio aos soluços.
- Que Deus tenha misericórdia do Diogo – fui sarcástico e dramático. As pessoas aceitaram minha invocação por misericórdia e se acalmaram.

O expediente chegava ao fim. Pessoas fofocavam à todo vapor. Pessoas se apinhavam ao redor do relógio para bater seus pontos. O Diogo era o assunto da vez. Mensagens de solidariedade invadiram nossas caixas internas de e-mail. Uma mulher, em seus quarenta e dois anos convocava pessoas para uma oração pelo Diogo.

- Você vai visitá-lo, Nelson? – um homem pálido como um doente de lepra se aproximou de mim, expelindo um bafo que misturava merda, cigarro e café.
- Deus de amor, Arnaldo, o que você andou comendo? Seu bafo está horrível, e é sério!

Arnaldo fechou sua mão direita em concha, levou-a até seu nariz e baforou um pouco de hálito na palma da mão.

- Caralho, ainda bem que você me avisou! – dizendo isso, puxou um Trident de canela e começou a mastigá-lo.
- Isso só vai piorar. Vá lavar a boca, escovar os dentes, sei lá.
- Será que é o estômago?
- Pode ser uma úlcera, sei lá. Vai saber, né?
- Deus me livre! E então? Vai visitar o Diogo? – o hálito estava repulsivo.
- Primeiro, vire a cara pra falar comigo. Segundo, não, eu não vou visitar. Deixe a família se encarregar disso – acendi meu primeiro cigarro em horas.
- Olha, primeiro é que quem tem cara é cavalo. E segundo, você é um desalmado, Nelson.
- Eu já cansei de ser chamado de desalmado. E se você não tem cara de cavalo, pelo menos bafo de cavalo pangaré você tem, meu camarada.
- Eu te mostro quem tem bafo de cavalo – Arnaldo se lançou contra mim, irritado com todas as ofensas gratuitas.

Me esquivei do primeiro soco, mas a joelhada veio logo em seguida. Consegui colocar uma mão nos meus bagos para protegê-los. Mas o choque entre o osso do joelho dele com a minha frágil mão de pianista classudo, foi doloroso. Ele deu uma derrapada e se recuperou, porém não esperava que eu me aproveitaria de seu descuido, afinal, ele ficou de costas para mim. Chutei seu traseiro, na parte entre as bolas e o cu. Ele gemeu e deu um leve salto com o impacto do peito de meu pé em seu rabo. Logo em seguida chutei o seu tornozelo direito, o que o fez iniciar uma corrida de fuga desengonçada. Segui o miserável por vinte metros, porém meu pulmão me limitou. Ergui meu punho direito, tremulando-o e gritando.

- Corra, cavalo filho da puta! Corra!

Pessoas estavam paradas, observando a curta briga que ocorreu, todas paradas na calçada do outro lado da rua. Peguei meu cigarro que havia caído no chão e o coloquei de volta em minha boca. Arrumei minha camiseta e sacudi o cabelo. Estava tudo em ordem. Atravessei a rua e percebi que todos os espectadores da luta apertavam seus passos, constrangidos com minha presença. Enquanto caminhava rumo à estação de trem de Presidente Altino, pensava em como eu estava estressado. Aquilo não estava certo, mas acabei misturando esses pensamentos com a vontade de ter um revolver na cinta, para sair atirando à esmo, para cima, para baixo, nas pessoas, nos cachorros, na polícia, enfim, trocando em miúdos, virar um maníaco ensandecido.

Verifiquei meu maço de cigarros e haviam apenas dois restantes. Parei na padaria e comprei mais um. Aproveitei e levei uma garrafinha de cerveja para me refrescar. Matei toda a bebida em poucos goles e me senti muito bem. Enfim eu estava em meu caminho de volta para casa e eu sentia uma sensação de alívio maravilhosa. Cheguei à catraca da estação, passei meu bilhete único e escutei o clássico barulho do trem atacando os trilhos em sua velocidade cambaleante. Ensaiei uma arrancada, mas minha corrida era preguiçosa e precavida, afinal, qualquer esforço a mais e eu poderia apagar, acordando em algum hospital fodido, sem minha carteira, iPod e outros pertences. Mas consegui chegar com tranquilidade, e ainda achei um assento vazio. Ao sentar, suspirei e me senti velho. Dei uma leve checada nas pessoas e todas pareciam gelatinas cinzas, tremulando com o movimento irregular do trem. Em meu iPod - que já estava bem ultrapassado – passeei pelos nomes que constavam em minha lista de artistas e resolvi escolher o bom e velho Cat Stevens, ou para quem gosta de atualizações, Yossuf Islam. Fui direto em minha música preferida dele, “Morning Has Broken”, e quando a voz serena dele começou a reverberar por minha mente, pensei: “puta merda, como sou brega”. Mas algo na voz dele me acalmava, talvez fosse o instrumental, eu realmente não sei, mas tudo o que ele canta me soa nostálgico, e no meu caso, isso é bom.

Os trens da CPTM – especificamente naquela linha – são muito lentos, mas são de uma lentidão pirracenta. O governo anda reformando todas as estações, está uma beleza, toda a modernidade, mas e as porras dos trens? O que importa no final das contas são os trens! Mas o óbvio da população não é óbvio para os governantes. Talvez eles sejam avançados demais. Por isso que estão lá, mandando e roubando, sem impedimentos. Esse pensamento invadiu minha mente e comecei a ficar irritado, ainda levando em consideração que eu suava em bicas, molhando meus finos cabelos, dando ao meu penteado um aspecto esculachado, largado. Comecei a mexer minha perna direita, exibindo clara ansiedade e o trem nem havia chegado à estação seguinte, que era relativamente próxima. De repente o trem finalmente fez o que parecia tencionar, parou e permaneceu assim por um bom tempo. Muitos trabalhadores impacientes começaram a se lamentar, alguns ironizavam o serviço de transporte público. Mas o que mais faziam era rir. Era melhor rir que chorar, eu concordo, mas será que será sempre assim? Rindo pra não chorar? E se o povo chorasse um pouco? Eu pareço um comunista pensando na solução para os problemas. Chega de crítica política e social, pelo amor de Deus, chega.

Em meio ao fuzuê que se instalou, um erro da natureza, assentado à minha frente, com sua boca semi-aberta, óculos de aro fino e cabelo duro mas cuidadosamente penteado, olhava para mim. Reuni todos os traumas da minha vida, lembrei de todos os valentões que assolaram minha vida, as pessoas que me ameaçaram de morte, bêbados que me perturbavam em baladas e nem todos eles unidos, não conseguiram me irritar tanto quanto aquela figura bizarra que permanecia imóvel, me encarando. O olhar dele era extremamente desafiador e um pouco disperso. Não sei como diabos isso seria possível, mas era assim que ele me olhava. Às vezes levantava o queixo me encarando por cima de seu nariz. Às vezes de forma sombria, inclinava sua cabeça para baixo e me olhava com ar suspeito. Eu não estava gostando e estava de saco cheio. O trem se arrastava lentamente saindo de sua paralisação e o Cat Stevens cantava “Into White” e essa canção é muito parada. Peguei meu iPod como se ele portasse alguma culpa pela irritação e troquei para “Prayer to God” do Shellac. A pior música que eu poderia ouvir naquela hora. O vocalista da banda vomita tanto ódio entre os versos, que eu não pude evitar de me contaminar. Todo aquele papo de “MATEI-OS, JÁ MATEI-OS!”, começou a compactar a minha paciência e finalmente meus braços fervilhavam. Eu já não os sentia. Era o sinal de que eu iria entrar numa briga, sempre foi assim. E o panaca permanecia olhando, arrumando a posição de seu óculos, como se quisesse focar uma imagem. Sua cabeça mexia, mas seus olhos me perseguiam. Ele deu um sorriso e isso foi a maldita gota d’água. Me levantei tirando os fones de ouvido e me dirigi a ele. Ele sorriu e não demonstrou surpresa alguma. Ele queria briga, só podia ser.

- Tá olhando o que? Eu posso saber? – tentei moderar ao máximo o volume de minha voz.
Ele continuava me observando, como se eu fosse algum objeto de estudo, uma espécie de macaco em extinção.
- Ei, fale comigo, filho de uma puta! – apontei o dedo para ele e em seguida dei um tapa em seus óculos.

Os óculos caíram no chão e os chutei. Ele permanecia em estado de observação, sem aparentar cautela ou medo. Minha cabeça estava latejando de raiva e resolvi descer um bom tapa em sua cara. Ele soltou um som, que parecia o sopro de um flauta e isso me impressionou. “Que porra de homem é esse?”, pensei. Ao redor, as pessoas começaram a reclamar, e eu podia ouvir cochichos.

- Porra, deixa o cara em paz! Eu trabalhei o dia inteiro, cacete! – um homem de farto bigode gritou do meio do vagão.

Eu mostrei meu dedo do meio para ele e voltei minha atenção para o maluco. Ele não falava nada, apenas olhava. Ele tinha um deboche instalado nas curvas de sua expressão facial, um sarcasmo tão ostensivo, que comecei a recear. Mas o que me tirou do sério foi um sinal de positivo com o dedo polegar direito que ele fez, para mim. Ele caçoava da minha força, devia achar meu tapa uma piada. Fechei minha mão direita e com destreza desloquei perfeitamente meu ombro para trás, e joguei meu braço com toda força do mundo ao encontro do rosto dele. Aquilo que era um murro bem encaixado. A massa de dedos fechados sofreu o impacto na fronteira entre a narina direita e os lábios superiores. Ao me concentrar no soco, perdi estabilidade com o movimento e pra variar, o trem tremeu. Cai em cima de uma senhora. Um homem moreno, com barba por fazer e cabelos grisalhos se ergueu e me puxou pela gola da camiseta, me lançando contra a barra de alumínio que ficava ao lado da porta do vagão. Me ergui rapidamente e me posicionei para a briga. O homem era forte, mãos calejadas e os braços com circunferência duas vezes maior que a dos meus. Mas eu ainda estava com muito ódio e meu orgulho me impulsionava para a confusão. Eu estava liquidado, todos estavam incomodados com o brigão e em breve eu estaria numa delegacia ou algo do gênero.

- Meu Deus do céu! O que aconteceu com ele? Meu Jesus! – a senhora, em quem caí, gritava horrorizada.
- Aquele homem bateu nele! – era o grisalho me denunciando.
- MAS POR QUE VOCÊ BATEU NELE? ELE É AUTISTA!
- Puta que pariu... – eu falei com voz trêmula.
- A senhora disse que ele é autista? – novamente o grisalho se intrometia no assunto.
- Sim, ele tem problemas mentais, meu senhor! Por que ele bateu no rapaz? – a senhora perguntava com os nervos à flor da pele.
- ESSE HOMEM É LOUCO! – um homem loiro, bem apanhado, de cabelos arrepiados e muito bem perfumado, se aproximou de mim.
- O que você tem a ver com isso, seu merda?! – gritei tentando intimidá-lo.
- Você bateu num deficiente, seu bosta! – uma negra com uma bunda enorme e calça extremamente apertada vociferou por trás de mim, batendo com sua sombrinha em minha nuca.
- Mas que ideia é essa, sua preta desgraçada?! – me virei para ela, colocando as mãos na nuca.
- Você é um maníaco e ainda é racista? Vamos pegar ele de porrada! – o grisalho de novo estava no centro das atenções.

E o pau comeu solto. Senti uma braçada em meu ombro esquerdo. Um ponta pé na lateral de meu joelho. O trem chegou na estação Domingos de Moraes e as pessoas na plataforma, ao ver o linchamento, evitaram entrar .
- Deus, me ajude! – gritei embaixo da saraivada de mãos que caia sobre mim.

Mas Deus, se estivesse em carne e osso por ali, também me daria uma boa coça. Uma pessoa entrou no trem, um adolescente com uma tatuagem de estrela no ante-braço, e sem perguntar o motivo, começou a largar o pé pra cima de minhas costelas. Eu entrei em pânico, erguendo minhas pernas e tentando acertar alguém, mas foi em vão. Alguém segurou meu pé direito e o torceu. Tentei aliviar a dor, fazendo meu corpo seguir para o lado da torcida, mas alguém travou meu corpo com murros no peito. As portas do trem fecharam e seguiram para a Lapa. A senhora que cuidava do maldito autista, bateu sua bolsa em minha cabeça. Eu estava apagando e ouvi um estalar de ossos. “Merda, quebrou”, pensei. Avistei minha camiseta encharcada de sangue e pensei na quantidade de litros de sangue que um homem precisa perder para morrer. Meu tênis havia sido retirado e deram um jeito de sumir com minha carteira e iPod. Meu celular, ainda estava no bolso direito, mas eu me conformei com a ideia de nunca mais vê-lo. O estranho de tudo foi que eu não pensava na morte. Pensava em meus bens sendo roubados. Eu era um miserável.

As pessoas, de uma hora pra outra cansaram de me espancar. Ficaram entediadas e fizeram uma roda ao meu redor. Eu ouvia algumas vozes, algumas especulações. Sugestões sobre os motivos do espancamento. Eu ainda me mexia, vagarosamente, como se quisesse alertá-los de que ainda estava vivo. Mas o que eu não esperava aconteceu: eles me ergueram e quando chegamos à Lapa, fui retirado do trem nos braços de todos os meus molestadores, como um Cristo prestes à ser crucificado, rumo ao seu calvário. “O mundo está cheio de ódio”, pensei. E nos braços do povo, fui exibido para tudo e todos, o homem cansado, uma verdadeira vítima da vida moderna, com todos os relacionamentos frios, trabalhos abusivos e transportes públicos precários. Um mártir da correria do dia-a-dia, sendo removido do trem e lançado na plataforma. Meu corpo rolou até a parede da estação, cheia de lindos grafites coloridos. E ali jazi por alguns minutos. Meus espancadores voltaram correndo para o trem e ficaram com expressão de alarde. Mais pessoas presenciaram a desgraça, ao meu redor, é claro. Pensei em quantas rodas de pessoas são formadas no mundo, apenas para presenciar coletivamente uma desgraça.

Por incrível que pareça, sentia o fim cada vez mais distante. Sorri um sorriso vermelho, vermelho vivo. Eu estava em frangalhos, mas naquele dia me libertei. A Elisa e sua frieza não valiam a pena. O trabalho e o dinheiro não valiam tudo aquilo. Finalmente eu vi a luz no fim do túnel. Custou uma boa quantidade de sangue, alguns dentes e a integridade de uns pares de ossos, mas finalmente eu, Nelson, mais conhecido como o homem cansado e estressado, estava livre.

segunda-feira, novembro 15, 2010

O Chefe


- Opa chefe, tem um desses pra me descolar? – um homem com cabelos lisos e oleosos, com cavanhaque suspeito e óculos surrados se aproximou apontando para meu cigarro.
- Quem tem chefe é índio, amigão... – e sentei a mão na cara do homem estranho.
Ele caiu rapidamente, mais pelo susto que pela força. Eu nunca venci uma briga, nem em meus sonhos. São frequentes os sonhos onde apanho, ou então, na melhor das hipóteses, bato em alguém porém sem força alguma. Acordo me sentindo impotente, levemente desesperado, pensando na fraqueza dos meus socos. Enfim, o homem sentou-se com a palma da mão esfregando a maçã do rosto, claramente transtornado.
- Eu pedi um cigarro... – o homem tentou se erguer, falando com voz mansa.
- Tome – estendi minha mão entregando dois cigarros ao pobre diabo - pegue um de brinde.
- Eu merecia um maço por isso.
- Vá tomar no cu, rapaz. Não tente me explorar – ergui novamente o braço para ajudá-lo a levantar.
Ele se ergueu, limpou a parte traseira da calça e o ombro direito. Acendeu um cigarro e ficou me fitando com expressão atordoada. Deu três longas tragadas e olhou para baixo.
- Eu to cansado de ser escorraçado. Eu já fui um bom professor de história. Mas acho que ler aquelas merdas de Marx e Engels só contribuiu para minha ruína. Você não pode lutar contra o sistema.
- Bom Deus, você é comunista? – perguntei enquanto me distraía com uma mulher rabuda que passava pela calçada no outro lado da avenida.
- Sou. Mas como eu acabei de dizer, não há como lutar contra o sistema.
- E o que faz hoje em dia?
- Simplesmente ando por aí. Não pertenço ao sistema, não pago impostos para esses bandidos...
- E nem trabalha – interrompi o homem.
- Nem trabalho – complementou com olhar soturno –, mas não por falta de oportunidades. Simplesmente não vou me entregar ao jogo.
- Então você resolveu mendigar, pedir cigarros e bebida pra gente desconhecida?
- Em tese sim. Participo aleatoriamente de passeatas, manifestações e tento me manter longe da confusão. Mas como você vê, vivo me fodendo.
- Vamos ali naquele boteco – apontei para a pocilga – te pago uma cerveja.
- Ta querendo me comer, é? – agora o homem sofrido me olhava confuso.
- Ta querendo morrer? Acha que quero enfiar meu pau no seu cu sujo de pedinte?
- Tomo dois banhos ao dia. Sou limpo.
- Você ta querendo dar a bunda?
- Ta louco? Você que ta querendo me pagar cerveja.
- E você ta dizendo que é limpinho... Precisa dar satisfação pra mim?
- Só quis explicar que não sou um porco.
- Tudo bem, foda-se. Vai querer uma cervejinha?
- Ta certo, chefe.
Acertei um soco oportunista na região do fígado do homem estranho. Ele grunhiu e praguejou algumas curtas palavras. Suas pernas tremiam enquanto se encurvava. Tossiu por alguns segundos e cuspiu uma bola considerável de catarro esverdeado.
-Eu já disse te disse que quem tem chefe é índio, seu malandro.
- Tudo bem, tudo bem. Vamos ao boteco.
Atravessamos a avenida sem trocar palavras. Eu estava aproveitando o momento. Eu era o fortão, o violento.  Eu era o cara mau da história e estava gostando da sensação. Há muito tempo não andava de rosto erguido. Utilizei de alguns trejeitos para simular uma virilidade exagerada. “Eu poderia ser assim para sempre”, pensei. Mas olhei para meus braços finos e decidi que seria assim somente diante do comunista indigente.
Chegamos à espelunca que chamavam de boteco e sentamos diante de uma mesa de ferro vermelha, patrocinada pela Brahma. As cadeiras, também de ferro, apresentavam sinais de ferrugem em estado avançado. Um homem obeso não poderia utilizar uma cadeira como aquela. Ergui minha mão e fiz sinal para o atendente, solicitando uma cerveja. O atendente me olhou com o rosto traçado pelo marasmo e me chamou ao balcão. Reclamei em voz baixa e fui rapidamente saber o que ele queria.
- Olha aqui, chefe... Nós não servimos cerveja na mesa. Tá vendo algum garçom por aqui? – enquanto falava, gesticulava como se quisesse me mostrar algo.
- Do que você me chamou?
- Chefe...
Peguei um chumaço de cabelos do atendente e os puxei até o balcão, fazendo sua testa estalar contra a superfície dura. O impacto gerou um pequeno estrondo.
- Quem tem chefe é índio, seu puto – dizendo isso, acendi um cigarro e olhei para o homem ainda desorientado. Soprei fumaça em sua cabeça e novamente puxei seus cabelos – Agora você vai nos servir a cerveja na mesa, você me ouviu?
- Sim, agora me solte! – sentia o desespero dele vibrando em meus nervos.
O homem se recompôs, arrumando o cabelo. Caminhou até a geladeira e buscou uma Brahma gelada. Abriu a garrafa e a deixou em nossa mesa.
- Sirva nossos copos, seu palerma! – dessa vez deixei minha frieza de lado e me exaltei.
- Não é necessário, eu sirvo – o comunista se antecipou fazendo gesto apaziguador.
- Quando eu pedir para um comunista intervir em assuntos de boteco, eu te chamo. Mas por hora, fique na sua.
- Você é um cara estranho. Você me dá pena.
- O pedinte na história é você, eu tenho pena de você.
Enquanto isso, o atendente ficava pardo ouvindo nossa discussão.
- Não fique parado aí! – apontei meu dedo indicador, torto na ponta, para a cara do atendente.
- Pois não – e lentamente o atendente despejou cerveja em nossos copos.
- Ah! Finalmente um pouco de classe nessa maloca do caralho! – enfim despejei algumas palavras denotando prepotência e desprezo.
- Meu Deus do céu... – o andarilho vermelho lamentava discretamente por todas as minhas atitudes.
- Você é comunista, seu homem ruim. Você não acredita em Deus.
- É uma expressão que todo mundo usa.
- Pro inferno com as expressões! Vamos beber!
O atendente pediu licença e eu consenti. Um grande galo se formou em sua testa. Eu dei uma risada de satisfação e peguei um palito de dentes. Comecei a mordiscá-lo deixando a pequena peça de madeira repousada no canto de minha boca.
- Você quer um emprego? Posso te conseguir – inquiri a triste figura que bebia comigo.
- Eu já disse que não me faltam oportunidades. Eu não vou me entregar à esse sistema falido
- Sistema? Cara, desde que o mundo é mundo, existem fortes e fracos. Sempre vai valer a máxima: “quem pode manda, quem tem juízo obedece”. Não adianta se excluir e achar que está fazendo algo.
- Eu tenho o direito de fazer o que quiser com minha existência.
- Direito? – fiz um ruído de desprezo com meus lábios – Balela! Você deveria agradecer ao bom Deus a graça de poder existir. E eu deveria blasfemar contra todo tipo de divindade por causa de sujeitos como você.
- Qual é o problema com sujeitos iguais a mim? – dizendo isso, tirou seus óculos e limpou as lentes utilizando hálito e a camisa.
- Sujeitos como você são ditadores enrustidos. Se dessem o poder à vocês, vermelhos desgraçados, vocês iriam cortar todas as liberdades básicas do povo, dando pão e salsicha de comida e trabalhos braçais que não tem nada a ver com nosso tempo.
- O que tem a ver com nosso tempo?
- Tecnologia. Você viu os avanços da nanologia? Os chips estão cada vez menores e armazenando cada vez mais dados. A internet, os serviços... o ser humano está evoluindo, trabalhando com a mente e deixando as máquinas cuidarem do esforço.
- O homem está ficando obeso e relaxado, é isso o que acho.
- Mas é a maldita evolução das espécies, pelo amor de Deus! – ensaiei uma levantada triunfal, erguendo os braços, detendo a razão em minhas mãos, mas eu estava muito próximo à mesa e percebi que o movimento demandaria mais habilidade. Desisti.
- Evolução. O homem estagnou. Ele não evoluirá mais. Somente o socialismo poderá nos levar rumo à uma sociedade mais justa. Esse papo de evolução trata o homem como um indivíduo. Precisamos pensar no coletivo! – Agora o revolucionário de meia pataca estava se exaltando – O egoísmo está fodendo com a base da sociedade, está destruindo a família!
- Calma, aê, sua imitação barata de Che Guevara – acalmei seus ânimos fazendo sinal de silêncio com o dedo indicador torto – Por que você não mata um presidente? Por que não monta uma guerrilha armada?
- E quem se juntaria á mim? São todos revolucionários de butique.
- E você é um revolucionário exemplar? Você não passa de uma ruína ambulante. Só isso.
- Olha aqui, chefe...
Peguei meu copo preenchido com cerveja até a metade e esparramei o líquido dourado no rosto dele. Ele prontamente esfregou os olhos e deu um soco na mesa pois sentiu as bolhas de gás da cerveja estourarem em seus olhos. Mas sua revolta foi abafada por um tapa que desferi em seu rosto, com as costas de minha mão direita. Ele gemeu levemente e desviou seu olhar para um cartaz de cerveja. A mulher no cartaz era gostosa.
- Quem tem chefe é índio. Eu já te disse, seu comuna vagabundo. Mas nunca te disse uma coisa: você parece com o Trotsky, sabia? – acendi outro cigarro.
- É, eu sei. Quem conhece o Trotsky sempre me diz isso.
- Pois então te chamarei de Trotsky. Ou prefere Leon?
- Eu prefiro meu nome, Demétrio.
- Que nome ridículo. Seus pais estavam de ressaca quando te registraram, aposto minhas bolas nisso.
- Provavelmente isso é verdade, pois eles era alcoólatras.
- Pais alcoólatras... você só poderia ter virado comunista – deixei aflorar mais um pouco de minhas inclinações de extrema  direita – pelo menos não virou poeta ou vegetariano. Embora vocês todos, no final das contas, não passam da mesma coisa.
- E qual é o seu nome? Posso saber?
- Artur. E quero ver meu nome tatuado no seu rabo – soprei fumaça na cara dele.
- Artur, você é uma espécie de neo-nazista? Integralista? Pertence a alguma frente nacionalista?
- Pro inferno com a política e suas ideologias, Trotsky.
- Me chame de Demétrio – me interrompeu enquanto furtava um cigarro de meu maço.
- Não, seu nome é Trotsky. E pare de se aproveitar de meus cigarros, seu meliante.
- Você fala como um militar dos anos 50. Isso é repugnante.
- E você se veste como um comunista dos anos 20. Parece os políticos do Partido da Causa Operária ou do PCB.
- O velho partidão... Remanescente das ideias do grande Luis Carlos Prestes!
- Luis Carlos Prestes... – fiz novo ruído de desprezo com os lábios – Perambulou pelo Brasil e não fez porra nenhuma... – coloquei mais cerveja em meu copo, esperando a resposta que o bastardo me daria.
Ele não respondeu. Ajeitou os óculos em seu rosto e pediu licença. Levantou-se lentamente e caminhou até o balcão. Seus sapatos eram surrados, como os de um vagabundo americano dos anos 30. Usava um blazer grosso de algodão com os cotovelos de couro, típico de um professor fracassado com tendências esquerdistas. Dei uma risada de deboche ao perceber que ele conversava em voz baixa com o atendente. O galo na testa do atendente era evidente e vergonhoso. Os dois conversavam sem dar pista do que poderia ser o assunto. Comecei a ficar intrigado.
- Meninas, podem parar de confidenciar a cor de suas calcinhas? Seu imprestável, traga mais cerveja aqui na mesa!
Ninguém me respondia. Coloquei outro palito de dentes na boca e me irritei. Eu estava extremamente embriagado pelo poder que o testosterona proporcionava.
- Seus paspalhos! O que vocês estão confabulando? – utilizei de meu vocabulário inadequado para impressionar um pouco.
Eles se voltaram para mim e ficaram parados, inexpressíveis e imóveis. Trotsky tinha um par de óculos opaco e riscado e aquilo me deixava indignado. Nunca confie num homem de óculos sem brilho. Tentei insultá-los mais um pouco, mas nada os fazia alterar a expressão.  Fiquei enfezado e quando me preparava para levantar e dar uma lição naqueles homens mal-criados. Mas eles foram mais rápidos e se correram em minha direção. Levantei-me derrubando a mesa, fazendo um obstáculo para meus agressores. Funcionou melhor do que eu esperava. O comunista caiu no chão, em cima de seu ombro e ganiu, desta vez com tom escandaloso. O atendente era mais esperto e conseguiu frear sua corrida antes de se encontrar com a mesa. Cacos de vidro se espalhavam por todo o chão. Lamentei pelo Trotsky não ter se ferido em um deles. O atendente alcançou uma vassoura reclinada ao lado da porta do banheiro e começou a gritar como se fosse um guerreiro mongol conquistando algum reino sofrido asiático. Tomei uma cacetada no braço pois tentei me defender. Como doeu. Mas tive a frieza de pensar que não poderia gritar. Não eu, o homem violento do Cambuci. Cerrei meus dentes exibindo ódio e me joguei contra o pobre diabo. Eu me sentia vivo, meus braços estavam leves, anestesiados pelo ódio. Finalmente aprendi a brigar.
- Por favor, por favor! Não me bata! – o atendente estava caído no chão em posição vexatória.
- Eu vou te currar as orelhas! – não sei de onde tirei essa frase, mas soou bastante agressiva.
- Por favor, leve o que quiser, mas não me espanque! Oh, meu Deus!
- Eu não quero nada desse bar maldito! Apenas jure que nunca mais vai tentar agredir um cliente! – sempre quis fazer alguém jurar em estado de humilhação.
- Eu juro! Eu juro! – o atendente estava de joelhos. Percebi que havia um corte na parte calva de sua cabeça.
- Que Deus tenha misericórdia da sua alma. Ponha-se em pé, seu vadio – eu estava soberbo em meu papel de senhor das ruas.
O atendente levantou-se e prontamente correu para trás do balcão. Olhei para a jukebox e resolvi  procurar por uma boa canção. Procurei no arquivo da máquina por algum disco conhecido. Apenas apareciam álbuns de forró. Malditos nordestinos que estão morando perto do Largo do Cambuci. Todos os porteiros dos prédios e vigias de lojas da região estão bebendo nesses botecos. Comecei a me irritar com a jukebox. Encaixei um bom murro no equipamento e olhei para trás, verificando a situação do bar. O Trotsky estava sentado no chão, sem ânimo para nada. Um farrapo de gente. O atendente permanecia atrás do balcão, manipulando um pote de vidro cheio de ovos cozidos, rosados e em conserva. Um nojo só.
- Não tem música decente nessa jukebox, caralho? – intimei o pobre atendente que escolhia as palavras para me responder.
- A... A... A ma... maioria é forró. Ma... Mas tem coisa bo... boa sim – o homem sofrido gaguejada constrangido. Senti uma leve pena.
- Qual é o seu nome?
- Carlos. Mas me... me chamam de Ca... Carlão – e continuava gaguejando com seu triste sotaque de pernambucano.
- Carlão? Pra mim é Carlinhos – menosprezei seu apelido e apontei para os cigarros expostos numa estante na parede atrás do balcão – Carlinhos, me jogue um maço de Lucky Strikes vermelhos.
Ele rapidamente trouxe até a jukebox, com um cinzeiro limpo. Agradeci o fraco homem com um leve toque em seus ombros. E voltei a procurar um bom álbum na merda da jukebox. Depois de alguns segundos de pura atenção, achei uma preciosidade: Nelson Gonçalves. Meus nervos se acalmaram e escolhi a música “Negue”. Aquele compasso de bolero começou a preencher todos os espaços da espelunca. Dei um sorriso e acendi um cigarro.
- Agora você vai ouvir uma boa cantiga, Carlinhos. Nada de risca-faca nessa porra.
Ele ficou em silêncio, sem reação. Continuou seu trabalho. Trotsky permanecia sentado. Achei aquela cena ridícula.
- Trotsky, levanta daí, seu miserável, ou vou te erguer em meio a pontapés! – meu esporro foi imponente e enérgico.
O deplorável marmanjo levantou-se e procurou uma cadeira. Joguei dois cigarros para ele e o isqueiro. Mandei ele devolver depois.
Nem percebi que a noite já havia chegado. Fui para fora do boteco verificar a avenida. A Lins de Vasconcelos estava cada vez mais movimentada. Pessoas não paravam de passar na calçadas. Carros cada vez mais bonitos passeavam pelo asfalto novo que se prolongava por quilômetros. Voltei ao bar e sentei  numa cadeira, cruzando minhas pernas. Ergui meu rosto e passeei meu olhar por todo o boteco.
- Cavalheiros, isso que é música! – ergui meu copo de cerveja – Carlinhos, pegue uma cerveja para beber. Sou generoso. Sou mau, mas generoso! E não esqueça de servir o Trotsky.
Ele me obedeceu e serviu os copos. Preencheu o que faltava no meu e foi para trás do balcão.
- Só mais uma coisa, Carlinhos. Isso é uma espelunca, mas nada justifica essa baderna toda. Quero esse lugar arrumado! E é pra hoje, seu picareta!
- Sim senhor.
Resolvi que frequentaria aquele bar daquele momento em diante. A jukebox precisava de uns ajustes, mas o preço da cerveja estava decente e o Carlinhos era um pelego frustrado e cabisbaixo. Sobre o Trotsky, bem, darei um jeito de fazê-lo frequentar aquela espelunca. Depois que ele tatuar meu nome no rabo, é claro.
De repente um toque de relógio começou a soar. Cada vez mais alto e irritante, como se fosse uma sirene de bombardeio. Olhei para os lados e Trotsky não estava mais lá. Carlinhos evaporou e o som do relógio era cada vez mais insuportável. Minha cabeça estava por explodir.
- Alguém pare com essa porra! Vou espancar o dono desse relógio! EU VOU MATAR O MALDITO DONO DO RELÓGIO!
Quando percebi, estava em minha cama, tonto e confuso. Levantei em um pulo e corri para o banheiro. Me olhei no espelho e toquei em meu rosto. A barba estava por fazer e meu cabelo estava amarrotado. Voltei para a cama e o relógio ainda tocava. Como um soco, veio a percepção: eu sonhei com tudo aquilo. Dei um murro no relógio e praguejei. Senti uma frustração terrível e abaixei a cabeça. O rosto do Trotsky e do Carlinhos ainda voavam pela minha mente.
- Trotsky, seu comunista safado. Se você existisse, eu acabaria com sua raça! – quando ergui meu rosto, minha cabeça latejou. Ressaca.
Fechei a janela do quarto e acendi um cigarro. Busquei dois comprimidos de Anador e os tomei. Pensei no covarde do Carlinhos e no respeito que conquistei à base da violência gratuita.
- Diabos, ao menos venci uma briga em sonho. 
Deitei na cama e esperei o sono voltar.

quarta-feira, julho 21, 2010

Em Nome do Pai

Eu estava olhando para o teto, mais precisamente para o ventilador de teto que girava enlouquecido, fazendo pouco barulho, é verdade, mas parecia que a qualquer momento iria alçar vôo e repousar em meu pescoço, cortando-o com velocidade, me garantindo uma morte indolor. Sempre tive esse medo, e nunca soube instalar um maldito ventilador de teto com segurança. Enfim, ventilador de teto a parte, eu estava pensando na vida, ouvindo pela terceira vez o disco Hate dos Delgados. Estava sublimado com a voz da vocalista, os arranjos monumentais, mas ao mesmo tempo que eu me deliciava com cada detalhe cuidadoso da execução dos instrumentos, o refrão de ‘The Light Before We Land’ me desferia um golpe no peito, um golpe gelado, como se as dores do passado estivesse concentradas num raio e esse maldito raio escuro me atingisse com toda potência do mundo. Era a maldita sensação da nostalgia. O engraçado de tudo isso é que eu nunca ouvi esse som na minha infância – que eu saiba, eles nem existiam na época – mas uma vontade de chorar me tomava, como se eu houvesse detectado alguma lacuna vazia na minha história, algo que deixei de fazer ou algum pecado covarde de minha existência. Preparei-me para o momento em que minhas lágrimas cairiam, mas nada aconteceu. Senti meus olhos secarem ainda mais, me frustrando, afinal, esse papo de que homem não chora é pura balela. Todo homem, em algum momento na vida, precisa chorar, como se fosse um êxtase religioso, como uma iniciação em uma seita absurda ou seja o diabo que for, o homem precisa de lágrimas lavando seu rosto e sua alma. Piegas? Pau na sua bunda.

Tomei coragem para levantar da cama e verificar o estado da geladeira. Estava vazia, mas não tem nada a ver com minha situação financeira. Eu não compro muita comida, tenho o costume de jantar fora, na padaria ao lado do prédio que moro. Compro mais bebidas e a geladeira só está vazia porque estamos no fim do mês. Sem desespero. Dei uma rápida olhada no computador que estava ligado com o programa de torrents. Estava baixando um filme, ‘Em Nome do Pai’, história real e muito triste, de um pai que vai para cadeia apenas para acompanhar o filho que havia sido confundido com membro do IRA, aquele exército revolucionário da Irlanda. Enfim, tem uma boa história (jamaicanos na cadeia lambendo peças de quebra-cabeça banhados em ácido) , boa trilha sonora (Bob Marley e Kinks) e uma atuação sensacional da Emma Thompson – a desgraçada sempre teve aquela cara de velha? – como advogada do coitado irlandês. Esse filme me marcou desde os onze anos, quando o assisti pela primeira vez. Mas com todos os deuses, o fato é que uma janelinha de conversa do Messenger piscava. Era o Fernando, um dos poucos amigos que tenho. Depois da morte do Alfredo, me aproximei ainda mais dele, talvez seja pela grande semelhança entre Fernando e Alfredo. Gosto musical, repulsa por qualquer religião ou política, a vida que levam (que Alfredo levou até seu suicídio), enfim, eu me sentia extremamente completado ao conversar com qualquer um deles. Pois bem, o Fernando me convidou para ir a casa dele. Eu não gostava muito de ir até lá por um motivo de nome antiquado e ridículo: Aristeu.

Aristeu é um evangélico neo-pentecostal, daqueles que vivem com um adesivo grudado no rabo, escrito DEUS É FIEL. Vivem com uma bíblia postada embaixo de seus sovacos, e tem líderes que vivem inovando as doutrinas e o modo de usar a bíblia, guardando milhares de dólares dentro dela para enganar a fiscalização no aeroporto. Tatuam qualquer merda em hebraico na nuca e andam com uma estrela de Davi enrolada no pescoço. Aristeu é um deles. Sempre tem um versículo para se defender, mesmo que seja na hora errada, na ocasião menos favorável possível. E eu não tenho tolerância para pessoas cínicas como ele. Nem o próprio Fernando tem tolerância com o pobre diabo pois vive acertando socos na cara dele, sempre quando descamba em proferir discursos pré-calculados e copiados de seus pastores. Resolvi ligar para o Fernando, não gosto de conversas longas por Messenger.

- Fala rapaz! Como estão as coisas, Fernando?
- Opa meu jovem! Vão indo, vão indo... Ué, por que me ligou? Caiu sua conexão?
- Não, é que não gosto de longas conversas por internet, fico de saco cheio de digitar, sabe?
- Sei, então, o que me conta?
- Cara, não sei se vou aí. O Aristeu, man. Esse filho de uma puta me tira do sério. Você ainda consegue amaciá-lo na porrada, já eu tenho vontade de enfiar uma faca no pescoço daquele viado. Ele fala muita bosta, ele é persistente em reproduzir as mentiras em que acreditou, sabe?
- Eu sei, mas cola aqui, mano. Ele vai chegar tarde, hoje tem vigília na igreja dele. Estou livre dele hoje, por isso que te chamei. Além do mais, o Alberto vem também.
- Caralho, faz tempo que não falo com aquele maldito! Se é assim, logo mais to aí.
- Nelson, só uma coisa: traga uma garrafa de uísque – Fernando solicitou com voz sombria e ao mesmo tempo cheia de clemência.
- Porra, você quer quebrar minhas pernas... É fim de mês, man. Não dá pra comprar um J&B.
- Não tem problema, compre um Passport e tudo fica de boa.
- Quanto é que ta uma garrafa dessa merda? Quarenta mangos?
- Trinta e pouco, sei lá... Por aí.
- Bem, ainda é melhor que comprar um J&B. Já já eu colo por aí. Abraço.
- Abraço.

A noite aplicava um mata-leão violento na tarde, e escurecia nosso lado do planeta. E nessa putaria toda, um frio se instalava com toda a malícia que uma massa de ar polar continha. Acho que fazia uns quinze graus e fui para o chuveiro tomar um banho rápido. Olhei para o sabonete seco e cheio de pêlos, e lamentei ter esquecido de tirá-los no banho anterior. Fiquei tirando-os com as unhas, enquanto elas ficavam cheias de sabonete e pêlos grudados. Passei as unhas na parede e comecei o banho. Estava pensando em tantas coisas que acabei terminando o banho sem passar o xampu. Percebi isso ao secar os cabelos e notar uma textura áspera. Detesto meus cabelos finos. Lembro das garotas dizendo: “Olha só que cabelo liso! Ele tem um cabelo tão lindo, e nós esse bombril”. Tudo o que eu queria era meter a rola nelas e elas invejando meus cabelos. Acho que é por isso que estão caindo. Malditas vadias. No final das contas, voltei para o chuveiro e lavei o cabelo. Vesti-me no banheiro mesmo – não queria sair no frio – só calcei o tênis na sala.

Peguei as poucas cervejas que havia na minha geladeira e coloquei numa sacola de supermercado. Eu iria bebê-las no caminho. Desci as escadas do prédio e ganhei a avenida, acendendo um cigarro. Caminhei até outra avenida paralela à que moro e parei numa loja de bebidas, na verdade é uma loja de vinhos, mas eles vendiam todos os tipos de destilados também. Comprei o uísque para o Fernando e dois potes de picles. Cheguei ao ponto de ônibus e aguardei por uns cinco minutos. O ônibus chegou cheio, típico de sexta-feira. Ele ia até o metrô São Judas. Desci lá mesmo e caminhei uns dez minutos até a rua Major Freire. Ele mora num bom apartamento de dois quartos, cheio de comércio ao redor, pizzarias, farmácias, um sucesso de bairro. O porteiro não gosta de mim, pois me olhou com desdém, porém ao remexer em suas memórias, lembrou de algumas noites em que estive lá, quando o barulho foi insuportável e os vizinhos ameaçaram chamar a polícia.

- Vê se pega leve essa noite, hein? – o porteiro solicitou com voz suave porém firme, enquanto eu atravessava a entrada do prédio.
- Relaxa, chefe. O Aristeu não está hoje para torrar o meu saco – respondi erguendo meu polegar positivamente.
- Coitado do Aristeu, não sei o que vocês vêem de tão ruim no coitado. Ele é decente, trabalhador e vai na igreja.

Fiquei intrigado com a disposição do porteiro em defender aquele porra do Aristeu.

- E o que o faz decente? Trabalhar? Ir à igreja? – destilei meu veneno com todo sarcasmo disponível.
- Sim, ao menos o pessoal da minha igreja é tudo gente honesta, rapaz. Gostam de trabalhar e não causam problemas.
- Ah sim, eu deveria desconfiar! Vocês estão em todos os lugares! Deus eterno!
- Nós quem? Evangélicos?
- Sim, vocês evangélicos... Com esse papo de honesto, trabalhador, digno... Ahhh! – dei um grito de desespero e desisti – olha, o Aristeu não está aqui e isso me faz feliz. Você não vai estragar minha noite.
- Jesus te ama! – exclamou o porteiro me entregando um folheto.
- Guarde isso pra alguém que agüente toda essa merda, chefe. Boa noite – me despedi andando apressadamente até o elevador.

Cheguei no corredor do oitavo andar e o cheiro era de feijão cozido. “Quem diabos resolve cozinhar feijão numa sexta à noite” e toquei a campainha do apartamento de Fernando.

- Graaaande Nelson! Dá um abraço aqui! – Nelson me cumprimentou calorosamente, tomando de minhas mãos a sacola com uísque.
- Fala, meu velho! Caralho, deixa de ser compulsivo, seu porra – respondi ao perceber a sacola sendo tomada de minha mão.
- O uísque acabou e como você disse, é fim de mês e só você tem limite bancário por aqui!
- Maldito rato – adentrei o apartamento e fiquei observando a decoração esculachada.

Apenas o computador na sala, dois sofás, uma televisão e dois quadros: um com um palhaço triste, a breguice em forma de arte, e o outro exibia uma paisagem praiana, o típico marasmo artístico. O sofá cheio de manchas, sabe Deus do quê. O computador jazia numa escrivaninha sem a mínima conexão visual com o resto da sala. Uma bíblia permanecia ao lado do monitor. “Graças a Deus o Aristeu não está aqui”, pensei.

- Então, pedi duas pizzas, acho que é o suficiente, não? – Indagou Fernando enquanto servia duas doses de uísque com gelo.
- Ué? E quem vai pagar por elas? – nesse momento meu saldo bancário apareceu em minha frente, como se estivesse estampado na parede, em neon.
- Eu tenho o vale-refeição ainda, Nelson. Só que ninguém vende bebida com VR.
- Caralho, que susto. Você tem essa mania de me quebrar as pernas, Fernando, vai se foder, rapaz...
- Fica frio, mano. O VR aqui tem uma boa quantia pra torrar.
- E por que não vendeu o VR pra comprar bebidas?
- Os caras estão descontando quinze por cento na venda! Nem fodendo que vou entregar quinze por cento de bandeja assim!
- Malditos desgraçados! Quinze por cento? Santo Padre!
- Pois é, mano. É uma boa grana, dependendo da quantia que você vai vender.

Brindamos às almas dos compradores de VR e desejamos suas mortes. Bebemos nossos primeiros goles.

- E onde diabos está o Alberto? – perguntei cutucando os gelos de meu copo com os dedos.
- Vem mais tarde. Ficou atolado de trabalho, o cara ta estressado pra caralho. Uma hora ou outra ele tem um colapso.
- Cara, meu trabalho também está cheio de pepinos, por todos os lados. Aqueles judeus estão metendo no rabo de todo mundo por lá. Eles não têm a mínima noção comercial, não manjam porra nenhuma de marketing e um dos diretores é metido a sabichão, sabe? Leu de tudo um pouco, vive com aquela postura de arrogância, olhando para todo mundo, como se todos fossem lixo, puro lixo.
- Eu sei qual é a desses caras... – Fernando afirmou com olhar penetrando um baseado, o qual enrolava lentamente.
- Mas o cara curte Harry Potter. Ele é o típico boçal que tem grana, mas ainda não descobriu que dinheiro não compra inteligência.
- É, estamos cheios desses tipos... humm... por aí... – ele continuava concentrado no enrolar perfeito do baseado.
- Malditos judeus. Cara, eles se acham o povo escolhido, se acham acima de qualquer coisa dentro daquela comunidade de retardados. Um amigo meu tentou se converter ao judaísmo...
- Pelas barbas de Moisés, pra quê? – Fernando me interrompeu.
- Sei lá, ele tem grana, tem classe e diz ele que o pau dele foi circuncidado por causa da boa e velha fimose. Tava com a faca e o queijo na mão, mas o maldito rabino cortou o barato dele. O coitado foi a uma entrevista com esse rabino, e o judeu o ouviu, ficou com olhar disperso, dizendo centenas de ‘ahãs’ e toda aquela ladainha de bom ouvinte. E o meu amigo ficou com todo aquele papo de “sempre fui apreciador e amante da cultura judaica” – cadê a garrafa do uísque? – interrompi a conversa.
- Vou lá buscar, peraê.

Fernando chegou com a garrafa de Passport, sentou e deu um suspiro profundo, serviu os dois copos e correu até a cozinha pois havia esquecido das pedras de gelo. Voltou e concluiu o serviço.

- E aí? O que aconteceu com seu amigo? – Fernando deu um bom gole em sua bebida.
- Então, o rabino apenas disse que iria apreciar a conversa que tiveram e iria conversar com anciãos da sinagoga e tudo mais. O fato é que nunca entraram em contato com ele, e o rabino vivia dando perdidos no pobre diabo. Ele ficou revoltado e começou a compartilhar da mesma opinião que a minha: são todos uns excluídos da sociedade, vivendo em seus círculos de amigos com a ponta da rola cortada, se metendo em bar-mitzvas, brindando suas bebedeiras gritando “l’chaim!” e fazendo cara de cu quando avistam uma boa feijoada, cheia de porco morto boiando.
- Por isso que o Hitler jogou os caras nas câmaras de gás – Fernando acenou para o nada enquanto mastigava um pedaço grande de picles.
- Sim, eu cresci vendo filmes como a Lista de Schindler, O Pianista, A Vida é Bela entre outros milhões deles, me acostumei a sentir dó daquele povo, mas à medida que você cresce, vai percebendo, sabe? – peguei um pedaço de picles e o mastiguei.
- É... O único judeu que se salva é o Woody Allen.
- Concordo. E também gosto do Adam Sandler. Só não gosto da mania dele em pôr sempre algo que nos faça lembrar a maldita estrela de Davi ou a cultura deles, comida kosher e essas esquisitices de povo semita branco.
- Eles são brancos pelo tempo que passaram sugando os países da Europa, como Alemanha, Áustria, Polônia, Rússia... – Fernando me lembrou esse fato e levantou rumando para a cozinha.
- Para o inferno com eles, só isso que tenho a falar. São alienígenas e ponto final.

Acendi um cigarro e fiquei olhando o maldito quadro do palhaço.

- Fernando, quem pintou essa merda aqui? – perguntei enquanto expelia fumaça pela boca.
- Minha mãe – respondeu com voz falhada e constrangida, enquanto pegava umas latas de cerveja.
- Que bosta, hein? Você gostava do Bozo?
- Claro, quem não gostava?
- Eu. Nunca achei graça naquele palhaço com cara sádica. Um dia liguei pro programa dele e mandei ele tomar no cu. Ele me respondeu que não gostava de tomate cru. Eu dei muita risada com a cara constrangida que ele fez – bati a cinza do cigarro no cinzeiro e o repousei para dar uma mijada rápida.
- Confesso que ele era um tanto assustador. Mas o conjunto da obra era bom. Papai papudo, vovó Mafalda, toda aquela música! Caralho, lembro dos tempos da escola, eu chegava em casa, jogava a mochila no sofá e ligava a TV para assistir o Bozo! – Fernando exclamou com entusiasmo e olhar saudosista.
- Preferia ver o Chaves! E o SBT ainda era TVS, lembra? – perguntei enquanto sacudia meu pau.
- Cacete, é verdade! Lembra das vinhetas de natal, com todas aquelas canções calorosas, em harmonia? Meu, que bosta, vâmo parar com esse papo. Tá me deixando sentimental demais – os olhos de Fernando brilhavam.
- Que bichona! Dá uma cerveja aqui – tomei uma lata das mãos dele enquanto ele estava em transe, lembrando da infância.
- Você é um coração de pedra, Nelson. Não tem nada que te lembre a infância?
- Claro que sim! Estava viajando num disco dos Delgados, o Hate, sabe?
- Não, nunca ouvi – Fernando franziu a testa.
- Depois eu te mostro – tomei um gole da cerveja que estava trincando -, o que eu achei estranho é que os Delgados são uma banda que aprendi a gostar depois dos meus vinte anos. Mas eles me fizeram viajar de volta à infância. Meu peito ardia, me deu vontade de chorar.
- Que bichona... – Fernando sussurrou com tom de deboche.
- Pau na sua bunda, man – o interfone do apartamento tocou.

Fernando atendeu e autorizou a subida de Alberto. O miserável do Alberto. Talvez o cara mais tranquilo que conheci na vida. Sua fala era bem mansa, suas pálpebras permanentemente semicerradas, e a boca dele estava quase sempre fechada, como se estivesse sempre por bocejar. O andar dele era uma espécie de rastejar vertical, e sua postura sempre inclinada para frente, com os ombros curvados e a cabeça baixa. Parece que estou falando de um derrotado, mas não, ele até se dava bem na vida. Trabalhava como estagiário de direito num escritório de advocacia, ganhava razoavelmente bem, mas vivia enlouquecido com tanto trabalho, com tantos processos a analisar. Diferente de mim, ele tinha um chefe genuinamente brasileiro e muito gente boa. Quando estava fora da opressão de seu curto expediente, Alberto irradiava um bom-humor contido porém agradável. Conhecia muito sobre música e nunca perdia tempo com as mulheres.

- Alberto, seu miserável! – me levantei e fui abraçá-lo.
- Deus do céu, Nelson! Deixou a barba crescer? – e me abraçou forte, talvez devido ao tempo, seis meses eu acho, que não nos víamos.
- Porra, o que anda fazendo de bom nessa vida desgraçada? – me perguntou enquanto recebia de Fernando uma lata de cerveja.
- Ah, entrei numa empresa de importação. Trabalho no comercial, mas ta uma merda sem igual. Meu chefe é um bosta arrogante. E você, ainda no estágio?
- Sim, logo logo concluo o estágio, e tudo indica que serei efetivado. Assim espero – deu um gole curto na cerveja e deixou um pouco da bebida escorrer pelo canto da boca –, cacete de cerveja! – foi ao banheiro secar a boca na toalha de rosto.
- Não Alberto! – gritou Fernando –, o merda do Aristeu vai chiar se sentir cheiro de cerveja nessa toalha!
- Pau no cu do Aristeu! – Alberto colocou a toalha dentro de sua cueca e começou a simular uma punheta.
- Puta merda, puta merda! Agora você que ponha esse pano pra lavar!
- Parece uma porra de uma dona de casa, Fernando! Relaxa! Você não disse que o crente não vem hoje?
- Sim, mas porra, deixa de bagunça. Quero que o Aristeu se foda. Você já ta bêbado? – Fernando perguntou enquanto chutava a toalha de rosto até a lavanderia.
- Ainda não. Só to curtindo com sua cara. De boa, hahaha! – Alberto dava risadas altas.
- E por que tanta alegria, Alberto? Tá confiante pra caralho, tudo isso é porque você vai ser efetivado? – perguntei abrindo outra lata.
- Também, mas cara, eu to com tanto estresse que o meu chefe me deu uma semana de licença para descansar – Alberto se assentou no sofá, com um sorriso largo no rosto.
- Caralho, o que você fez para isso acontecer? Matou alguém? – perguntei, preparando-me para anotar as dicas.
- Ah, um viado chato, não é viado, na verdade to só ofendendo. É um gordinho puxa-saco do chefe. Fofoqueiro pra caralho, vocês precisam ver pra crer. Ele simplesmente é viciado em fofoca e intriga. Tem uísque pra mim aí, Fernando? – Alberto interrompeu seu próprio relato.
- Vem cá pegar, seu lixo! – Fernando estava estritamente irritado com a toalha de rosto violada sexualmente.

Alberto levantou-se e começou a preparar o seu drinque, enquanto continuava seu relato.

- Então, o gordinho veio fofocar comigo. Ele sabia que eu não curtia fofoquinha. Quando ele veio falar do Gouveia, um office-boy gente boa pra caralho, eu o expulsei da minha sala na base do ponta-pé! – Alberto falava empolgado e em voz alta.

Eu dei muita risada, meio incrédulo. Ele voltou ao seu posto no sofá.

- O chefe sabia que o gordinho era um puxa-saco do caralho. Mas ele detectou um estresse cada vez maior nas minhas atitudes. Ele me chamou pra conversar. Eu pensei “santa merda, to fodido!”, mas ele reservadamente me propôs uma licença. Eu fiz cara de sofrido, e aceitei com um tom de relutância.
- Bem, acho que vou espancar o psicólogo do RH da minha empresa. É um moleque e esse é viadão mesmo. Gosta de intriga, vive puxando o saco dos diretores. É repugnante. E ainda acha que tem uma carreira brilhante pela frente – me exaltei erguendo a lata de cerveja.
- Pois então, dê uma boa surra nele, oras! – Fernando se intrometeu na conversa, voltando a sala, sentado na cadeira da escrivaninha.
- Vontade eu tenho. O problema é que aquele bando de judeus vai pirar e me mandar embora por justa causa. Eles já não vão com a minha cara. Tudo que eles querem é dançar Hinei Matov em cima do meu túmulo! – minha voz continuou exaltada.
- Então por que você não explode aquela merda, bem no estilo Hamas de vida? Hahaha! – Alberto propôs com deboche em cada letra que saía de sua boca.
- Vou mandar uma cabeça de porco embrulhada com a bandeira do Irã, lá pra casa dele no Higienópolis! – enfim assumi a mente de um palestino sanguinolento.
- Falando nisso, comi uma judia, há um tempo atrás. Estava curtindo um som no Milo e um amigo estava de olho numa branquelinha, feito neve, cara, vocês precisavam ver! Aí ele agitou uma amiga da garota para mim. Final da história: acabamos cada um num quarto. Olhei para o meu lado e estava uma garota linda que só vendo mesmo. Ela estava pelada, e a cama cheirava a lubrificação de camisinha – Fernando começava a se empolgar com seu relato – olhei pra baixo e eu estava pelado. Cutuquei o corpo dela e ela estava peladinha. Dei uma cutucada na buceta dela e ela apenas mexeu a boca e virou de costas para mim. Enfiei meu pau nela e nada dela se manifestar. Foi lindo. Gozei nela, foi bom demais. Tomara que tenha engravidado, aquela vaca.
- E seu amigo? – perguntei extremamente curioso.
- Porra, isso foi o mais engraçado. Ele saiu do quarto dele ao mesmo tempo em que eu saí do meu! Nos encontramos no corredor, só de cueca e camiseta e perguntamos quase ao mesmo tempo: onde a gente ta? Demos risada e fuçamos a geladeira das safadas. Pegamos um vinho e bebemos rapidamente. Comemos umas pizzas geladas, nos vestimos e fugimos. Queira Deus que eu tenha engravidado a vaca – Fernando fazia gestos simulando uma barriga grande.
- Caralho, isso que é uma boa história! – Alberto comentou em voz alta enquanto ia até a cozinha atender o interfone.

A pizza havia chegado. Uma de peperoni e outra de frango com catupiry. Alberto foi com relutância buscar as pizzas. Eu me prontifiquei a pegar mais umas latas de cerveja. Alberto chegou e comemos em silêncio, mas rapidamente. Comemos quase tudo, deixando uma pizza de cada sabor sobrando. Guardamos na geladeira e nos concentramos em finalizar a garrafa de uísque.

- Esse papo de judeu, já deu no saco. Vamos falar de outra coisa, sei lá. – Fernando propôs buscando nossos olhares, que estavam dispersos, observando os quadros.
- Cara, sabe o que os judeus têm mais que eu? – perguntou Alberto.
- Dinheiro, mulheres? Saúde? – respondi com um leve sorriso contornando minha boca.
- Não. Eles têm mais É QUE SE FODER! Hahahaha!

A risada foi generalizada. Fernando engasgou com a cerveja que bebia no momento da conclusão da piada.

- Sabe como é que cabem vinte judeus num fusca? – comecei a minha piada.
- Sei lá, porra, como? – Fernando estava curioso e se inclinou esboçando uma risada.
- Coloque eles no cinzeiro! Hahahaha! – comecei minha gargalhada conduzida pelo meu estado alcoólico.

Novamente a risada foi generalizada. Fernando fazia sinal de que estava sem ar e começamos a rir mais ainda. Estávamos bêbados feito gambás alegres. Alberto nos alcançou heroicamente e já tinha seu bom e velho olho semicerrado de volta.

- Eu queria gravar essa nossa conversa e mandar para meu chefe! Ele ia surtar! – exclamei enquanto finalizava mais uma lata de cerveja.

A campainha tocou nesse momento. Logo após ouvimos batidas. Nos entreolhamos e todos ficaram com cara de surpresa. Fernando foi até a porta, verificar quem batia, através do olho mágico. De repente o Fernando virou bruscamente para nossa direção, e fez uma cara de maníaco frustrado. Certo ódio e traços de melancolia misturados em seus olhos. Eu saquei na hora: Aristeu, o crente filho de uma puta suja.

- Abre a porta logo, Fernando! Quero ir ao banheiro! – Aristeu estava impaciente, dando pequenos passos para todas as direções possíveis, segurando seu pinto.
- Peraê! – Fernando voltou à porta e destrancou-a.

Aristeu olhou para o estado da sala, parou por um tempo e foi correndo até o banheiro. Aliviou-se e após lavar suas mãos, notou a ausência da toalha de rosto.

- Fernando, cadê a toalha de rosto? – perguntou com a cara molhada e os olhos fechados.
- Sei lá, onde está? Você viu? – Fernando respondeu com deboche.
- Caramba, como vou secar meu rosto?

Percebi que a noite seria longa.

- Seque com a sua toalha de banho, Aristeu! – me intrometi, sugerindo uma solução rápida.

Aristeu me ignorou e continuou perguntando a Fernando sobre o paradeiro da toalha de rosto.

- Aristeu, vá se foder, ta ouvindo?! Se não vou aí quebrar sua cara! – Fernando respondeu lá da cozinha, com voz irritada.
- Pra variar, a resposta de um animal. Meu Deus! – Aristeu retrucou com semblante arrogante.
- Vá para o seu quarto se não quiser morrer de câncer com a fumaça de nossos cigarros! Aliás, vá se foder! Por que você não está na vigília de oração da sua igreja? – Fernando queria conflito, queria briga.
- Foi remarcada para a próxima sexta-feira. O pastor está gripado. Hoje foi um culto normal mesmo.
- O pastor ta gripado? Por que Jesus não o curou, porra? – Fernando realmente queria treta.
- Ele é um ser humano e adoece como todo mundo. Ele não se autonomeou apóstolo de Cristo? Porra, o cara é um semideus!
- Você precisa ser mais tolerante, mais educado, Fernando. Deus tenha misericórdia de você – Aristeu nem se deu ao trabalho de olhar para mim ou para o Alberto.
- Enfia essa misericórdia no seu rabo, por favor!

Aristeu se trancou em seu quarto para se trocar. Ligou a televisão na rede Gospel e ficou por um tempo em sua cama.

- Bem, acho que dá pra gente continuar bebendo e trocando ideia. O que acham da gente ir naquele mercadinho vinte e quatro horas para comprar mais um uísque? – Fernando propôs com olhar malicioso.
- Eu voto em vodka – me manifestei.
- Eu também. Um pouco de vodka não fará mal, man – Alberto complementou minha ideia.
- Com todos os diabos, que assim seja – Fernando finalizou o pequeno concílio alcoólico.

Rumamos para a loja, fumando cigarros e falando sobre mulheres. Apenas Fernando estava mal vestido, com um short pequeno demais para os padrões masculinos do século vinte e um, e com um chinelo Rider. A camiseta era do Queen. Eu gostava muito de Queen. Nós três gostávamos.

Ao voltar para o apartamento, o porteiro me fuzilou com os olhos e eu bêbado retruquei levantando meu dedo do meio para ele. Ele olhou para frente e permaneceu parado, com postura ereta, como se estivesse vendo um coral de anjos em sua frente. Não entendi a reação covarde dele. Chegamos à porta do apartamento e uma surpresa: estava trancada.

- Abre essa porra, Aristeu! Abre essa porra! PUTA QUE ME PARIU, EU VOU MATAR VOCÊ! – Fernando libertou seus demônios e gritava com ódio, com todo o ódio do mundo concentrado. Pensei que apenas os gritos dele derrubariam a porta.

O interfone tocou no apartamento. Aristeu não foi atendê-lo.

- Tá vendo? Já tem vizinho reclamando! Tá vendo, porra?! – Fernando se dirigia à gente apontando para a porta, completamente contrariado.

De repente, como se um duende tivesse sussurrado em seu ouvido, Fernando se lembrou da chave reserva, que fica dentro da mangueira de incêndio do corredor. Enquanto Fernando destrancava a porta, podíamos ouvir o barulho do calcanhar de Aristeu cada vez mais distante. Com certeza estava correndo de volta para seu quarto. Quando entramos no apartamento, as luzes estavam apagadas, o computador desligado, e Aristeu havia comido as pizzas que sobraram. As cervejas estavam intactas.

- Abra essa porra de porta, seu viado maldito! ABRAAA! - Fernando iria matá-lo e eu não iria me meter.

Nunca gostei daqueles sujeitos que apartam brigas. Eu gosto de ver o circo pegar fogo. Alberto bebia outra lata de cerveja e servia uma dose de vodka. Pedi que servisse em meu copo também. Ele ligou pacientemente o computador e clicou no iTunes. Em seguida clicou em ‘Diamond Sea’ do Sonic Youth. A música tem quase vinte minutos de piração ruidosa, mas conta com uma linda canção. E ela começou linda, que harmonia maravilhosa. E Fernando continuava ensandecido junto à porta de Aristeu. E foi assim por trinta minutos, até a fera acalmar.

- Uma hora você vai ter que me encarar, seu corno do caralho!
- Tenha uma ótima noite, Fernando! – Aristeu o provocou.
- FILHO DE UMA PUTA, EU VOU TE MATAR! – Fernando se inflamou novamente – É melhor virar politeísta, porque um só deus não vai te livrar de mim, seu crente sujo, maldito!
- Essa foi boa, hahaha! – comentei, tentando descontrair o Alberto que parecia um pouco tenso.
- Foi realmente boa, Nelson. Só não quero ver o que o Fernando vai fazer com o crente-rabo-quente!
- Orei muito por você hoje, Fernando. Deus vai te transformar – Aristeu novamente lançava sua arma espiritual, a intercessão não solicitada, a oração que ninguém pediu.

Enfim Fernando voltou à sala e sentou no sofá. Servi uma dose dupla de vodka para o coitado que estava uma pilha de nervos. Ele bebeu lentamente, porém sem interrupção. Matou o copo todo. Acendeu um cigarro.

- Sabe o que acho? O Aristeu é como noventa e nove por cento dos crentes que existem: se fazem de santos, decoram alguns versículos para autodefesa e vão a igreja pra arranjar namoradinha. Eles casam cedo pra poder transar logo, se bem que tem muita crente-rabo-quente que dá o cu pra não perder a virgindade na buceta. Eu já comi mulher crente assim! Regulava aquela buceta velha mas deixava eu gozar no rabo dela! Olha só que cínica do inferno!
- Acho que todos nós comemos uma crente-rabo-quente – dei o meu testemunho relâmpago.
- Época boa era quando os crentes não estavam na mídia, na boca do povo. Eles eram mais puros, falavam mais de Deus e nem pensavam em entrar na política. Agora eles querem adequar a igreja deles com o mundo! Porra, deixe a gente em paz! – Fernando continuou.
- Já ouviram o rock gospel? – perguntou Alberto – totalmente sem referência. Rock feijão com arroz, sem graça, sem inovação. É só pra pegar os trouxas que se converteram e os deixar interessados na igreja. Vivem dizendo: “vamos pegar o rock que era algo para o diabo e dedicá-lo a Deus!”, porra, por que eles não pegam o ramo pornográfico e não o dedicam a Deus também? Já pensou? Suruba Divina 2! Hahahaha!
- Eles podiam criar os atores pornôs de Cristo, o que acham? Hahahaha! – Fernando finalmente se descontraiu.

Aristeu saiu de seu quarto enfurecido com os nossos comentários. Esqueceu do ódio de Fernando e do risco de morte que estava correndo.

- Isso! Parabéns! – Aristeu batia palmas com cara de impressionado – Continuem a usar o nome de Deus em vão!
- Ah! Mas só me faltava essa! Seu filho de uma puta! – Fernando se ergueu para espancá-lo, mas Alberto e eu o seguramos.

Eu realmente não gosto de sujeitos que apartam brigas, mas queria ouvir o que ele tinha a dizer.

- Continue, Aristeu, seu bosta – finalmente o insultei.
- Sem ofensas, Nelson, sem ofensas. Vocês usam o nome de Deus em vão e o próprio Senhor disse que não inocentaria quem fizesse isso. Vocês não temem a ira de Deus?
- Vamos lá, Aristeu... Me responda: qual é o nome do seu deus? – perguntei com olhar desafiador.
- É Deus, mas pode ser Senhor, Todo-Poderoso, Senhor dos Exércitos... Uma infinidade de nomes.
- Cacete, mas ele não tem nome? Os hebreus foram originais, hein? Os indianos têm milhões de deuses e todos têm um nome. Os babilônicos tinham seus deuses, todos identificados.
- Mas existe um nome que está acima de todos os nomes! Jesus! Jesus Cristo! – Aristeu se entusiasmou e ergueu o olhar e os braços de forma teatral.
- Ué, mas você não é monoteísta? Não serve a um deus apenas? Por que tem dois nomes? Ou tantos nomes, como você citou?
- São três pessoas numa só, Nelson. Você sabe disso!
- Não, eu não sei. Às vezes você ora a Deus em nome de Jesus. Às vezes ora a Jesus em nome de Jesus. Às vezes você ora a Deus em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Mas o Espírito Santo só é a voz da consciência, nunca é invocado ou adorado. Por que essa confusão toda?
- Não vejo confusão nenhuma. É apenas uma concepção de Deus diferente das outras – Aristeu havia abandonado seu entusiasmo.
- Mas esse Deus que na verdade é uma fusão de três pessoas, é meio dividido, não? O Pai manda, o Filho obedece, o Espírito Santo obedece. Mas no final das contas nem o Filho, nem o Espírito Santo foram criados pelo Pai, sempre existiram junto a Deus, certo? – eu estava chegando ao ponto que queria.
- Deus é eterno, ninguém o criou. Isso é óbvio – Aristeu mostrou desprezo em sua resposta.
- Então quem criou a hierarquia entre pai e filho lá no céu? Alguém é mais forte pra mandar naquela porra, não é?
- Não chame o céu de porra.
- Mas alguém manda no céu, né? Então essa trindade é mais confusa do que a gente imagina!
- Não chame o céu de porra – repetiu com o olhar soturno e disperso.
- Mas eu já parei. Quem repete frase é porque perdeu a razão, Aristeu – Alberto se infiltrou na conversa.
- Você não foi chamado na conversa, Alberto – Aristeu continuou com o mesmo olhar.

Fernando não se continha e sussurrava a toda hora que iria acertá-lo na cara, pra desmaiá-lo. Aristeu ainda tinha marcas de uma surra que tomou de seu companheiro de apartamento, após uma discussão que envolvia o sangue de Jesus, a besta do Apocalipse e uma conta atrasada da internet.

- E aí, Aristeu. Afinal, como você pede pra gente não usar o nome de Deus em vão se você nem sabe quem é quem no céu? – retomei a discussão de forma bem civilizada.
- Por que você me importuna com tantas perguntas idiotas? Vocês não vão me desvirtuar do caminho de Deus, nunca! – Aristeu claramente sem razão apelava para o emocional.
- Caralho, o caso dele é grave. Catarata espiritual, man! – Alberto constatou rapidamente a doença de Aristeu.
- Vocês é que estão cegos. O pecado cegou seus olhos para a verdade. A sabedoria de Deus é loucura para o mundo! – Aristeu usou mais um chavão pré-fabricado.
- Eu vou pegar ele de porrada agora! – Fernando se levantou novamente e jogou a vodka de seu copo no rosto do crente acuado.
- Isso! Por amor a Cristo, eu sofro essas afrontas! Glória a Deus! – Aristeu ergueu suas mãos e falava algo com voz inaudível, como se fizesse alguma prece secreta.
- Isso se chama lavagem cerebral, pessoal. O cara ouviu tantas mentiras, durante tanto tempo, que não consegue se livrar, não consegue raciocinar, mesmo com tantos argumentos lógicos. Ele é um maldito caso perdido – acendi um cigarro fazendo sinal negativo com a cabeça.
- Ao menos ele já ta os miolos fodidos. Tenho um primo que é um devasso desgraçado, vive traindo a namorada, fala um monte de merda e participa de uma igreja, apresenta uns programas evangélicos para jovens no canal deles. Mas sabe por que ele não sai da igreja? Por que só consegue status lá. Às vezes ele sai da igreja, mas volta, porque tem um bom status lá, ele se acostumou àquele ambiente. Mas eu nunca vi nenhuma obra cristã dele – Alberto falava enquanto buscava o maço de cigarros em sua jaqueta.
- Eu conheço esses tipos... Acho que todo mundo conhece – complementei.
- Vocês não falam nada com nada. Vou orar por vocês agora...
- Ah, mas não vai mesmo! – Fernando agarrou o pijama de Aristeu e o puxou.
- Deixa, Fernando! Deixa ele ter seus minutos de atenção. Eu já saquei a dele! – supliquei ao meu amigo, que largou o pijama de Aristeu.
- Senhor Deus, obrigado por mais esse momento onde a luz resplandece sobre as trevas. Obrigado pela vida de cada um que está nessa sala. Peço que o Senhor não considere as palavras deles, palavras de blasfêmia, de afronta ao Criador. Abra os olhos deles para a tua verdade que é a única que salva e liberta. Liberte-os, Pai, de toda opressão satânica, de todo mau costume, de todos os seus caminhos errados. Assim eu oro, em nome do Pai...

Fernando interrompeu a oração acertando um murro na boca de Aristeu, que estava de olhos fechados e se mantinha bem concentrado em sua intercessão. Desabou no chão e desmaiou como uma donzela sonolenta. O sangue vertido ganhava cada vez mais território no chão do apartamento. Eu ainda fui até Aristeu para verificar se o mesmo estava vivo.

- Que vontade de incendiar esse corpo desgraçado! Filho da puta metido à mártir cristão! Tudo é um teatro, tudo é como na época dos apóstolos, quando o pau comia solto. Porra, se ele não falasse tanta merda, eu o deixaria em paz. Mas ele insiste em querer me converter! – Fernando falava cabisbaixo, olhando para Aristeu desmaiado e ensanguentado.
- Precisamos mudar para a Europa, meu amigo. A cada ano que passa, o número de crentes-rabo-quente está aumentando. Você já imaginou essas igrejas escandalosas dominando nosso país? – perguntei enquanto repousava minha mão em seu ombro.
- Enquanto houver razão e bons argumentos, quero ver quem se atreve a me evangelizar, Nelson.

sexta-feira, julho 16, 2010

Uma Foda Empatada

São Paulo é uma maldita cidade tropical. O calor é só um ingrediente picante dentro do caldeirão infernal que essa selva falida reúne. Poluição, ar seco, muito barulho e cheiro de sovaco sofrido. Mas quando o frio assalta o clima, ele vem como um arrastão carioca. Se na segunda-feira você praguejou contra o calor, pode ser pego de surpresa no dia seguinte ao acordar. Você acorda inconsciente de madrugada atrás de um edredom ou cobertor para aliviar a brisa gelada que se abriga no escuro. Hoje é um dia desses. Acordei e já era uma da tarde, com o nariz gelado e tossindo ainda mais que o comum. Quando fui dar a mijada matinal, mal encontrei meu pau entre os pentelhos e adivinhem só: errei a mira e acabei molhando o chão. Toquei a descarga e fui procurar um pano de chão, mas lembrei que todos estavam deploráveis e jogados na lavanderia, esperando a minha misericórdia, quando eu os lavaria. Bem, após todo o trabalho desgraçado para limpar o banheiro, olhei para o calendário na cozinha e agradeci aos céus por hoje ser primeiro de maio, o dia internacional do trabalho. Sempre me perguntei o motivo dos trabalhadores descansarem justo no dia que homenageamos o labor. Hoje eu não me questiono, apenas relaxo. Quando faz muito frio, eu pareço um maldito inglês das músicas dos Kinks. Preguiçoso, bêbado e rejeitado. E para mim, o modo mais prazeroso de descanso é me recolher em meus pensamentos, bebendo até adormecer. Geralmente escolho um repertório triste para o frio e hoje não foi diferente. Os Kinks, que para mim foram melhores que os Beatles e os Rolling Stones, lideraram a minha parada pessoal de sucesso. Assim como um marujo britânico e barbudo em algum bar de má fama na zona portuária, me postei a beber e raciocinar sobre temas diversos. Fiquei juntando peças da minha vida, mas vi que o quebra-cabeça estava bem incompleto por sinal. ‘Sunny Afternoon’ começou a tocar e me identifiquei totalmente com a letra. O sentimento de perda e falta de orientação me assolou e assombrou. Acendi um cigarro e estou aqui estático:

My girlfriend run off with my card
And gone back to her ma’ and pa’
Telling tales of drunkenness and cruelty


Tá certo que a Bárbara não fugiu com meu cartão, mas eu realmente não sei o que ela vai dizer aos pais sobre mim. Talvez algum papo sobre eu ser um grande bêbado, mas cruel? Talvez eu seja bem cruel comigo mesmo, mas tenho sido um bom amante. Mas não um bom companheiro, seja lá o que isso signifique. Eu sempre canso as minhas namoradas, eu sempre sou acusado de não ter ambições, mas com todos os diabos, eu não nasci para ambicionar, para passar por cima das pessoas em prol de meus objetivos. Sei lá, acho que não me vendi para o capeta e pago o preço com essa vida pacata e miserável. As mulheres são realmente farinha do mesmo saco. Se um homem não pode garantir estabilidade financeira, a mulher descamba para outro. Malditas sarnas do demônio. Estou bem aqui sozinho, aliás, acho que já estou começando a divagar demais. Estou bêbado.

O telefone tocou. Era o Maulin, um bom camarada porém muito estressado. Ele chegou ontem lá pelas oito da noite e só saiu às duas da madrugada após ser enxotado por mim, segundo seu relato. Quando bebo acima do suportável, tenho o péssimo costume de expulsar as pessoas de minha casa. Acredito que a Bárbara irá relatar isso aos pais dela. Que ela vá para o inferno, antes que eu me esqueça. Maulin vai aparecer mais tarde pra gente terminar as duas caixas de cerveja que sobraram aqui. Isso se eu não acabar com tudo antes.

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Nelson foi despertado pelo telefone que tinha um toque muito alto. Pulou do sofá de dois lugares completamente manchado por todos os líquidos imagináveis e correu para atender a chamada.

- Pois não – Nelson atendeu o telefone tentando desenrolar o fio do aparelho.
- Nelson, é o Maulin. Mudança de planos. Temos duas opções: ou vamos ao Tchê jogar uma sinuca e beber ou você vem pra cá.
- Pra cá onde?
- Meu apê. A Agnes não está se sentindo muito bem, está meio tonta. Nem vai rolar deixá-la aqui sozinha. E ela disse que prefere ir ao Tchê a ir na sua casa.
- Você não engravidou a desgraçada, né?
- Pelo amor de Deus, Nelson, vai se foder... Você sabe que não existe nada entre eu e aquela drogada.

Agnes era uma mulher alta, cabelos ondulados e castanhos, assim como eram seus olhos. Trinta e sete anos, assim como era o tamanho do pé. A cara era de um desgaste descomunal, graças a anos de frustrações e bebedeiras como escapatória. Havia largado as drogas, mas todas as substâncias químicas haviam comprometido seu modo de pensar e reagir a certos imprevistos da vida. Ela estava rumando para a plataforma da loucura e Maulin era o único ser que se locomovia na Terra que podia suportá-la, dando moradia a ela.

- Sei. Bem, essa Agnes é fresquinha, hein? Só porque aqui é um pouco sujo? E não quero ir ao Tchê. Não dá mais pra fumar lá, e você sabe que sinuca e rock sem cigarro não rola. Maldito José Serra e essa lei anti-fumo. Aguarde a lei anti-sexo, man. Aguarde! – Nelson levemente embriagado sempre deixava aflorar seu lado esquerdista.
- Ei, ei! Não vai começar com essas porras de discursos! E então? Vem pra cá?
- Tá certo. Deixa eu me recuperar dessa dorzinha de cabeça e já saio daqui. Inté.
- Inté.

Nelson foi até a cozinha para comer algo e olhou para as caixas de cerveja. Pensou que teria que levá-las na mão. Praguejou um pouco e cortou um pedaço da peça de queijo que estava na geladeira. Abriu um pão francês e ao passar manteiga nele, pensou que deveria ter colocado o queijo dentro. Bocejou e comeu o pão com um pouco de café velho esquentado no micro-ondas. Após a pequena refeição, trocou de calça e colocou uma camisa xadrez. Amarrou o cadarço do tênis e foi até a cozinha para pegar as caixas de cerveja. Flagrou uma barata perto do fogão e pulou em cima dela, fazendo o sangue branco e viscoso do inseto se espalhar por um longo raio de alcance.

- Deus eterno! Maldita barata desgraçada! – praguejou Nelson enquanto pegava um pano de chão, sujo e deplorável para variar.

Nelson limpou a carnificina e jogou o pano no lixo. Lavou as mãos e colocou as caixas de cerveja a frente do elevador. Trancou a porta e desceu até o térreo.

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Eu não reclamo dessa vida que tenho. Eu simplesmente trabalho para pagar esses momentos. Não vejo beleza nenhuma na vida de família. Convidar outros casais e seus filhos para um churrasco em minha casa. Eu não consigo me colocar no lugar desses homens. Eu não me imagino com um filho sequer, tendo que educá-lo para a vida. Provavelmente um filho meu se transformaria em um tipo de maníaco, um bandido, um cafajeste odiado pelas mulheres. A Bárbara não queria ter filhos, era isso que eu gostava nela. Mas após alguns meses de relacionamento, tenho certeza de que, se despertasse nela um sentimento materno, com certeza eu não seria o eleito para plantar espermatozóides alucinados por um óvulo dela. Eu lhes digo: ela terminou o namoro com uma repulsa tão grande em relação a mim, que tudo o que eu fazia despertava ódio nela. O meu jeito de andar, o meu jeito de fumar um cigarro, o meu jeito de contar piadas. Ela me desprezou e com certeza vai me esquecer em um par de semanas. Malditas mulheres. Se aquele lance de Adão e Eva fosse verdade, as desgraçadas então deveriam ser amaldiçoadas. Era pra serem nossas auxiliares e agora querem tomar nosso lugar de líderes. Olha, pra ser sincero eu gosto muito das mulheres, mas acho que tenho um sério problema com elas. Acho que elas pedem muito e eu tenho pouco a oferecer. Os amigos são diferentes. Eles querem beber com alguém, falar sobre a vida com alguém, eles querem debochar de alguém e essas coisas eu tenho de sobra a oferecer. Agora se me pedirem dinheiro, será o mesmo que pedir alguma esmola para um mendigo. Simplesmente não faz sentido pedir dinheiro para mim.

Malditas caixas de cerveja, o plástico que as envolve está rasgando, vou ter que empilhá-las, só que preciso de uma mão livre para fumar.

Acho legal o apartamento do Maulin. Tem uma pequena sacada para fumar e olhar para o céu. E o Maulin é um cara esperto pra caralho. Mas o trabalho de gerente comercial está deixando ele de cabelos em pé. Está muito estressado, se queixando muito de tudo, e ainda tem a Agnes para tirá-lo do sério.

Eu não entendo o porquê daquele miserável dar abrigo a ela. A mulher é um furacão de problemas. Nos anos noventa ela era uma porraloca que vivia de bar em bar, de balada em balada causando problemas, perturbando as pessoas com sua voz fina e levemente fanha. Sua presença sempre causava transtornos, mas como na vida nada é unanimidade, sempre existiam pessoas que andavam com ela, se drogavam com ela e bebiam com ela. Ela esteve presa algumas vezes, esteve em clínicas de reabilitação também, enfim, era a palavra problema encarnada. Ela finalmente saiu dessa vida porque envelheceu. Um dia acordou e sentiu que brincar de ser jovem era ridículo. Quando olhou ao seu redor e só viu amigos de vinte e poucos anos para conversar, Agnes sentiu falta de pessoas experientes, pessoas com conteúdo. À medida que você envelhece, é natural perceber a falta de malandragem nas pessoas mais novas. E ela abandonou seus círculos juvenis de amizade e falhou miseravelmente em ingressar em grupos mais maduros de amigos. Ela era uma eterna garota de vinte-e-poucos-anos e sendo dessa forma, vivia criando intrigas infantis com adultos de cabeça feita. Hoje em dia, ela rejeita seus amiguinhos e é rejeitada por seus amigões. Maulin é o único homem maduro que de alguma forma misteriosa suporta seu jeito. Eu tenho quase certeza de que Agnes tem uma queda fodida por ele, mas ainda careço de provas mais concretas.

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Nelson chegou à porta do prédio e falou com o porteiro através do interfone. Após a confirmação com Maulin, a porta se abriu. Nelson o cumprimentou mas o velho porteiro nem virou o rosto. Ele sabia que a noite seria de perturbação e reclamações dos apartamentos ao redor de Maulin. Subiu o elevador e chegou à porta do apartamento. O prédio tinha quatro apartamentos por andar e era muito bem situado, ficando em Perdizes. Tocou a campainha.

- Entra aê, porra! – era Maulin gritando da cozinha. Ele preparava alguns frios para serem petiscados.
- Maulin, seu bosta, a porta está trancada!
- Agnes, porra, você trancou a porta! Que mania do caralho! Vai lá abrir!
- Já vou! – Agnes enrolava uma toalha em seus cabelos molhados.

Depois de três minutos, Nelson já havia aberto uma lata de cerveja quente e havia acendido um cigarro.

- Olá Nelson! – Agnes simulava uma voz aparentemente despretensiosa e esnobe, com um ar de leve superioridade e pouco entusiasmo, como se tivesse mil coisas a fazer.
- Opa, como vão as coisas? – Nelson deu um rápido beijo no rosto dela e seguiu direto pela cozinha.
- E esse cigarro aceso aí, Nelson? Velho, vão reclamar logo, logo, por fumar no corredor – Maulin despejava orégano nos cubos de queijo cortados.
- Se demorasse mais dois minutos, eu cagava na sua porta, seu lixo! – Nelson deu um abraço no amigo – Vou colocar as latas no congelador.
- Deixe na geladeira, hoje ta frio pra caramba.
- Você parece um australiano, man. Beber cerveja na temperatura ambiente? Eu vou deixar algumas latinhas no freezer, só pra garantir.

Maulin tinha um computador na sala, ligado ao seu aparelho de som e um jazz no mínimo alegre tocava freneticamente. Nelson se acomodou no sofá e acendeu outro cigarro. Reclamou da demora de Maulin e perguntou a Agnes se estava viva. Não recebeu resposta. De repente aquele jazz alegre se transformou em uma forma psicodélica e progressiva de tocar instrumentos. A bateria era tribal, experimental, era atraente como uma chama. Nelson ficou paralisado durante quatorze minutos, que era a duração da música. Após retumbantes batidas, insinuantes toques de saxofone e até ensandecidas dedadas em harpas, ele pulou do sofá e despertou de seu transe.

- Maulin! Que som é esse, pelo amor de Deus?!
- Art Blakey! – gritou Maulin com a boca cheia de salame.
- E ele toca exatamente o que?
- A bateria. A banda chama The Jazz Messengers.
- Puta que pariu! Isso que é som! – Nelson já havia se levantado e se postado junto à porta da cozinha.
- Esse cara é sensacional mesmo. Muitos bateristas do rock têm ele como referência. O cara é foda.
- Depois me lembre de te mostrar um músico etíope que achei. O cara é demais, de verdade. Música bem feita, sem frescura. Chama-se Mulatu Astatke.
- Caralho, onde você encontra essas coisas?
- Nesse caso foi num filme.

Os dois se juntaram na sala e começaram a discutir sobre música. À medida que as bebidas eram consumidas, as conversas começavam a descambar para um lado mais pessoal. Agnes se assentou no tapete da sala e ficou cutucando a unha do dedão do pé. A presença dela não os inibiu e eles continuaram falando mal de mulheres e citando suas bocetas, bundas e peitos. Ela apenas sorria, em silêncio, concentrada em suas unhas.

- Velho, a Clara era muito gorda! Como você conseguiu meter naquela bunda? – Maulin dava risadas, exibindo dentes cheios de casca de amendoim.
- Meter na bunda era fácil, o foda era meter naquela boceta velha. Mas sabe aquele papo de que as gordinhas têm mais tesão? Pura verdade. A garota era insaciável. E chupa muito bem por sinal.
- Olha, ela pode até me prometer orgasmos múltiplos com uma boa chupada, mas eu passo essa! Ela é muito gorda!
- Agora você me sentir mal – Nelson olhou pra baixo fazendo cara de menor abandonado.
- Cara, que Deus tenha misericórdia do teu pau, porque você não tem! Hahaha!
- Já chega desse papo. Ou quer que eu te lembre da Miss Jibóia?
- Do que você ta falando, Nelson. Você já comeu traveco, porra – Maulin abocanhou mais alguns amendoins.
- Mas eu não escondo isso de ninguém. Agora você estava se gabando de ter pego a melhor da balada, parecia uma miss Brasil e acabou sendo enrabado! Hahahaha!
- Ela não me enrabou porra nenhuma, Nelson! Corta essa! Ela tentou, mas não conseguiu – Maulin falava enquanto se levantava para buscar mais uma cerveja.
- Sei, sei. Miss Jibóia! Hahaha!
- Deixa ele, Nelson – Agnes se intrometeu.
- Você fica na sua, coração – e apontou o dedo para ela com ar de reprovação.
- Seu grosso, comedor de gordas – sussurrou com sorriso sarcástico.
- É melhor você ficar quietinha se não você vai começar a me chamar de comedor de loucas também.
- Você tem pau pequeno, Nelson. Por isso que come traveco.
- E o que tem a ver o cu com as calças?
- Você não me engana, seu pica mole.
- Mais uma palavra e além de comer gordas e travecos, vou comer seu cuzinho.

Agnes hesitou um pouco e considerou por alguns segundos o fato de Nelson poder cumprir sua ameaça. Ele estava bêbado e poderia fazer qualquer loucura. Ela também estava bêbada e começou a rir.

- Vai tomar no olho do seu cu, seu cuzão.
- Agora você vai ver!

Nelson se jogou em Agnes e enfiou a mão em sua calça de lycra. Ela dava pequenas risadinhas até quando ele conseguiu dar uma dedada no cu dela.

- Chega, chega! Eu fico calada! Hahahaha!
- Esse é um aviso, coração! Da próxima vez eu chupo seu rabo e meto nele – o tom de Nelson foi sensual e o seu olhar, maligno.

Maulin estava cagando enquanto essa pequena putaria acontecia.

- E a Bárbara, cadê ela? – Maulin perguntou enquanto enxugava suas mãos na camiseta.
- É, a Bárbara já era. Terminamos ontem. Ela é uma puta ingrata! – Nelson estava claramente alterado pelas cervejas.
- Bem, sei lá, é a vida, amigão. Elas sempre nos dão uma punhalada pelas costas – Maulin se juntava ao time dos bêbados e deixava a boca falar por si só.
- Vocês dois são uns desgraçados! A Bárbara só queria uma vida normal, ela não pode ser culpada por querer isso! – Agnes novamente se intrometia na conversa.
- Maulin, diz pra ela que eu vou comer o cu dela, diz! Diz pra ela, porra!
- Calma Nelson, calma Agnes. Vocês dois são mesmo uns putos, derrubaram a cerveja no tapete! – Maulin se levantou e rumou até a cozinha.
- Sua vaca, hoje eu vou gozar no seu rabo, pode escrever o que to dizendo - Nelson falava quase sem som.

Agnes apenas olhava para Nelson com um olhar levemente vesgo, um sorriso de canto e fazendo sinal positivo com a cabeça. Maulin tentou absorver o máximo de cerveja com o pano e voltou para a lavanderia. Agnes levantou-se e foi até o computador para trocar de música. ‘Evil Woman’ do Black Sabbath começou a rolar e Nelson captando a mensagem que Agnes tentou passar pra ele, a juntou nos braços.

- Você não ta mais pra crazy woman do que evil woman, sua puta. Hoje eu vou te possuir, ta me ouvindo?
- Vai comer ela, Nelson? – Maulin novamente chegou secando as mãos úmidas em sua camiseta.
- Se ela não sossegar o facho dela, vou dar surra de pau mole nela - dizendo isso, Nelson soltou Agnes e a empurrou rumo ao sofá.
- Só pode ser de pau mole mesmo, seu comedor de baleias! Hahaha!
- Sai daqui, sua vaca! – Nelson apontou para a porta, a expulsando do apartamento.
- Ei Nelson, aqui não é sua casa! Se quiser, você saia fora! – Maulin se exaltou lembrando da noite anterior quando foi enxotado bêbado do apartamento do amigo.
- Eu ficarei, pelo bem da nação! – respondeu Nelson com a mão erguida, apontando para cima, como se estivesse declarando a independência de algum país.

Os ânimos se acalmaram e eles voltaram a conversar civilizadamente. Maulin acendeu um charuto pra ele e pra Nelson e disse para Agnes que aquilo é coisa pra homem. Agnes contrariada foi trocar de música.

- Porra Agnes! Não dá pra ouvir uma música por inteiro? Tem que ficar trocando, trocando? Cacete! – Nelson reclamou com o charuto deslizando por sua boca.
- Juro que é a última que coloco, sério!

Ela clicou na música e correu para a cozinha. ‘Ballade de Melody Nelson’ começou com a voz de Serge Gainsbourg, o grande ídolo de Nelson. O ritmo cheio de suingue da guitarra o fez rir. Prontamente ele se pôs em pé e foi até Agnes. Na cozinha, ela já o esperava com o mesmo sorriso diabólico e sedutor que ela tanto utilizara em seus trinta e tantos anos de vida.

- Você é foda, mulher. Vem aqui – Nelson a pegou pelo cabelo e lhe deu um beijo na boca.

A língua de Agnes parecia uma serpente enlouquecida, longa, lisa e intensa. Nelson sentia dificuldade em acompanhar os movimentos da língua dela e para tentar quebrar o gelo, enfio a mão novamente dentro de sua calça apertada. Desta vez foi pela frente, e se ela era frenética com a língua, ele iria mostrar sua destreza com os dedos. Maulin dava risada com ‘En Melody’, a canção que se iniciava. Nela gemidos e risadas femininas serpenteavam pelas ondas sonoras. Até o momento que a mulher, na metade da música, dá uma risada longa e fanha.

- Ah, que putaria de som... – Maulin balbuciava com o charuto todo babado em sua boca.

A atmosfera que se formou com o som de Gainsbourg apenas atiçou o desejo do casal na cozinha. Soltaram todos os seus demônios, como todo humano faz quando está bêbado. Nelson a virou para a pia e abaixou sua calça. Quando puxou a calcinha, ela rosnou.

- O Maulin não vai gostar disso!
- Corta essa, sua vaca! Agora você vai dar gostoso pra mim. Você ta gostando, olha como ta molhadinha – Nelson esfregava seu dedo médio no clitóris dela.
- Não, Nelson, não! Pára de esfregar esse pau na minha bunda!
- Filha de uma puta! – Nelson guardou seu pau e levantou a calça jeans surrada.
- Ei, você vai pra onde?
- Vou cagar e talvez bater uma punheta pra que meus bagos não fiquem doendo, sua vaca – respondeu enquanto acendia um cigarro e se dirigia ao banheiro.

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Maldita vaca. Maldita seja. Agora meu pau ta todo melado e nem consegui gozar. Eu detesto beber por isso, sempre acontece! Acabo comendo qualquer lixo que apareça, enfio em qualquer buraco. Vaca do caralho! Onde eu que eu tava com a cabeça? Eu nem sei onde essa boceta passou. A Agnes parece uma farofa de churrasco, todo mundo passa a linguiça, e eu metendo nela sem camisinha... Nelson seu cabaço do caralho! Deixa eu lavar essa merda.

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Nelson saiu do banheiro sem cagar e sem bater punheta. Ficou intrigado demais com as palavras AIDS, Cazuza, Freddie Mercury, gonorréia, sífilis, cancro mole e duro. Lavou seu pau três vezes, esfregando com afinco. Chegou na sala e viu Maulin adormecido no chão, encostado no sofá. Agnes estava só de calcinha e de bruços, apagada em cima do mesmo sofá. Nelson mandou eles para o inferno e tirou os sapatos e rumou para o quarto de Maulin. Avistou o mimo de seu amigo, uma pequena adega eletrônica cheia de garrafas caras de vinho.

- Um dia eu quebro essa merda, Maulin, e bebo tudo – Nelson desmoronou na cama confortável do amigo.

Quando Nelson adormeceu, era quatro da manhã. Quando acordou, já era sete e meia, mais ou menos. Foi mijar, se dirigindo ao banheiro com passos lentos, apertando sua cabeça devido à ressaca assombrosa. Ao sacar seu membro, verificou uma textura diferente. Era a única palavra que ele não lembrou na hora em que tentara cagar há horas atrás. Verrugas. Eram três pequenas verrugas que nasceram bem distribuídas pela extensão de seu pau. Ele suou frio e esqueceu de mijar. Ficou tentando arrancá-las num ato de extremo desespero. Foi em vão, elas permaneciam firmes e nojentas.

- Caralho, mas nasceram tão rápido! Saiam suas malditas! – Nelson riscava as anomalias com força.

Ele lembrou de que ia mijar. Manteve a calma, respirou fundo e mijou uma urina clara e abundante. Tocou a descarga porém não levantou sua calça, nem a cueca. Caminhou friamente até a sala e se assentou ao lado de Agnes que continuava apagada, agora dormindo de lado. Maulin havia despencado e dormia em posição fetal, aquecido e completamente entregue ao sono. Era sábado, não havia preocupação com o trabalho. Nelson iniciou uma masturbação descontraída, relaxante. Pensava em Bárbara, sua ex-namorada, uma descendente de italianos, de cabelos vermelhos e ondulados, seios fartos, bunda arredondada e sem excessos. Ela tinha um rosto com traços fortes, exatamente como as mulheres daquele canto da Europa.

- Ah Bárbara, só bastou você sair da minha vida para eu começar a fazer merda... – resmungou enquanto pensava na cena que mais o marcou no curto relacionamento, quando Bárbara cavalgava em seu pau, gritando como uma louca.

Nelson aumentou a intensidade de seus movimentos e começou a sentir o esperma chegar. A cabeça de seu pau estava roxa, tamanha era a força com que Nelson o apertava. Ele soltava pequenos gemidos e de repente levantou se inclinou sobre Agnes, levando seu pau até o rosto dela. Gozou fartamente, toda a porra acumulada da foda empatada da madrugada. Sêmen jorrava incessantemente entre o cabelo e o ouvido de Agnes. Ela não se mexeu, não manifestou um sinal de vida sequer. Maulin permanecia como um feto morto num útero quente. Nelson estendeu sua ejaculação através de boa parte do cabelo dela. Agnes sonhava com campos verdejantes, com vacas, com leite. E não se mexeu nem um pouco.

- Sua vadia suja. Se eu peguei AIDS, eu te mato... – Nelson sussurrou lentamente no ouvido melado de Agnes.

Limpou seu pau na calça de lycra dela, que jazia em cima de uma cadeira. Levantou sua cueca, sua calça e a abotoou. Sacou um Lucky Strike e o acendeu. Parou para pensar um pouco, na sacada do apartamento. Terminou seu cigarro e amassou a gimba no cinzeiro. Pegou o cinzeiro e o virou em cima da cabeça de Agnes, despejando muita cinza e gimbas amassadas. Nelson apenas deu uma risada, balançando a cabeça lentamente e negativamente. Pegou sua caixa de cigarro, seu celular e deixou o apartamento. O porteiro o olhou com reprovação novamente, mas estava feliz porque seu turno estava por terminar. Nelson apenas ganhou a rua do bairro de Perdizes. Seus olhos se fecharam pois o sol estava livre e bem vivo no céu, porém arremessava raios fracos naquela manhã fria. Ele sorriu porém logo fechou o seu semblante.

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Preciso urgentemente fazer uns exames. Todos os que forem precisos. Deus do céu, um dia meu pau vai cair, com tanta cagada que faço. Como sou estúpido! Espero que o Maulin não fique chateado com o novo visual daquela vadia. E se ele ficar magoado, pau no rabo dele. Preciso de um croissant de presunto e queijo e um café espresso, daqueles bem fortes. E preciso comprar mais cigarro. Puta que pariu, onde acho uma padaria nessa merda de lugar?