quarta-feira, abril 17, 2013

A Contradição Encarnada em Passos Vacilantes

Eu caminhava lentamente, seguindo meu novo ritmo de vida. Depois eu explico. Olhava hipnoticamente para meus sapatos opacos em movimento. Havia um pequeno risco marrom, era barro, com certeza. Eu ainda não havia engraxado os benditos sapatos e não foi por falta de ofertas. Nunca em minha vida alguém chegou pra mim e se ofereceu pra engraxar meus sapatos, até porque eu sempre usei tênis, inclusive em trabalhos mais formais. Ouvir um moço qualquer me chamando de patrão, excelência ou doutor era uma novidade absurda pra mim. Eu me sentia, talvez pela primeira vez, um homem digno.

- NELSON! - ouvi meu nome em alto e bom som, era um som grave, como se uma foca estivesse me chamando.

Continuei minha marcha despretensiosa. Eu ziguezagueava com frequência, meus passos sempre foram vacilantes, o que me fazia suspeitar, ao menos uma vez por dia, de uma espécie de AVC iminente. Aquela espécie de foca continuou a me chamar, mas desta vez, meu nome vinha seguido de barulho de passos rápidos. Respirei fundo e preparei uma expressão de surpresa.

- Meu Deus, Nelson! Você? Você aqui em Brasília? - meu cérebro começou a mexer nas fichas de contato.
- Acho que sou eu... - balbuciei alguns ruídos prolongados - e você? Quem é?

Antes que ele respondesse, meu cérebro puxou a ficha do infeliz. Fiz expressão de decepção misturada com surpresa sincera.

- Eu sou o Caio, pô! Namorava a melhor amiga da Amanda, sua ex, lembra? - a boca dele era enorme. Um homem com mais de 30 anos usando aparelho é repugnante.
- Caio, eu sei quem é você, caralho. Mas você é muito atrevido, não?
- Como assim, cara? Não entendi - seu rosto tomou a forma de um ponto de interrogação, enquanto ensaiava um abraço, com os braços levemente erguidos.
- Além de atrevido, é cínico também! Que maravilha! - minhas mãos começavam a ferver.
- Mas Neeeeelson, o que eu fiz pra você? Você não está me confundindo? Eu sou o Caio, morava no Sacomã, lá em São Paulo! - recolheu suas mãos junto ao peito, com aquele rosto envelhecido.
- Eu sei quem é você, Caio, por Deus, eu sei quem é você! Você é o cara que, quando terminei o namoro com a Amanda - fiz um sinal de 'abre aspas' arqueando levemente minha postura pra frente -, acabou ficando com ela. Logo você, Caio! E nem escondia!
- Cara, eu não fiquei com a Amanda! Eu juro!
- Odeio quem não respeita juramentos, fica jurando a esmo! Não te dou uma lição aqui porque estamos na Câmara. Se não, que Deus me ajude, eu te daria uma surra!
- Nelson, de onde você tirou essa história?
- Da boca das pessoas, das redes sociais com as fotos de você saindo com ela... - fui interrompido.
- Peraê! Vai me dizer que agora você é de ouvir picuinha, fofoc... - interrompi o desgraçado também.
- E DA BOCA DA AMANDA! - as pessoas passavam atônitas com minha reação. Ver aquele bando de assessores bem apessoados, com seus crachás balançando no peito, me encarando com feição confusa, me fez acalmar o facho. A assessora loira e brava que me deixa intrigado diariamente, surgiu do nada, me olhou de soslaio e passou como um raio. Me contive.
- Oh... ela te contou então? - Caio exibia traços de uma criança com calvície. Aquela bochecha infantil, rosada me deixava mais possesso.
- Olha, é muito atrevimento da sua parte. Saia da minha frente - fechei os olhos, erguendo meu rosto, típico comportamento da aristocracia francesa diante de conflitos familiares.
- Mas Nelson...
- Mas o quê? Acha que só porque houve uma coincidência das grandes e nos encontramos em Brasília, só porque o mundo é pequeno, o passado está limpo? Que tipo de homem você é?
- Me perdoe cara. Pensei que poderíamos voltar a nos falar, pelos velhos tempos.
- Caio, eu não gosto de você. Não tem velhos tempos. Não suporto seu aparelho, sua careca prematura, esse nariz pontudo, essa sua cara de mórmon.
- Cara de mórmon? - o aparelho dele refletiu um raio de luz.
- Todos os mórmons que conheci na vida, tinham seus traços. Você deve ser algum missionário, só pode ser. Pelo menos você é chato como um deles!
- Desisto. Me desculpe por tomar o seu precioso tempo, Nelson. Espero que esteja tudo bem com você.
- Tá vendo? Parece um maldito mórmon falando. A não ser que esteja sendo irônico - aponteio dedo pra ele.
- Não estou sendo. Bem, que se dane. Até um dia.

Caio passou por mim com indiferença no olhar e passos firmes. Senti seu perfume, doce e forte, o que me fez sentir mais raiva dele. Com certeza eu ficaria com dor de cabeça. Pensei em como fui rude e me senti bem. Coloquei a mão nos bolsos e voltei a caminhar, com o ritmo que havia descrito no começo. Ritmo vagaroso, coisa que até estranhei no começo, quando cheguei na capital do país.

Lembro que meses antes de decidir vir para cá, lia uma reportagem, em alguma revista de turismo, onde descreviam o cotidiano dos brasilienses. Engravatados pegando mangas em árvores. Umidade abaixo dos dez porcento, vias sem calçadas para pedestre (provavelmente eu seja o maior pedestre de todos os tempos). Sentado no vaso sanitário vaticinei: "jamais tocarei meus pés sofridos e maltratados naquela cidade planejada". Mas como sou um espécie de contradição encarnada, cá estou. Na verdade, São Paulo me cansou por uma série de coisas. Sim, espancamentos estão na lista. E demorei meses pra me recuperar da última sova que tomei em Congonhas. Mas aquele episódio acabou por ser tão benéfico, veja bem, sofri por algumas semanas pelo fim do meu relacionamento. Foi justo, eu fiz merda, todo segredo é revelado um dia, mas por Deus, não precisava ser antecedido por um espancamento covarde. Já coleciono dois espancamentos e aquilo realmente dói. E aqueles chutes nas costelas, de alguma forma, resvalaram em minha alma e, como todo mundo sabe, dor da alma é difícil de tratar. E eu não sou um homem religioso, não consigo acreditar que uma força invisível cure minhas dores. Por isso bebo. Mas isso é outro papo, muito complicado.

Cheguei em Brasília para trabalhar, a convite de um amigo. O velho Abel, sabe Deus o motivo, confia muito em mim. E de passo em passo, vacilantes em alguns momentos, cheguei na Câmara dos Deputados. Assessoria de imprensa de deputado. Nem eu acredito, mas a verdade é que eu, que perambulava de bar em bar na Terra da Garoa, coleciono hoje caminhadas épicas pela Esplanada dos Ministérios.

Às vezes me sinto como um cidadão de Oran, daquele livro do Camus, A Peste. A saudade da família e de alguns amigos é imensurável. Em muitos momentos, me flagro pensando neles. Mas vejo uma espécie de muralha no entorno do Distrito Federal. É claro que já pensei em votar para minha cidade. Mas algo aqui me atrai. Não sei se é a mudança dos hábitos. Eu sempre quis ser o que sou hoje. Mas ao mesmo tempo, me sinto preso, privado de tudo que amo. E quase tenho um derrame ao pensar no paradoxo dessa sensação. Eu amo muitas coisas aqui. Brasília me ensinou a encarar a vida como homem, de peito aberto e rosto erguido. E aos poucos colecionei pessoas amadas, que me fazem lembrar frequentemente quem eu sou. Eu sou a contradição encarnada.

Eu sei que essa balela de contradição encarnada já encheu o saco. Mas esse sou eu. Em passos vacilantes. Repetitivo. Enchendo o saco.