quarta-feira, julho 05, 2006

Cabaço é assim mesmo

Era 2002, lá pelo mês de março, eu tinha 17 anos e nada sabia sobre as ruas. Eu estava namorando uma garota de 16 anos desde 1999 e minha vida, naquele momento, se resumia à ela. Nunca havia tomado um porre sequer, nem me metido em briga nenhuma, nem palavrões eu falava muito. Eu era o verdadeiro cabaço. Minhas amizades estavam reduziadas ao pó, e a possibilidade de criar novas amizades eram quase nulas, afinal, durante a semana, tinha que acordar às 5 da manhã e trabalhar até às 17:00hs, na periferia da zona Oeste de Sampa, por uns míseros 450 reais. Depois do trabalho, me restava chegar atrasado na escola (devido ao trânsito) e voltar para casa lá pelas 23:30hs. Nos fins de semana, puta que pariu, era só ela e a família dela. Era óbvio que uma hora ou outra, algum sentimento de liberdade iria tentar aflorar, ou explodir dentro de mim.

Aflorou.

Era um dia da semana, sei lá qual era, mas as aulas estavam um saco, professores de saco cheio, afinal, haviam lecionado um monte de moleques na manhã, na tarde e ainda tinham que lecionar à um bando de trabalhadores e repetentes na noite. Ninguém era culpado nisso, confesso. Mas começamos a "cabular" aulas com frequência, ficávamos pelo pátio da escola, conversando sobre trabalho, mulheres e coisas da vida. Alguém se levantou da roda (estavamos sentados no chão) e propôs:

- Caralho, por que a gente não sai pra beber?
- É uma boa... - alguém respondeu
- E grana? O que a gente vai beber?
- Ah, lá no bar a gente vê, é só pegar uns drinks e zoar um pouco.

Nos levantamos e partimos em direção ao portão da escola. Saímos, e caminhamos da escola por uns metros até chegarmos na rua Afonso Celso. Sentamos no degrau de uma escada de um prédio antigo e vislumbrávamos o movimento dos carros. Patricinhas e playboyzinhos em seus carrinhos de 20 e tantos mil reais corriam pra lá e pra cá e nós, trabalhadores e estudantes nas horas vagas estávamos ali, contando moedas. Ao contabilizarmos tudo que tínhamos, Almir, um estudante que era pedreiro, saí perambulando e atravessando a rua em direção à um barzinho, um boteco. Chegou com um bombeirinho... groselha com conhaque. Começamos à beber, mas como eu era um cabaço, comecei à ficar tonto. Já me soltei, e estava tão solto que meus braços começaram à voar em direção dos ombros e cinturas das garotas. Tatiana, uma garota ruiva, troncuda e bunduda era apaixonada por mim (e foi apaixonada até a última vez que nos vimos, em 2003). Ela começava a me abraçar e eu a abraçava também. Puta merda, haviam alguns momentos de rápida sobriedade quando eu me afastava dela. Mas voltava a tontura, a alegria e lá estava eu, abraçado com as garotas. Olhei para o relógio e já era meia-noite. Minha "cabacice" me mandou despedir todos ali e voltar para casa... seriam bons e longos três quilômetros de tontura e baboseiras saindo da boca. O Miguel, meu melhor amigo na época se propôs à ir comigo, afinal, sua casa ficava antes da minha, um quarteirão antes. Começamos à andar, falar de mulheres, mulheres e mulheres.

- Minha é prima é muito gostosa... é mais nova, mas puta que pariu, tem uns peitinhos - disse Miguel
- Que bom, e onde ela mora? - perguntei
- No Paraná.
- Puta que la merda, Miguel, a mina mora no Paraná? Fala de algo mais próximo!
- Ah, sabe a fulana (esqueci o nome dela, era da nossa classe)?
- Sei.
- Comi ela, cara. Ela ficou de calcinha, de quatro, e eu só pus a calcinha de lado e mandei bala.
- Caramba, e ela?
- Gostou, mas foi rápido, sei lá...
- Sei.

A conversa continuava:

- Mano, um dia estava comendo uma ficante. - começou Miguel
- E aí? - perguntei
- Estava no "bem bom", metendo com força, ela gritando alucinada e de repente ela grita "vai meu touro, mete com força". - Miguel parecia um italiano ao me contar essa história, gesticulava, falava alto
- Hahaha e daí?
- Mano, a mina me chamou de touro e quis que ficasse tudo tranquilo? O caralho! Tirei meu pau da buceta dela e mandei: "Como assim, touro? Você tá me chifrando, caralho?!"
- Hahahaha, mano, você não fez isso.
- Fiz, porra. Nem fodendo que a mina vai me chamar de touro!
- Vai se foder, a mina tá lá, quase gozando... às vezes ela fala essas coisas, tipo, meu macho, meu tigrão...
- Sei lá, cara, a verdade é que mulher nenhuma me chama de touro!
- Que se foda.

A conversa continuou nessa linha. O Miguel sempre contando suas histórias e eu, cabaço, sem nada de interessante pra contar, afinal, minha primeira namorada era a mesma daquela hora, nunca havia comido outra boceta. Eu só ouvia, ria, concordava e discordava.

Estávamos chegando na metade do caminho, já era bem tarde, e estávamos em frente à Igreja Margarida Maria, ao lado do cemitério da Vila Mariana. No instante que caminhávamos, perto de um estacionamento, um cara sombrio nos seus 21 anos chegou perto de nós:

- Aê, alguém tem fogo aê? - perguntou o elemento
- Fogo não, mas se quiser álcool, eu tô cuspindo álcool - respondi "cabaçamente" achando que tinha bebido pra caralho
- Vocês estão indo pra onde? - perguntou o elemento
- Pra casa - repsondeu Miguel
- Onde vocês moram?
- Aqui na região - me adiantei pra responder
- Só... - balbuciou o elemento

Puta merda, o cara tava louco de maconha, devia ter fumado muito, os olhos vermelhos, magro, de boné e voz lenta, torturante. Fomos caminhando por mais alguns metros e o Miguel me olhava de lado, me passando a mensagem "esse cara é nóia, é suspeito". Eu captava a mensagem, mas o filho da puta conversava, conversava, falava que nos conhecia, que estudava num colégio de supletivo noturno lá na Ana Rosa. Quando um ônibus passava, ele falava "olha quanta buceta nesse busão". Ele falava as coisas, nós respondíamos e ele falava: "do que vocês estão falando". Puta que pariu, o cara tava loucão. Chegamos na Coronel Diogo, uma rua que cruza a Lins de Vasconcelos. O Miguel encontrou um amigo na padaria de esquina e conseguiu uma carona pra casa.

- Felipe, vou ficando por aqui, ele vai me dar uma carona - disse Miguel
- Beleza, até mais então, mano - repondi me despedindo

Mas o filho da puta do elemento sombrio e noiado não me largava. Havia mais um quarteirão pra andar e o cara continuou me perseguindo.

- Aê mano, vamo colar aqui mesmo, ficar zoando um pouco... - propôs o elemento
- Não cara, tenho que trabalhar amanhã... acordar 5 da manhã é chato. A gente se fala depois, você não cola o tempo todo lá na escola? - tentei despedí-lo bem no momento em que três caras, amigos dele chegaram.
- Então, esse é fulano, esse é beltrano e esse é ciclano - o elemento apresentou mais três elementos tão sombrios quanto ele
- Opa, e aí? Beleza? - cumprimentei-os


Os caras me cumprimentaram e ficaram parados enquanto eu andava, tentando atravessar a avenida. Tentei pela última vez me livrar do cara:

- A gente se vê amanhã à noite, la na escola.
- Que escola, mano? - me perguntou, denunciando sua confusão mental
- A minha, mano, falei dela pra você o tempo todo, como você me pergunta "qual escola"? - me irritei
- Mano, você é estranho - o louco me disse

E quando parei pra raciocinar sobre a última frase dele, ele me virou uma "cadernada" na cara. Eu que estava meio tonto pelas bebidas, fiquei mais ainda. Lembro de ter erguido minha vista e ver os outros três amigos dele correndo em minha direção. Puta que la merda, eu tava fodido. Era melhor correr pra casa. Minhas pernas bambas me assustavam, corri como um louco, peguei outro caminho mais longo, para se caso eles me perseguissem mesmo, não saberia o caminho do meu prédio. Lembro de ter olhado pra trás e ter visto os quatro parados e o elemento principal, loucão, gritando alguma coisa. Cheguei com respiração ofegante no meu prédio, parei nas escadas e lembro ter feito alguma oração. No desespero, meu filho, não existem ateus. Me recompus, entrei em casa e todos perguntavam preocupados, onde eu estava. A minha namorada havia ligado várias vezes. Liguei pra ela, dei uma desculpa idiota, troquei de roupa e fui dormir às 2:30hs, pra acordar às 5:00hs.

Que cabaço.