Homero estava convencido de que havia efetuado o crime perfeito. Sem pistas, sem o mínimo rastro, ele sorria enquanto vasculhava seu bolso procurando um cigarro solto. Lá estava um Marlboro vermelho, enrugado pelo lugar hostil onde se encontrava. Cigarro aceso, perfeito.
- Preciso dormir - pensou.
Arrastou-se pela cozinha apagando a luz. Bateu a cinza no chão, sem se preocupar com um eventual incêndio, tendo em vista que o chão era revestido por um carpete que por sinal, fazia tempo que não era aspirado. Pó, muito pó. À cada passo, pó. Apagou a luz da sala desabotoando sua camisa azul marinho e ao entrar no quarto, fitou o cinzeiro cheio pela metade - cinzas, gimbas e embalagem plástica do maço - e bateu novamente a cinza.
- Puta merda, que frio! De manhã tá quente, à noite esfria! Eu odeio essa cidade! Vai tomar no cu, São Paulo! - gritou olhando as ruas salpicadas de luzes, pela janela do décimo terceiro andar.
Lançou a camisa na cama e sentou-se para tirar a calça. Coçou a cabeça exausto, olhando para uma lasca que permanecia pendendo em sua escrivaninha. Lançou a calça na parede e a fivela do cinto arranhou a pintura.
- Foda-se!
Pegou o Slanted and Enchanted do Pavement e o colocou cuidadosamente no CD Player. Summer Babe começou a jorrar pelas caixas de som. Ao invés da euforia proposta pela canção (pelo menos ele sempre se animava com ela), Homero olhou melancólicamente para seu guarda-roupas, puxou uma bermuda e uma cueca e se dirigiu ao banheiro.
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As sirenes na rua Bartolomeu de Gusmão não paravam de escandalizar a paz dos moradores da Vila Mariana. Azul e vermelho cintilavam pelas paredes das pizzarias e prédios até que os dois carros destacados para o caso frearam bruscamente na frente de um prédio de tijolos, bem alto por sinal.
- Porra, deve ter uma bela vista lá em cima! - disse Osvaldo olhando para cima e limpando o suor da testa com sua carteira de identificação.
- É, Osvaldo... Como é bom entrar em ação no berço da burguesia! - retrucou Ulisses, com ares de revolta e satisfação.
- Você é um comunista idiota, isso é o que você é. - treplicou Osvaldo, levando um cigarro fumado pela metade à boca.
- E você é um cego. Foda-se você Osvaldo, não vou discutir agora - retrucou ao se dirigir à guarita do prédio - sei que seu cu tá piscando pra que eu me esquente e discuta, só pra você rir, se divertir. Vá se foder.
- Tá bom, tá bom. Mas pára com esse papo de burguesia. Isso me cansa, sabia?
- Depois a gente fala sobre isso.
O dia estava frio. O céu começava a juntar imensas bolas de nuvens negras, porém esse baile celestial era disfarçado pela escuridão da noite. O pizzaiolo largou a massa na mesa de manipulação e saiu envolto em farinha para verificar a ação dos homens que pararam na frente do adorável prédio de tijolos.
- Armando, volta aqui! Temos seis pizzas para entregar! - gritou seu João dos fundos da pizzaria.
- Seu João, a polícia colou aqui na frente, vai entrar no prédio!
- Pro diabo com a polícia! Volte pra massa! Sério!
Armando voltou murmurando alguns palavrões e continuou a manusear a massa pálida de pizza, enquanto se esticava para tentar ver algum movimento. Ele queria um tiroteio, uma perseguição. Mas sabia que seu João é um chefe implacável. Faria pizzas para um exército em meio a um front de batalha. Ele queria dinheiro, muito dinheiro.
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- Porra, vou cagar primeiro! - sussurrou Homero, enquanto procurava uma revista no quarto.
Achou um encarte de ofertas de um supermercado e correu para a latrina. In The Mouth A Desert tocava ao fundo. Ele deixou a porta do banheiro semi-aberta pois essa era a canção preferida dele. Enquanto a bosta escorregava pelo seu cu, ele escorregava pela privada, num alívio incrível. Logo retomou a postura e ergueu o encarte:
- Santo Cristo! O feijão não pode estar custando tanto assim! Sete reais! Maldito governo!
Folheou mais algumas páginas até que, ao chegar na parte de limpeza, jogou o encarte no chão e se limpou. Olhou para o box e não encontrou toalha alguma. Abriu a porta balançando os braços para que o cheiro se dissipasse, e dirigiu-se à pequena área de serviço onde o varal se encontrava. Pegou uma toalha vermelha e deixou a luz da cozinha acesa. Sentou no sofá e ligou para a pizzaria e pediu uma pizza.
- Traz troco pra vinte, beleza? E traz uma Brahma também.
Levantou-se e andou até o banheiro. Abriu o box e em seguida o chuveiro. Enquanto a água descia pelos seus longos cabelos, seus músculos cediam e o estresse parecia descer pelo ralo.
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- Pois não? - questionou o porteiro com solicitude em sua voz.
- Estamos aqui sob autorização judicial para deter o senhor Homero, que reside no apartamento 132 - disse Osvaldo com a mais genuina cortesia.
- Opa! É pra já!
O portão se abriu e os dois policiais adentraram o prédio, mostrando suas identificações para o porteiro, que distraído, permaneceu pasmo pensando no Homero.
- Antônio! Tão atrás de quem? - perguntou Armando, o pizzaiolo, do outro lado da rua.
- Do Homero, aquele cabeludo do décimo terceiro, sabe?
- Ah sim, ele vive pedindo pizza aqui. Aliás, pediu uma de anchova agora pouco!
- É melhor cancelar essa merda! Hoje ele vai ver o sol nascer quadrado! Hahahaha - gargalhava o porteiro com seus poucos dentes e o bigode amarelado de café e tabaco.
Enquanto o diálogo escandaloso entre portaria e pizzaria se prolongava com ironia e humor, os dois policiais penetravam a recepção do edifício. Ulisses apertou o botão do elevador.
- Olha essa recepção! Que móveis! Imagine a casa desse Homero. Deve ser um publicitário endinheirado, com seu carrinho do ano, todo folgado. Maldito! - rosnou Ulisses.
- Caralho, Ulisses, foda-se se ele tem grana! Vamos algemá-lo sem cerimônia e levar o safado pra delegacia. E deixe que os outros se encarreguem dele. Aliás, parece que você nunca lidou com ricos!
- Já lidei sim, e cada vez que lido com um burguesinho, morro de raiva! Eles têm dinheiro saindo pelo rabo, pra quê fazer crime?
- Eles são humanos, porra. Dinheiro não melhora ninguém - respondeu Osvaldo com olhar entediado.
- Eles são uns burros mesmo!
- Pra ter dinheiro nesse país, você tem que ser pilantra, esqueceu disso? Se liga Ulisses, para com essa sua raiva comunista!
- E você, pare com essa sua repulsa pela causa trabalhista!
- Eu não tenho repulsa alguma, eu só não fico recriminando quem tem dinheiro.
- Tá bom, depois a gente conversa sobre isso - desconversou Ulisses, enquanto abria a porta do elevador.
Quando Osvaldo apertou o botão do décimo terceiro andar, eles ouviram passos rápidos, de salto alto. Era uma mulher que abrira a porta do elevador. Entrou no mesmo e com semblante cansado, sorriu gentilmente para os policiais carrancudos.
- Boa noite - ela os cumprimentou, arrumando a franja loira.
- Boa noite - responderam em uníssono.
Enquanto o elevador subia, a dupla disfarçava ao máximo os olhares que permeavam o decote da loira, que permanecia olhando para a porta. O elevador chegou ao sexto andar e ela saiu, com um tchau singelo e o barulho de seus saltos a acompanhando.
- Meu Deus, Ulisses! Você viu ela? Puta que pariu! Eu largaria por alguns minutos essa detenção só pra foder ela rapidinho!
- Cala a boca, Osvaldo! Se concentra que a gente vai entrar em ação agora! - Ulisses repreendeu o amigo passando a mão pela cintura afim de pegar seu revólver.
- Comunista eunuco de merda! Só pensa em igualdade social! Sabe o que você precisa? Uma trepada linda!
- Tá bom, depois a gente fala sobre isso.
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Os vapores da água quente vindos do chuveiro elétrico tomavam o banheiro e graças a esses vapores, Homero escarrava sem parar na parede.
- Essa porra dessa água não fica morna! Ou quente ou fria! Puta merda!
Desligou o chuveiro e envolveu a cintura com a toalha. Sacudiu os longos cabelos e abriu a porta do box. Enquanto saía para se enxugar, pisou no sabonete e escorregou. O banheiro não era grande, na verdade era um tanto apertado, o que complicou a situação de Homero que ao cair, bateu a nuca na ponta do vaso sanitário. O impacto foi forte o bastante, fazendo Homero desmaiar, vertendo sangue da boca. A pulsação acabou e no corpo magro de Homero já não restavam resquícios de vida. O corpo dele ficou derramado junto à porta.
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- Senhor Homero, abra a porta agora. É a polícia! - vociferou Osvaldo.
- Porra, vamos ter que arrombar essa bosta - considerou Ulisses
- É, eu arrombo e você me cobre! - combinou Osvaldo.
- Feito!
Osvaldo tentou quatro vezes até que um chute mais forte fez a porta ceder. Inspecionaram a cozinha e a área de serviço. Nada. Com as armas em prontidão e apontadas para frente, vasculharam a sala, mas como nos outros cômodos, nenhuma novidade.
- Olha a TV do cara! - disse Ulisses fazendo sinal de riqueza com as mãos.
- Cala a boca, porra! - respondeu Osvaldo, morrendo de raiva.
Cada um entrou em um quarto, fazendo movimentos bruscos, abrindo guarda-roupas e novamente não encontrando nada. O cheiro de xampu que o vapor do banheiro alastrava direcionou a atenção da dupla para o banheiro e sua luz acesa. Ulisses acendeu um Camel e friamente bateu na porta.
- Senhor Homero, saia do banheiro, o senhor está preso.
- Ah, que se foda, Ulisses! Me cubra pois vou arrombar! - avisou Osvaldo.
Osvaldo conseguiu destruir a tranca da porta, porém a porta não abria. O corpo de Homero obstruia a entrada dos policiais.
- Homero, eu vou atirar na porra da porta! - ameaçou Osvaldo.
- Peraí! - disse Ulisses afastando seu colega do local.
Ulisses fez força e conseguiu visualizar a perna de Homero no chão. O sangue começava a invadir a entrada do banheiro.
- Meus Deus, o burguês se matou! - gritou Ulisses mordendo o próprio braço.
- Como assim? - perguntou Osvaldo enquanto voltava da sala.
- O miserável! Se matou! Puta merda!
- Vamos ver isso!
A dupla começou a trombar a porta com força, até que em uma batida, o corpo se mobilizou para o lado e a porta foi aberta, num espaço suficiente para entrar de lado. Ulisses entrou primeiro e contemplou o corpo morto e nu de Homero. Balançou a cabeça negativamente e bateu cinza na privada.
- Chame uma ambulância. Seja lá o que for, chame uma ambulância.
- Não parece suicídio, Ulisses.
- Diabos, foda-se. Chame uma ambulância.
O Pavement permanecia cantarolando no CD Player, a faixa era Fame Throwa. Ulisses olhou para a direção do quarto.
- Porra, Osvaldo, desliga essa merda de som. Como podem gostar disso?
sábado, fevereiro 16, 2008
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