terça-feira, fevereiro 26, 2008

Gelo, Porra e uma Iguaria Bizarra

Sobrancelha arqueada e testa franzida. A fumaça entrava maliciosamente, cheia de curvas, pelas narinas de Alfredo. "Deve haver um lugar pra mim nessa cidade", pensava o homem sinistro que aparentava - pelas rugas profundas e olheiras escuras - bem mais que seus vinte e sete anos. Os dentes não eram radiantes como na infância e ele pensava nisso enquanto esfregava os dentes da frente com o dedo indicador. Olhou para o chão e alcançou o maço caído, dedilhou o interior da embalagem e encontrou um cigarro. Engatilhou o coitado na boca e o acendeu rapidamente. A janela de vidro estava fechada, e ficou assim por alguns instantes, enquanto Alfredo repousava sua testa no vidro e a fumaça se elevava, encobrindo a sua vista com uma espessa e irritante neblina, afinal, a vista estava perfeita aquela noite.

- São Paulo não costuma ser tão bela nesse horário, aliás, que céu! Dá pra ver estrelas! - falou impressionado, enquanto afastava a névoa com as mãos.

Soltou um pouco de fumaça pelo boca e nariz ao mesmo tempo e deu uma cusparada. Olhou o trajeto do cuspe em queda livre até que o mesmo se partiu em dois, se chocando contra o telhado de uma casa à frente do prédio. Fumou o cigarro até queimar o dedo, até o gosto do fumo ficar insuportável. Lá na rua, um carro não respeitou o cruzamento e quase carregou uma moto pela avenida.

- Por Cristo, que filho de uma puta! - murmurou enquanto lançava o filtro pela janela.

Foi até o banheiro e lá na banheira havia água e gelo, muito gelo envolvendo garrafas de vodka e de cerveja. Coçou a cabeça e fitou por alguns segundos - olho fixo - a tampa vermelha de uma garrafa de Smirnoff. Até que sacudiu a cabeça num despertar repentino e se curvou para retirar uma garrafa verde de Heineken. Apoiou a parte de baixo da tampa na quina da pia de granito e bateu com força no topo da garrafa, fazendo a bela tampa soltar da garrafa, como uma magia. E a magia acabou quando a graciosa tampa desfaleceu ao lado da privada. Grande destino, tampa. Caminhou como uma marcha para a morte, olhando para os detalhes de infiltração na parede do corredor. Apagou a luz.

- Merda de infiltração - sussurou - um dia dou um jeito nessa porra.

Deu um gole generoso em sua cerveja meio-amarga e seguiu até a sala. Olhou para os rasgos do sofá e sentou no infeliz móvel de couro fajuto. Cruzou as pernas e olhou para o teto.

- Esse sofá - falou com desânimo incontestável - um dia compro um de couro legítimo.

Soltou um peido e com certa dificuldade, ergueu-se e rumou para a janela. No meio do caminho, olhou para o toca-discos. Voltou-se para o aparelho de som e abriu o protetor de acrílico. Levantou o braço do aparelho e aproximou o seu rosto da agulha e ficou alguns segundos olhando para cada detalhe.

- Seja lá quem diabos inventou essa porra, ele é um gênio.

Devolveu cuidadosamente o braço ao suporte e abriu sua caixa de discos. Passou os dedos por várias capas. Fechou os olhos e continuou o passar de dedos.

- Pronto! Este aqui. Vejamos...

Era Highway 61 Revisited, do Bob Dylan.

- Bob, essas sua camisa é um sucesso... quem será esse cara atrás dele, com uma câmera fotográfica nas mãos? - disse Alfredo passando a mão com carinho pela capa de papelão do LP.

Cuidadosamente tirou o vinil do plástico de proteção e caprichosamente o instalou no prato giratório. Levantou o braço do aparelho e o disco rodou, como um pião nas brincadeiras de sua infância amarga. Suavemente, despejou a agulha sobre o disco e o ruído inicial, fetiche de qualquer apreciador de um bom som, serpenteou pelo ar, entrando pelos seus ouvidos, fazendo-o sorrir timidamente. A harmonia perfeita de 'Like a Rolling Stone' flutuava em sua introdução magistral, até que Alfredo sentou no chão e ensaiou um choro.

- Pai...

Levantou-se e ergueu o braço até agarrar um maço novo de Lucky Strikes. Violou o lacre e cheirou o conjunto de cigarros novos. Cheiro de chá fresco. Retirou um Lucky e com classe o colocou na boca, fazendo-o girar de uma extremidade à outra. Acionou o isqueiro e baforou uma coluna de fumaça. A Heineken estava acabando. Enquanto Dylan cantava, ele voltava ao banheiro ou melhor, à banheira.

How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown
Like a rolling stone?


- Pode crer, Dylan! Sozinho, man, sozinho! - gritou erguendo e cerrando o punho direito.

Abaixou as calças e mijou olhando pra trás, mirando as garrafas. Selecionou a Smirnoff e desrosqueando a tampa, sentiu seu pau ficar duro. Olhou para ele e acariciou o membro por alguns segundos. Começou uma punheta lenta, jeitosa, enquanto dava goles na vodka gelada. Sentou-se no chão do banheiro e começou a pensar na ex-cunhada.

- Por que não comi aquela gostosa?!

E ficou lentamente segurando seu pau, num vai-e-vem sensual e precavido. Queria prolongar o prazer, nada de punheta precipitada de adolescente. Fechou os olhos e vislumbrou sua ex-cunhada Gisele, de quatro, com aquele rabo escultural em sua cara, oferecido como oferenda valorosa, pronto pra ser penetrado, centímetro por centímetro, cada um dos dezessete centímetros de seu pau dentro do cu apertado dela.

- Na praia, quando eu a flagrei pelada no quarto, enquanto se trocava... puta merda! Ela nem reclamou, nem gritou... Deu uma risada e eu, cabaço, pedi desculpas de pau duro! BURRO! - gritou Alfredo, aumentando a intensidade dos movimentos da masturbação.

Acalmou os nervos com mais dois goles da vodka e novamente estava aproveitando cada pensamento, cada fantasia com a Gisele, a ex-cunhada gostosa. Gotas de suor deslizavam sem cessar de sua cabeça e em poucos minutos seu peito exibia manchas vermelhas, enquanto a cabeça do pau estava lambuzada pelo líquido seminal pré-ejaculação. A densidade dos gemidos se alternavam com o baile das formas que a fumaça do cigarro projetava. Ele não aguentava mais. Levantou-se e num urro de alívio, gozou com abundância poucas vezes vista. Gozou dentro da banheira de gelo.

Após limpar o pau, ele estava completamente relaxado e alegre pela bebida. Abriu mais uma cerveja e Dylan permanecia na sala, com sua voz inconfundível.

Well, I wanna be your lover, baby
I don't wanna be your boss
Don't say I never warned you
When your train gets lost


Ao ouvir a música, olhou para a foto de sua ex-namorada, que também é irmã da ex-cunhada gostosa. Agarrou a fotografia e apertou-a com desespero. Lágrimas rolavam pelo seu rosto e ao limpá-las com raiva, lançou a foto no chão.

- Eu tinha tudo, sua filha de uma puta! Você era tudo pra mim! Maldita!

Cuspiu na foto amassada e correu até a cozinha com seu pau mole balançando. Abriu a geladeira e a fechou. Velha mania dos tempos de fome, quando de dez em dez minutos, abria a geladeira na esperança de que alguém com bondade suficiente tivesse deixado algum alimento. Era sempre a mesma ilusão. E Alfredo lembrou dessa época. Voltou para a sala e sentou sua bunda desnuda no chão frio e olhou para um quadro, pendurado no centro da sala. Um barco velho e um pescador o empurrando. Uma paisagem incrível ao fundo.

- Carlinhos, meu irmão...

Pegou o quadro e o abraçou. Sentou-se de novo, e como um pai acolhe o filho, acolheu o quadro e o acariciou. De repente, lançou o quadro na parede, fazendo o mesmo se despedaçar em vários pedaços. Viu que havia silêncio na casa. O lado A havia terminado. Virou o disco com cuidado e ouviu a voz de Dylan regredir com seu descaso e inquestionável brilho. Com os olhos marejados, perambulou bêbado até o quarto e encontrou Mariana nua na cama. Ela havia bebido demais, mas se recuperava e recobrava a consciência.

- Fredo, que porra é essa? Tá chorando por quê?
- Me abraça, babe. Só me abraça!
- Mas...

Mariana era uma drogada, sofrida como o Alfredo. Aparenta uma idade bem superior, mas mantinha uma sensualidade honesta e sim, era bem atraente, embora seu braço fosse marcado por manchas roxas, bem distribuídas. Estava bebendo junto ao amigo, mas apagou em meio à gargalhadas.

Alfredo pulou na cama e se encolheu, puxando os braços da amiga para si. Mariana estava confusa e enquanto mirava a nuca do triste companheiro, cedeu à pressão e o envolveu em seus braços.

- Por que está chorando?

Alfredo não respondeu. Apenas se aconchegou. Enquanto se aconchegava, Mariana esqueceu do estado sofrível do amigo, desejando secretamente o seu corpo.

- Fredo, não faça nada do que vá se arrepender...
- Fazer o quê?
- Você sabe...
- Eu não sei de nada, Mari.

Enquanto Mariana desfalecia em constrangimento, seu amigo permanecia encolhido, como um animal acuado, fechado e decidido a permanecer daquele jeito.

- O que você tem, Fredo?
- Dá pra você me abraçar, porra?
- Tudo bem, mas tá muito estranho.

Mariana sentia sua calcinha umedecer. Foram raras as vezes que teve alguma experiência sexual com o amigo. Um sexo oral rápido, mas sempre embriagados. Nada que pudesse lembrar direito. Agora ela estava num pós-porre consciente, poderia conseguir algo.

- O que você está fazendo, Mari?
- Relaxa, Fredo...

Mari levou sua mão até o pau do amigo e começou a masturbá-lo. Alfredo arregalou os olhos, mas logo voltou ao seu ritual soturno de pranto. Mas enquanto suas lágrimas desciam, seu pau subia, de forma estranha. Ela saiu de trás e se postou à frente da triste figura do parceiro até encaixar sua boceta no membro rígido e roxo. Alfredo chorava, mas logo estava executando o vai-e-vem como se fosse uma trepada normal. Gozou dentro dela. Não tanto como na banheira.

Bob Dylan estava firme e forte, como um trovador de interior, cantando os versos de 'Desolation Row'. A melancolia estava no ar e Alfredo lentamente retirava seu pau das entranhas meladas de sua amiga.

- Gostou, Fredo?
- Vá se foder.
- Como assim?
- Já conseguiu o que queria, certo?
- Você é louco...

Alfredo se levantou com porra escorrendo pela extensão de seu pau, descendo até ao saco, agarrando-se nos pêlos escuros. Adentrou o banheiro e abriu outra garrafa verde de cerveja. Deitou sem cerimônias na banheira, em meio aos cubos de gelo e algumas garrafinhas que sobraram. Tremeu muito e arrepiou-se de um extremo ao outro. Deu um grito de insatisfação e cerrou os olhos.

Mariana levantou-se da cama e deu passos apressados em direção ao banheiro.

Right now I can't read too good
Don't send me no more letters no
Not unless you mail them
From Desolation Row


Alfredo olhou a sombra da amiga cada vez maior. Segurou o secador de cabelos e o ligou.

- Não, porra! Não! - gritou Mariana começando uma corrida.

Lá da sala, o solo desconcertante de gaita rolava solto. Era o fim do disco. Era lindo.

Alfredo soltou o secador e a lâmpada do banheiro e do corredor piscaram com força. Faíscas voavam para todos os lados, num espetáculo de horror. Mariana aterrorizada, brecou sua corrida e andou rapidamente de costas, tropeçando. Caiu nua, pasma e paralisada.

- Meu Deus do céu! Meu Deus do céu!

A amiga rastejou, tentando levantar-se e, ao conseguir, correu até a cozinha. Abriu a pequena porta do registro geral de energia e o desligou. Ligou para o 192 e foi ao banheiro desligar o secador da tomada. Voltou à cozinha e ligou o registro novamente. Vestiu uma bermuda cinza e uma camiseta do Queen. Olhou para o estado deplorável do amigo e chorou.

- Fredo, Fredo... esse era o meu lugar, idiota! Eu não tenho nada, ninguém. Pra quê tudo isso? Esse era o meu lugar!

Mariana agachou-se ao lado da banheira e abaixou os cabelos arrepiados do amigo. Os olhos dele estavam arregalados e ela tentou fechá-los, sem êxito. Chorava muito, em plena confusão de sentimentos e lembranças. Foi até a cozinha e pegou uma faca afiadíssima e voltou ao banheiro. Levantou a perna de Alfredo até visualizar a coxa magra do amigo. Passou com destreza a lâmina da faca na parte inferior, que estava dura, graças à abundância de gelo contida na banheira. Conseguiu destacar uma lasca da coxa do amigo e sem pensar duas vezes, colocou entre os dentes. Mastigou a carne doce e dura do companheiro, sem o mínimo sinal de ânsia. Estava ávida pela iguaria bizarra.

A campainha tocou.

Mariana ignorou o alerta que soava da porta e permanecia fatiando a perna de Alfredo e a consumindo, cada vez mais e maiores pedaços.

O enfermeiro tentou a maçaneta e viu que a porta não estava trancada. Com passos curtos e silenciosos, entrou pela cozinha. Olhos para os dois lados e permaneceu caminhando até ganhar a sala. Quando pensou em chamar alguém, Mariana, completamente descontrolada, surgiu à sua direita e o esfaqueou nas costas.

- Mas que diabos... - praguejou o enfermeiro caíndo de joelhos.

Mariana deu mais quatro facadas nas costas do pobre enfermeiro e o deixou na sala, agonizando em seus últimos suspiros. Correu até a cozinha e trancou a porta. Se dirigiu ao quarto e dentro de uma caixa comemorativa do Lucky Strike, apanhou um três oitão. Conferiu o tambor e lá estavam as oito balas brilhantes.

A campainha tocou novamente. Era o outro enfermeiro, que havia ficado na ambulância para retirar a maca.

- Puta que pariu, cadê o viado do Gilberto? - questionava o enfermeiro sobre o seu colega de trabalho esfaqueado.

Mariana pegou um pino de cocaína e arrumou rapidamente uma carreira desleixada. Aspirou com força todo o pó, ficando com rastros brancos no buço e na ponta do nariz. Tremeu e de um suspiro violento. Alcançou a arma e num rápido movimento, colocou o cano apontado para o céu da boca. Apertou o gatilho.

O estrondo da barulhenta arma de calibre trinta e oito, fez o enfermeiro que estava tocando a campainha ligar para a polícia.

Em doze minutos dois policiais estavam na porta, juntos ao enfermeiro, tocando a campainha. Em três minutos de curta paciência, um dos soldados arrombou a porta. Com armas em prontidão, apontadas para a frente, os policiais faziam movimentos bruscos, vasculhando cada canto. Chegaram à sala e um dos policiais contemplou o corpo ensangüentado do enfermeiro esfaqueado.

- Chame uma ambulância - avisou um dos policiais.
- Já temos um enfermeiro vivo aqui - retrucou o outro policial.
- Aquilo ali? - treplicou o policial apontando para o enfermeiro trêmulo e pálido no canto da sala.
- Tudo bem, vou chamar a ambulância.

Um dos policiais correu até a viatura estacionada afim de chamar a ambulância. Dentro da casa, Mariana, que havia atirado para cima num acesso de loucura, apareceu na sala, sorrateira e enxergou o policial de costas olhando para os pequenos detalhes da sala, revistando a varanda à procura do homicida. Quando o policial voltou de sua revista, deu de cara com Mariana, descabelada e rindo de forma malévola, apontando a arma contra o policial.

- Calma, minha senhora. Muita calma - o policial tentou amansar.

Mariana sem responder aos apelos, deu dois tiros no peito do policial, que ao cair, olhou para o próprio peito, e apagou. O enfermeiro que havia presenciado a cena, estático, deu um salto e correu para fora de casa, berrando.

- Viadinho de merda! - gritou Mariana ao ver o enfermeiro escandaloso fugir de sua vista.

Ao ouvir os passos na cozinha se aproximando, Mariana não hesitou e apontou novamente o cano para o céu da boca. O policial chegou e apontou a arma em direção à ela.

- Largue a arma! - ordenou o policial.

Mariana acenou em despedida para o policial e apertou o gatilho.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

prazer-fêmea

seios voadores, nenhum instinto materno
apenas bicos ardentes em direção
ao sexo
leite para sustento, não
sustento das fantasias dos homens, sim
e não haverei de descer às suas coxas
e o perigo de suas cercanias
ando pequeno, miúdo por um terreno vívido e fértil
humana clara de alma escura
girei meu corpo por cima do seu
procurando a fonte do cintilante calor
que se emaranhou desde os meus pés até a ponta da cabeça
e vi, de um extremo ao outro, que ali se originava
tesão, paixão, excitação
nas suas mãos lá estão
fabricados, embalados e negligentemente distribuídos
ao seu bel prazer
o seu prazer
dentro do seu prazer
porque você é o prazer-fêmea

sábado, fevereiro 16, 2008

Liso, Escorregadio

Homero estava convencido de que havia efetuado o crime perfeito. Sem pistas, sem o mínimo rastro, ele sorria enquanto vasculhava seu bolso procurando um cigarro solto. Lá estava um Marlboro vermelho, enrugado pelo lugar hostil onde se encontrava. Cigarro aceso, perfeito.

- Preciso dormir - pensou.

Arrastou-se pela cozinha apagando a luz. Bateu a cinza no chão, sem se preocupar com um eventual incêndio, tendo em vista que o chão era revestido por um carpete que por sinal, fazia tempo que não era aspirado. Pó, muito pó. À cada passo, pó. Apagou a luz da sala desabotoando sua camisa azul marinho e ao entrar no quarto, fitou o cinzeiro cheio pela metade - cinzas, gimbas e embalagem plástica do maço - e bateu novamente a cinza.

- Puta merda, que frio! De manhã tá quente, à noite esfria! Eu odeio essa cidade! Vai tomar no cu, São Paulo! - gritou olhando as ruas salpicadas de luzes, pela janela do décimo terceiro andar.

Lançou a camisa na cama e sentou-se para tirar a calça. Coçou a cabeça exausto, olhando para uma lasca que permanecia pendendo em sua escrivaninha. Lançou a calça na parede e a fivela do cinto arranhou a pintura.

- Foda-se!

Pegou o Slanted and Enchanted do Pavement e o colocou cuidadosamente no CD Player. Summer Babe começou a jorrar pelas caixas de som. Ao invés da euforia proposta pela canção (pelo menos ele sempre se animava com ela), Homero olhou melancólicamente para seu guarda-roupas, puxou uma bermuda e uma cueca e se dirigiu ao banheiro.

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As sirenes na rua Bartolomeu de Gusmão não paravam de escandalizar a paz dos moradores da Vila Mariana. Azul e vermelho cintilavam pelas paredes das pizzarias e prédios até que os dois carros destacados para o caso frearam bruscamente na frente de um prédio de tijolos, bem alto por sinal.

- Porra, deve ter uma bela vista lá em cima! - disse Osvaldo olhando para cima e limpando o suor da testa com sua carteira de identificação.
- É, Osvaldo... Como é bom entrar em ação no berço da burguesia! - retrucou Ulisses, com ares de revolta e satisfação.
- Você é um comunista idiota, isso é o que você é. - treplicou Osvaldo, levando um cigarro fumado pela metade à boca.
- E você é um cego. Foda-se você Osvaldo, não vou discutir agora - retrucou ao se dirigir à guarita do prédio - sei que seu cu tá piscando pra que eu me esquente e discuta, só pra você rir, se divertir. Vá se foder.
- Tá bom, tá bom. Mas pára com esse papo de burguesia. Isso me cansa, sabia?
- Depois a gente fala sobre isso.

O dia estava frio. O céu começava a juntar imensas bolas de nuvens negras, porém esse baile celestial era disfarçado pela escuridão da noite. O pizzaiolo largou a massa na mesa de manipulação e saiu envolto em farinha para verificar a ação dos homens que pararam na frente do adorável prédio de tijolos.

- Armando, volta aqui! Temos seis pizzas para entregar! - gritou seu João dos fundos da pizzaria.
- Seu João, a polícia colou aqui na frente, vai entrar no prédio!
- Pro diabo com a polícia! Volte pra massa! Sério!

Armando voltou murmurando alguns palavrões e continuou a manusear a massa pálida de pizza, enquanto se esticava para tentar ver algum movimento. Ele queria um tiroteio, uma perseguição. Mas sabia que seu João é um chefe implacável. Faria pizzas para um exército em meio a um front de batalha. Ele queria dinheiro, muito dinheiro.

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- Porra, vou cagar primeiro! - sussurrou Homero, enquanto procurava uma revista no quarto.

Achou um encarte de ofertas de um supermercado e correu para a latrina. In The Mouth A Desert tocava ao fundo. Ele deixou a porta do banheiro semi-aberta pois essa era a canção preferida dele. Enquanto a bosta escorregava pelo seu cu, ele escorregava pela privada, num alívio incrível. Logo retomou a postura e ergueu o encarte:

- Santo Cristo! O feijão não pode estar custando tanto assim! Sete reais! Maldito governo!

Folheou mais algumas páginas até que, ao chegar na parte de limpeza, jogou o encarte no chão e se limpou. Olhou para o box e não encontrou toalha alguma. Abriu a porta balançando os braços para que o cheiro se dissipasse, e dirigiu-se à pequena área de serviço onde o varal se encontrava. Pegou uma toalha vermelha e deixou a luz da cozinha acesa. Sentou no sofá e ligou para a pizzaria e pediu uma pizza.

- Traz troco pra vinte, beleza? E traz uma Brahma também.

Levantou-se e andou até o banheiro. Abriu o box e em seguida o chuveiro. Enquanto a água descia pelos seus longos cabelos, seus músculos cediam e o estresse parecia descer pelo ralo.

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- Pois não? - questionou o porteiro com solicitude em sua voz.
- Estamos aqui sob autorização judicial para deter o senhor Homero, que reside no apartamento 132 - disse Osvaldo com a mais genuina cortesia.
- Opa! É pra já!

O portão se abriu e os dois policiais adentraram o prédio, mostrando suas identificações para o porteiro, que distraído, permaneceu pasmo pensando no Homero.

- Antônio! Tão atrás de quem? - perguntou Armando, o pizzaiolo, do outro lado da rua.
- Do Homero, aquele cabeludo do décimo terceiro, sabe?
- Ah sim, ele vive pedindo pizza aqui. Aliás, pediu uma de anchova agora pouco!
- É melhor cancelar essa merda! Hoje ele vai ver o sol nascer quadrado! Hahahaha - gargalhava o porteiro com seus poucos dentes e o bigode amarelado de café e tabaco.

Enquanto o diálogo escandaloso entre portaria e pizzaria se prolongava com ironia e humor, os dois policiais penetravam a recepção do edifício. Ulisses apertou o botão do elevador.

- Olha essa recepção! Que móveis! Imagine a casa desse Homero. Deve ser um publicitário endinheirado, com seu carrinho do ano, todo folgado. Maldito! - rosnou Ulisses.
- Caralho, Ulisses, foda-se se ele tem grana! Vamos algemá-lo sem cerimônia e levar o safado pra delegacia. E deixe que os outros se encarreguem dele. Aliás, parece que você nunca lidou com ricos!
- Já lidei sim, e cada vez que lido com um burguesinho, morro de raiva! Eles têm dinheiro saindo pelo rabo, pra quê fazer crime?
- Eles são humanos, porra. Dinheiro não melhora ninguém - respondeu Osvaldo com olhar entediado.
- Eles são uns burros mesmo!
- Pra ter dinheiro nesse país, você tem que ser pilantra, esqueceu disso? Se liga Ulisses, para com essa sua raiva comunista!
- E você, pare com essa sua repulsa pela causa trabalhista!
- Eu não tenho repulsa alguma, eu só não fico recriminando quem tem dinheiro.
- Tá bom, depois a gente conversa sobre isso - desconversou Ulisses, enquanto abria a porta do elevador.

Quando Osvaldo apertou o botão do décimo terceiro andar, eles ouviram passos rápidos, de salto alto. Era uma mulher que abrira a porta do elevador. Entrou no mesmo e com semblante cansado, sorriu gentilmente para os policiais carrancudos.

- Boa noite - ela os cumprimentou, arrumando a franja loira.
- Boa noite - responderam em uníssono.

Enquanto o elevador subia, a dupla disfarçava ao máximo os olhares que permeavam o decote da loira, que permanecia olhando para a porta. O elevador chegou ao sexto andar e ela saiu, com um tchau singelo e o barulho de seus saltos a acompanhando.

- Meu Deus, Ulisses! Você viu ela? Puta que pariu! Eu largaria por alguns minutos essa detenção só pra foder ela rapidinho!
- Cala a boca, Osvaldo! Se concentra que a gente vai entrar em ação agora! - Ulisses repreendeu o amigo passando a mão pela cintura afim de pegar seu revólver.
- Comunista eunuco de merda! Só pensa em igualdade social! Sabe o que você precisa? Uma trepada linda!
- Tá bom, depois a gente fala sobre isso.

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Os vapores da água quente vindos do chuveiro elétrico tomavam o banheiro e graças a esses vapores, Homero escarrava sem parar na parede.

- Essa porra dessa água não fica morna! Ou quente ou fria! Puta merda!

Desligou o chuveiro e envolveu a cintura com a toalha. Sacudiu os longos cabelos e abriu a porta do box. Enquanto saía para se enxugar, pisou no sabonete e escorregou. O banheiro não era grande, na verdade era um tanto apertado, o que complicou a situação de Homero que ao cair, bateu a nuca na ponta do vaso sanitário. O impacto foi forte o bastante, fazendo Homero desmaiar, vertendo sangue da boca. A pulsação acabou e no corpo magro de Homero já não restavam resquícios de vida. O corpo dele ficou derramado junto à porta.

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- Senhor Homero, abra a porta agora. É a polícia! - vociferou Osvaldo.
- Porra, vamos ter que arrombar essa bosta - considerou Ulisses
- É, eu arrombo e você me cobre! - combinou Osvaldo.
- Feito!

Osvaldo tentou quatro vezes até que um chute mais forte fez a porta ceder. Inspecionaram a cozinha e a área de serviço. Nada. Com as armas em prontidão e apontadas para frente, vasculharam a sala, mas como nos outros cômodos, nenhuma novidade.

- Olha a TV do cara! - disse Ulisses fazendo sinal de riqueza com as mãos.
- Cala a boca, porra! - respondeu Osvaldo, morrendo de raiva.

Cada um entrou em um quarto, fazendo movimentos bruscos, abrindo guarda-roupas e novamente não encontrando nada. O cheiro de xampu que o vapor do banheiro alastrava direcionou a atenção da dupla para o banheiro e sua luz acesa. Ulisses acendeu um Camel e friamente bateu na porta.

- Senhor Homero, saia do banheiro, o senhor está preso.
- Ah, que se foda, Ulisses! Me cubra pois vou arrombar! - avisou Osvaldo.

Osvaldo conseguiu destruir a tranca da porta, porém a porta não abria. O corpo de Homero obstruia a entrada dos policiais.

- Homero, eu vou atirar na porra da porta! - ameaçou Osvaldo.
- Peraí! - disse Ulisses afastando seu colega do local.

Ulisses fez força e conseguiu visualizar a perna de Homero no chão. O sangue começava a invadir a entrada do banheiro.

- Meus Deus, o burguês se matou! - gritou Ulisses mordendo o próprio braço.
- Como assim? - perguntou Osvaldo enquanto voltava da sala.
- O miserável! Se matou! Puta merda!
- Vamos ver isso!

A dupla começou a trombar a porta com força, até que em uma batida, o corpo se mobilizou para o lado e a porta foi aberta, num espaço suficiente para entrar de lado. Ulisses entrou primeiro e contemplou o corpo morto e nu de Homero. Balançou a cabeça negativamente e bateu cinza na privada.

- Chame uma ambulância. Seja lá o que for, chame uma ambulância.
- Não parece suicídio, Ulisses.
- Diabos, foda-se. Chame uma ambulância.

O Pavement permanecia cantarolando no CD Player, a faixa era Fame Throwa. Ulisses olhou para a direção do quarto.

- Porra, Osvaldo, desliga essa merda de som. Como podem gostar disso?

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Estetoscópios, Radiografias e Mosquitos Noturnos

o chão do hospital não é tão branco
nem as vestes dos médicos
nem mesmo os filtros dos cigarros deles
nem a luz fluorescente da sala de espera
nem o azulejo que se derrama nos banheiros
o sorriso amarelo da atendente
não é branco como gostaria que fosse
nem tudo é como quero
nem sempre estou nos lugares onde quero estar
estar é algo tão condicional, sim, as condições que a vida me dá
para estar em algum lugar
a maca que aguarda um esfaqueado nesses dias de carnaval
jaz amarelada, abandonada, ao lado do segurança que faz plantão
com seu bigode sujo de escuro café
escuro como tudo que lá está, que era para ser branco e não é
se não é branco, é preto - não existem tonalidades para a melancolia
nem para a euforia
hoje cá estou, andando com as mãos atadas, sem notícias
um vela acesa em poços de lama
ansioso, sonolento sem sono
faminto sem fome
sob a sombra tenebrosa do medo
sob a angústia de ver a vela apagar
deus, como seus olhos são lindos e fazia tempo que não os via
pena que você não podia me ver naquela hora
mas as boas novas serpenteiam sorrateiras
nessa atmosfera
em meio ao peso dos maus anúncios
do som que ninguém quer ouvir
M-O-R-T-E
amanhã tudo estará escuro como sempre foi
estetoscópios, radiografias e mosquitos noturnos
negligência e desleixo
bebedouros sem copos
ambulâncias com corpos
a madrugada está apenas começando
e eu aqui, paciente como qualquer um lá dentro
olho pra fora
acho que vai acontecer um estupro no parque da Independência
são quatro e vinte e cinco da manhã
o segurança da guarita diz: que se dane
lanço meu cigarro fora, olho pro céu e penso:
a vida continua...