"Born to be wiiiiild", apenas esse trecho daquela música de rock se contorcia na mente de Ernesto. Finalmente aquela moto e Ernesto. Não, não se tratava de Ernesto Guevara e sua motoca riscando o mapa da América Latina. Até porque o Che jamais iria cantar uma música daquelas. Ele estava mais preocupado em ouvir flauta de índio boliviano. E a música não existia naquela época. Espero que esses argumentos tenham bastado. Ernesto nunca gostou de moto. "Máquinas da morte", era o que sempre dizia quando começavam a falar sobre o veículo de duas rodas. Ele não tinha o menor apreço pelos motoboys de São Paulo, mas quem o tinha? E verdade seja dita, Ernesto sempre foi adepto do transporte público. Ao viajar pelo interior do Paraná, recusou um serviço de moto-táxi, "perigoso demais para arriscar", pensava Ernesto enquanto ignorava o chamado do moço do moto-táxi. Mas aquela moto amarela, com traços de Harley-Davidson, ah aquela moto! Vibrava como milhões de abalos sísmicos num Japão qualquer aí. A liberdade de uma boa curva, a indecência de uma acelerada. "Onde você estava por todo esse tempo?", perguntava aos gritos, enquanto fazia curvas e costurava o trânsito embaraçado de São Paulo. Não havia pessoas na cidade, nas calçadas, nos pontos de ônibus ou nas portas de botecos, fumando seus cigarros na parte de fora do toldo. Não havia motoristas nos carros, ninguém lamentando o tempo perdido, ninguém ouvindo CBN querendo saber mais sobre o trânsito, aquele ecossistema de nervos e paciência budista. Havia dobermans. Deus, eles eram muitos. Não se intimidavam com o roncar da moto amarela. Não titubeavam em suas investidas, quando avançavam e rasgavam o ar com suas ferozes mordidas. "Quem eram aqueles malditos dobermans", pensou Ernesto enquanto tentava ressuscitar em sua mente um caminho, um atalho. Mas de repente, do que valia um GPS sequer, se Ernesto nem em São Paulo estava mais?
- Mas que maravilha! Agora não sei onde diabos me meti! - gritou Ernesto, enquanto sua voz ecoava outras frases.
Ernesto parou a moto, não tinha capacete para tirar. Ernesto era a aventura, era o esculacho, o peito estufado de encontro com a lei. Ernesto nem sequer usava meias. Era o esculacho. Desejou um pouco de bebida, água serviria, mas onde estava não havia o que desejar, a não ser a sobrevivência. Montou sua moto, castigou o pedal de partida com uma pela pisada e acelerou como nunca. O mundo estava ao contrário e o chão era nuvem. Era lindo. Mas postes, bancos de praça, semáforos, idosas e suas bengalas, calçadas rachadas, tudo caia sobre Ernesto. Mas não havia o que temer. Lar doce lar. "Por que tenho essa mania idiota de montar na minha moto em plena sala de casa? Devia parar com isso", pensou Ernesto, corrompido por lembranças estranhas, mas que eram suas. Ao menos pareciam ser. Dobermans.
- Mas o que é isso? Saiam desgraçados! - pisoteou novamente o pedal de partida.
A moto acelerava enlouquecidamente, o escapamento virado em direção aos dobermans. Mas eles não tinham medo. Valentes. Ernesto fechou a porta. "Já chega por hoje, preciso de um pequeno trago", dizendo isso, subiu a escada da sala com sua moto, e lançou-a embaixo de sua cama. Esfregou uma palma da mão na outra e caminhou em passos pausados, aquela bota de couro, bico fino, detalhes indecifráveis de costura, sim, aquela bota testemunhara cada coisa. Toc, toc, toc. Ernesto não lembrava que seu chão era revestido por um piso de madeira. Deu de ombros para o fato, dobrou seu lábio inferior, como se sofresse de alguma mágoa instantânea e olhou para cima. O teto girou, noventa graus de giro. Virou parede.
- Isso não é possível - resmungou enquanto coçava seus olhos, tentando acreditar no que acontecera.
Ao tirar as mãos dos olhos, um bar. O verde vivo, fluorescente, neon por toda a parede, aquele maldito esqueleto velho sentada em um dos tamboretes, chorando pelo leite derramado, declamando um poema sobre os benefícios do cálcio. "Beba leite", ela vociferava. Aquela mandíbula mexendo enquanto palavras saiam sabe Deus de onde, aquilo dava nos nervos.
- Sente aqui, Ernesto, aqui ao meu lado, rapaz! Anda! - um velho baixo, parrudo como uma anta, careca da testa até o meio da cabeça, com smoking branco e gravata borboleta vermelha com pontos amarelos dava pequenos tapas no couro que revestia o tamborete ao seu lado.
- Quem é você? - Ernesto caminhava lentamente, avesso a qualquer hospitalidade estranha. Sobrancelha franzida, mãos nos bolsos. TOC, TOC, TOC.
O homem pegou um bloco de notas e começou a escrever com um lápis envelhecido, todo mordido nas pontas. Era nostálgico em seu modo de escrever, como se estivesse torcido por uma mão enorme. Mão de Deus. Era uma criança velha, de smoking, é claro. Entregou um papel para Ernesto, que estava sentado no tamborete, mirando o barman, acompanhando cada ato do pobre funcionário. "É bom que ele não erre a mão nesse drink", Ernesto pensava enquanto apanhava o papel da mão ressequida do idoso calvo.
Economizo as palavras. Por isso escrevo.
- Não faz sentido, velhote - ergueu seu copo, olhando para a cor alaranjada que o líquido assumira.
Uma dentadura jazia inerte, dentro do copo. "Piada de mal gosto desse babaca", refletiu enquanto cerrava os dentes no bico do copo. O líquido passava entre os dentes da frente e desapareciam na imensidão de sua garganta. "Realmente não faz sentido".
- Me explique melhor, seu velho mudo dos infernos! - Ernesto tinha os ânimos inflamados.
Alguma coisa tinha naquela bebida. Ah, tinha. O velhote, meio caquético, meio mancebo (a julgar pelo seu vigor ao rabiscar o papel), continuava ali, apoiado no balcão, inclinado sobre o papel. Uma fila de formigas passava a centímetros de sua mão, que dançava sobre a folha grosseira e amarelada. Ele suava, e havia algo de urgente em seu olhar, como se tivesse uma verdade para contar. Como se fosse a última testemunha viva de um crime prescrito. Arrancou aquela folha do bloco e entregou outra vez para Ernesto.
Não se engane em relação a mim, garoto. Perdi minha língua para não enlouquecer. Não era sequer um instrumento de tropeço para mim. Era causa de insanidade. Assim Deus quis. Assim o é.
Ernesto leu a mensagem, raciocinou lentamente. Coçou a sobrancelha direita que estava levemente desequilibrada em relação a da esquerda. Amassou o papel e jogou para trás, ignorando o destino que iria tomar. O papel não chegou a tocar no chão, arqueou sua trajetória evitando o impacto com o duro solo. Sem explicações, sem razões para ser, o subiu suavemente, como uma andorinha domina os braços dos ventos. Ernesto percebeu que o papel estava lá de novo, ao lado do copo já drenado. "Haja a santa paciência, pra tolerar essas brincadeiras". Acenou para o barman e pediu um uísque, à moda antiga.
- Preste atenção, meu senhor. Não vou tolerar mágicas, truques. Odeio essas coisas e eu tô falando sério - ele apontava o dedo para o velho como se fosse uma testemunha indicando um suspeito como autor de um crime.
O velho sorriu serenamente, sem exibir os dentes. Sua boca era acidentada, lábios escurecidos e sulcados. Mas a feição era de um bom senhor, um velhinho daqueles que simpatizamos nas ruas. Fez um sinal com a palma da mão, pedindo para que Ernesto esperasse pelo próximo papel. Ernesto bufou com linhas desprezíveis, olhou para cima e apoiou seu cotovelo no balcão e em seguida, apoiando sua bochecha na palma da mão. Sua cara ficou engraçada.
- Ei chefe! E o meu uísque? Posso saber onde está? - perguntou desinteressado, com o olhar passeando lentamente pelo vazio.
- Eu já te disse que quem tem chefe é índio! - Ernesto ouviu a voz flutuando atrás de sua nuca.
Observou o velho que ainda estava lá, escrevendo, como se fosse uma criança entretida debruçada em seu livro de pintura. Observou o barman, aquele paspalho que observava a tudo. Notou algo impressionante: o uísque parara no ar. Não tinha ainda atingido o fundo do copo e o barman estava lá, encostado na porta dos fundos, parado, como se fosse uma cena comum. O esqueleto repetia sua ode ao cálcio. "Maldito esqueleto, odeio essa mandíbula trêmula. Não é possível que eu tenha uma mandíbula como essa", Ernesto era puro desprezo em suas considerações. Lembrou da voz por trás de sua nuca e virou. Era ele, Artur. Mas antes de sentir qualquer alívio por vislumbrar um rosto conhecido, sentiu aquela massa de ossos e pele, quatro dedos pontudos, fechados, massacrando a mandíbula de Ernesto. Sentiu como se um anjo maligno trancasse seu rosto com um cadeado de fogo. Ele não conseguia falar mais. A mandíbula estava travada, a dor se remexia em seus nervos, seus sangue borbulhava em intensidade, Ernesto via cores, explosões de cores, tudo girava.
- Espero que tenha aprendido a lição, meu nobre amigo - Artur estendia a mão para o amigo golpeado se recompor.
Ernesto pulou de imediato e procurou pelo velho. Havia apenas um papel escrito e o lápis desgastado, imóvel ao lado de um copo. Parecia rum.
Quando um homem ouve ecoar as palavras que diz, como se fosse um ciclo infinito, tende-se a medidas drásticas. Economize palavras ou arranque-as de seu solo nutridor. Eu sou homem. Eu arranquei.
Ernesto chorava ao terminar a leitura. Como se todas as suas dores fossem condensadas em uma pasta grosseira, áspera e agreste. Essa massa substituía seus músculos, nervos de angústia se materializavam e tiniam causando tremores assombrosos. E com todo esse processo de ebulição apenas lágrima, aquele líquido límpido, salgado e inofensivo, saía como produto daquela série de sensações. "Lágrimas não são assim tão inofensivas", Ernesto tocava sua mandíbula e sofria. Olhou-se no espelho e chorou mais um pouco. Não havia mandíbula. Não havia língua. Havia uma mancha, borrando seu rosto, a cor era indescritível. Essa cor não existia. A mancha se estendia do buço até o queixo.
- O cálcio é um milagre mineral, benéfico como é a flor, dentes e ossos... - o esqueleto teve seu poema interrompido por um copo que cortou o ar, bem rente à sua clavícula.
Ernesto procurava por Artur que havia desaparecido. Sentou no tamborete onde o velho sentara antes e alcançou o último bilhete. O esqueleto deu uma risada oportuna.
- Ei você! Da boca borrada! - apontava pra Ernesto - O que acontece com você?
Ernesto pegou o papel com a mensagem do velho e o ergueu com a mão direita. Com a mão esquerda sinalizou que iria escrever algo. Olhou para a mensagem, leu as duas primeiras palavras e ficou exaltado. Não havia mais uma folha de papel, nem guardanapos naquele bar decadente. Pegou o lápis com a mão esquerda e virou o bilhete. Escreveria no verso.
Ninguém pode sobrepor seus problemas ao dos outros. Não há escapatória para aquilo que você não entende e ignora. Não há fuga. Nem no verso de um papel.
Lágrimas lhe caíam dos olhos, cada vez mais espessas. Seus canais lacrimais estavam no limite. Procurou por todos os lados mas não achou sua cama. Queria a moto novamente. O esqueleto apontou para o norte e Ernesto correu como nunca. Observou uma figura escura a cinquenta metros dele. Era a cama. Se prostrou e lá embaixo, não percebeu nenhum resquício de sua moto. Mas três dobermans permaneciam sentados por lá, patas cruzadas e sete cartas em cada mão. "Isso parece o apocalipse!", Ernesto tentou voltar para o bar, mas um doberman arrancou seu pé direito, com uma mordida só. Com o pé de Ernesto em sua boca, despejou as sete cartas no chão. Os outros dois dobermans brigaram pelo pé, e os latidos e ganidos eram ensurdecedores. Sem o pé direito, Ernesto escapou de sua cama e correu até o bar. Ele perdia muito sangue. Sentou no tamborete, sem o pé direito, e viu o uísque enfim cair no fundo do copo. Esqueceu a dor e recebeu com prazer o copo. Tentou beber mas esquecera que não tinha mais boca. Apenas um borrão de cor não existente. Olhou para o que restou de seu pé e percebeu o sangue jorrar. Olhou para o pé esquerdo que mexia normalmente, obedecendo as ordens do seu cérebro. "Ao menos sou canhoto", pensou Ernesto pensando estar a sorrir, mas sabendo que nem dentes tinha mais.
- Cálcio, ah! o cálcio! Faz bem para os dentes, o cálcio! - o esqueleto era a alegria em osso e osso.
quinta-feira, maio 09, 2013
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