tag:blogger.com,1999:blog-200724922024-03-08T21:05:21.463-03:00Viva o Lado Negativo da VidaVisões negativas, cômicas e até filosóficas da vida... sim, como ela é.Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.comBlogger63125tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-44822353285110084822014-09-29T12:03:00.004-03:002014-09-29T12:41:48.644-03:00Entre o Temor e o TremorQuando ele puxa catarro para escarrar, parece uma cigarra ensandecida numa tarde de primavera. Maldito vizinho e malditas paredes sem isolamento acústico. Ele sempre derruba a escova de dente, o pente e o pote de gel. Eu sei. Dá pra ouvir. Sua mulher é mais cuidadosa com detalhes: não deixa a tampa do vaso despencar em estrondoso barulho, não fica praguejando enquanto mija ou caga (não sei), parece uma monja dos toiletes. Serena enquanto caga, nem deve feder. Cocozinho de anjo.<br />
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Vez em quando ela grita algo para o desgraçado do catarrento do companheiro dela, mas é incompreensível. Com certeza ela manda ele colocar a água pra ferver, "bota sal e óleo, hein? não quero macarrão grudado", ela deve gritar, enquanto passa creme nas pernas. Toalha enrolada na cabeça, como se fosse um turbante desengonçado. E as mãos delicadas passam lentamente aquele creme cheiroso em cada poro, milhares de poros de seus pés, canelas, coxas, joelhos. Bunda. Mãos, braços, cotovelos. Aquele cotovelo seco e enrugado. Eu tenho certeza disso.<br />
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Mas o que esquenta minha relação com eles é quando, em pleno banho, ouço batidas repetidas. Danados. Ah, seus danados. Eles batem na fina parede que nos separa. Ela geme (aí a monja vira puta mesmo), ele grita, maltrata aquela bunda meia-boca com belas bofetadas. Deve doer, porque eu ouço o chuveiro castiga-los com sua água quente e cá entre nós, aquelas bofetadas lá, doem em mim até. Ele geme e urra, grita enlouquecidamente. Ela começa a piar, como se fosse um bem-te-vi que só fala "bem". Imagine que bizarro. "Bem - bem - bem - bem". Esquece. Era melhor ter usado outra comparação. Do tipo: parece um sabiá sendo esganado. Aliás, isso é uma boa expressão chula pra sexo: "vou esganar o sabiá". Não. Pensando bem, parece mais uma tradução para punheta. Enfim, vou anotar isso para as rodas de bar. Mas voltando ao casal de vizinhos, fiquei ressabiado junto à parede, "juro que se essa parede desmoronar e eles caírem aqui, já engato meu pau na boca dela". Meu território, minhas regras. Não quero saber, não tem papo. Vai tomar pinto na garganta pra apender a parar de piar no banheiro. Falando em pinto, tenho uma comparação melhor: o som que ela emite, é como se fosse uma cambada de pintinhos, sabe? Aquela barulheira, aqueles piados intermináveis. Um absurdo. Mas aquela loucura no banheiro deles, aquele eco, a água se chocando com o chão, a púbis dele se chocando contra a bunda meia-boca dela, sim, púbis e bunda batizados com água de imoralidade, meu santo Cristo, sinto um reboliço. Nhec, nhec, nhec. Tchac, tchac, tchac. Eu começo a passar sabonete na cabeça , na cabeça de cima, diga-se de passagem. Perco a concentração, a noção do tempo, o banho se prolonga e meus dedos ficam enrugados, como se fossem dez mini sacos escrotais nas extremidades de minhas mãos. Mas não arredo o pé. De repente um silêncio. Fico lá, com a orelha na parede fria, meus cabelos lambidos, penteados pelos jatos de água intermináveis. E eu fico lá. Entre o temor e o tremor. Temo que eles me descubram em minha fantasia desagradável. E tremo de tesão quando os gemidos voltam. Tudo bem que parece que ela está sendo sufocada dentro de um copo de vidro, tamanho é o bloqueio que nos separa, mas enfim, não posso reclamar. A parede dá uma tremida repentina e eu dou um passo pra trás. "Opa, se essa merda desmoronar, já tô pronto", penso. Mas não desmorona, de jeito nenhum. E não, eu ainda não estava pronto.<br />
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Peguei o sabiá e comecei a mexer no pescoço dele. Passei o dedo suavemente pelo seu frágil pescocinho. Ele reage, cheio de não-me-toques.<br />
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Essa vizinha maravilhosa. Aqueles cabelos longos, levemente cacheados. Seus olhos verdes, um engano para os mais inocentes. Pobres meninos punheteiros. Ela é um engano demoníaco. Aquele nariz apertado caprichosamente pelo bom Criador. A boca não tinha um formato muito marcante, não era boca de boneca. Nada de mais. Apenas uma boca feita pra beijar, gemer, piar e gritar ordens do tipo "vá colocar a água pra ferver". Junte essa mistura de simplicidade e engano e coloque num rosto bem desenhado, com curvas ideais, bochechas firmes e na altura certa. Aquelas orelhinhas delicadas, os lóbulos parecendo tecos de pêssego pendurados. Bela, era isso que era, muito bela.<br />
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Era assim que eu imaginava minha vizinha. Não, eu nunca a vi. Mas sabe quando você sabe que sabe das coisas? Era o caso. Eu sabia que ela era assim. Igual um cara que imagina a cara de Deus ou de Jesus, por exemplo. Duvido que alguém comece a rezar sem visualizar uma cara. "Ó espectro divino, espírito sem face que tanto adoro", ora bolas, eu não sou idiota. Então, se você acredita em Deus, não me condene. Onde eu estava? Ah, falava da vizinha. Aquela deusa que pia. Aquele espírito com tetas. E que tetas. Eram grandes, volumosas. Exageradas. E aquele catarrento, aquela cigarra-humana estava lá, púbis na bunda, batismo imoral, gemidos e piados, lá estava ele, apertando aquelas montanhas da luxúria. Danados.<br />
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O sabiá se mexeu em minha mão, ameaçou piar, mas eu enforquei o bichinho. Tadinho.<br />
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E a água caindo. Meus ombros já deviam estar enrugados. Acho que até clareei um pouco, de tanta água que caía em minha pele. Mas estava lá, temendo e tremendo, enforcando o sabiá, com o ouvido na parede. Ploc, ploc, ploc. Os gemidos aumentaram, eu dei uma escorregada e choquei minha cabeça contra a parede. Toc, toc toc. Eles bateram na parede. Mal ele sabia que se a bendita parede caísse, eu estaria pronto para aquela bunda meia-boca da mulher dele. Malditos sejam, devem ter ficado nervosos, achando que eu havia protestado. Mas a verdade é que tudo deu certo para mim, o sem vergonha. Como contra-protesto ao meu não-protesto, eles aumentaram a intensidade. Ele gritava mais alto. Danados pirracentos. Pirraça gostosa. "Se a parede cair, meto a rola nela", pensei de novo. Ela deu uma risada alta, falou algo inteligível e voltou a gemer. O sabiá estava engasgado, roxo, os olhos esbugalhados, doido pra colocar o bico no trombone e eu impiedoso, sem vergonha, maníaco, enrugado, maltratando o sabiázinho. Tadinho. E eles começaram a pirraçar gostoso. Bateram mais forte. O boca de cigarra estava lá, voz grossa e abafada, devia estar vomitando insultos "sua cadela, sua puta, sua vadia" e ela devia estar enlouquecida "seu safado, cachorro maldito, me come". Danados demais. E o sabiá tadinho, doido pra urrar um impropério e nada. Estava roxo, o bichinho. Tadinho.<br />
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Mas eles uniram suas vozes, aquele casal danado e afinado. Chegaram no refrão de sua música imoral, chegaram no ápice, notas altas, vibrato, diafragma, "Alberto, cante com o diafragma, porra", lembrei do meu professor de canto gritando comigo. Mas lá estavam eles dois, que refrão! Chegaram lá. Chegamos lá. Eu era o vocal de apoio, o backing vocal, gemi baixinho, só pra servir de tapete para aquelas vozes. O sabiá gritou, urrou enlouquecido, como se contasse uma notícia ruim, uma fofoca daquelas. Parecia uma fofoqueira escandalosa. Que música. Que gritaria. Que pirraça. Eles bateram na parede, e lá estava eu, com o corpo franzino do sabiá em minhas mãos. Cansado, sofrido. Tadinho. E ouvi risadas gostosas no outro lado da parede. Essa parede desgraçada que não desmoronou. Risada embebida de relaxamento. O boca de cigarra catarrenta deu uma gargalhada, como se debochasse de mim, "esse vizinho otário aprendeu o que é uma boa foda", deve ter dito. Mal sabe ele que fizeram um ménage à trois comigo. Tecnicamente o sabiá estava no meio, então foi orgia mesmo.<br />
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Danados.Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-32370262163427916572014-07-29T17:50:00.001-03:002014-07-29T17:50:24.913-03:00O Profeta e a Turba<div class="MsoNormal">
Um dia descobrirás<o:p></o:p></div>
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Que tudo não passa de ilusão<o:p></o:p></div>
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Mas certamente estranharás<o:p></o:p></div>
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A ausência da iluminação<o:p></o:p></div>
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O desapego me é amigo<o:p></o:p></div>
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A meditação um abrigo<o:p></o:p></div>
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Onde estará a acesa chama?<o:p></o:p></div>
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A libertação, o Nirvana?<o:p></o:p></div>
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Lamentarás ao olhar para trás<o:p></o:p></div>
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No caminho sem esplendor<o:p></o:p></div>
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Em compreensão repentina e sagaz<o:p></o:p></div>
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Notarás ter esquecido o amor<o:p></o:p></div>
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Não há luz nos becos da fuga<br />
Passos de medo emitem mais sons<br />
Tinham razão, o profeta e a turba<br />O amor é o maior dos dons<br /></div>
Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-29321303165723931352014-07-16T00:45:00.000-03:002014-07-16T00:47:37.670-03:00O Sentido das Engrenagens de um Mingau FrioSerá que a vida não passa de um acidente? Afinal, qual é o sentido de ser bom? Qual é o sentido em fazer o bem ao próximo? Será que existe algum sentido em ser mau? Existe sentido em algo? Ou estamos apenas flutuando, girando ao redor de uma estrela entre tantas trilhões que existem por aí?<br />
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Eu não sei qual é o sentido das coisas. Você encontra pessoas que mudam sua vida e elas vão embora. Você ouve Canção da América e começar a sentir o coração como se fosse uma uva passa. Enrugado, mínimo e escuro. E que canção. Você para pra pensar que em muitos casos, o tempo passou e as relações, muitas delas, esfriaram assim como é natural um prato de mingau esfriar. No começo comemos pela beirada, na ansiedade da fome, do desejo. E assim é com as amizades. No inícios forçamos tudo, raspamos de forma singela a beirada endurecida daquele simples prato. E assim é com a amizade. É coisa simples, como um prato de mingau de maizena. Quando menos esperamos, o mingau já pode ser devorado pois está morno. E o que sobra? Aqueles freios gelados, resquícios das colheradas que desferiam ruidosos riscos ao prato. E assim é com a amizade. Depois de tudo, você despeja o prato na pia e vai pra sala. Vai ouvir a Canção da América. Que canção. Você acabou de comer um mingau e nem percebeu que de repente comeu o sentido das coisas. Ou a explicação para alguma coisa. Ou um simples paralelo. Rostos passam por sua mente, movidos por uma soturna engrenagem. Quantos amigos não se foram por aí, caminhando por trajetos que nunca imaginei? Quantos amigos eu não imaginei como amigos para toda a vida. E hoje não estão aqui. Não estão nem sequer ali.<br />
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"Qualquer dia amigo eu volto a te encontrar".<br />
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Aí você se questiona, "mas por que diabos precisamos perder pessoas?", "por que não podemos amar a todos?", "por que a vida é assim, tão transitória?", "por que tudo muda?", "por que queremos que tudo fique do mesmo jeito?". Você se pergunta "por que existe sempre o outro lado da moeda?", "por que apenas não somos pra sempre?", "ou apenas mudamos toda hora?", "por que a estagnação opõe a mudança?" Aí você desliga a música e percebe que teria que questionar o porquê da vida se opor à morte. Ou seria que a morte se opõe à vida?<br />
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Não, você não quer mais pensar na vida. Nem eu. E nem queremos pensar no mingau das amizades. Nem na engrenagem que faz tudo girar ou na colher que pode travar tudo que gira. Se tudo travar, morreremos? Ou apenas viveremos sem entender mais nada? Peraê! A engrenagem parou? Qual era o sentido da engrenagem mesmo?<br />
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Nada faz sentido por aqui, né? Mas você sabe se algo realmente tem sentido?Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-16171835399053278392014-07-12T14:08:00.002-03:002014-07-12T14:08:18.716-03:00AfogadoEu pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: o que eu fiz da minha vida? Quando eu era criança, costumava esperar dos céus. Esperava um sussurro de um espírito celeste. Um sussurro de Cristo. Eu esperava que um anjo aparecesse com um bandeja, austero e viril porém com olhar doce. Esperava que naquela reluzente bandeja a resposta estivesse lá, resplandecente, saída das mãos de Deus. Hoje vejo as silhuetas que a fumaça do cigarro formam nesse ar seco do Planalto Central e me distraio. Talvez seja melhor assumir minha característica mais escancarada: a distração. Talvez se eu não me concentrasse nos cantos, na pia, na casa dos homens onde verti minha vida, talvez seria melhor. Mas no fundo da minha alma eu grito por luz. Sim, eu quero luz. Quando tento me conformar com a dor, quando tento assumir minha limitação, quando simplesmente olho para a perna que não existe mais, arrancada pelas frustrações, caduco, saltito de desespero. No fundo de minha alma eu grito que quero mais. Sim, eu quero mais. Oh vida, o que fiz de você? Ou o que diabos você fez de mim? Acredito que aquela fatia mais doce da vida ficou na mesa de pessoas impiedosas. Que me amaram e me fizeram mal. Eu apenas fui levando, aprendendo aos trancos e barrancos. E não havia um farol sequer na costeira para me lançar sinais. Um sinal que fosse. Apenas olhos de homens, com olhos sombrios. Olhos escuros sem aquele brilho que tanto desejei. Sempre busquei ser guiado por pessoas e nunca prestei atenção que eu guiava. Mas cegos que guiam cegos causam tragédia: um abismo fica cheio deles. Mas acredito que não era cegueira, era distração.<br /><br />Vida, o que fizemos?<br /><br />E aí joguei tudo fora, alvoroçado. Desvariei. Perdi a noção da hora. Sonhei e ao sonhar rompi com o mundo. Naveguei em navios por toda a vida, pulando entre eles, alternando entre eles. E de repente os queimei em pleno oceano revoltoso e pulei contra as ondas. Ávido de mar. Amei o amor urgente, salguei minha boca com a maresia, sentindo as costas lanhadas pela tempestade. Nadei até fraquejar, clamei por um grande peixe para me engolir e me vomitar em terra firme. Mas eu sabia que não estava contrariando uma ordem divina. Lamentei. Engoli água, boiei com as algas, arrastei folhas, carreguei flores e me desmanchei. Não olhei nenhum momento para os céus, exceto o momento em que os trovões pararam. Foi ali que encontrei a paz. Mexi minhas pernas como o entrelace de penas numa cama de paixão. Mas não as sentia. Meu coração batia forte, pulsava, pulsava. A correnteza me guiava, mas todos os músculos estavam exaustos. Ergui meus olhos para avistar a terra, mas para minha surpresa, percebi que havia dado meus olhos para alguém. Um rosto sem olhos. Com que cara vou partir? Sem a visão que conforta todo o corpo, que nos aquece nas ilusões da vida, como hei de partir? Com a correnteza misteriosa que nos leva pra cá e pra lá aos caprichos dos ventos retumbantes, pra onde que é que ainda posso ir? E mesmo que chegasse a uma praia, sinto que não resta em mim força, não me resta energia para um piscar de olhos (se ainda os tivesse). Queria apenas amar o amor serenado, das noturnas praias. Aí pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: com que pernas eu devo seguir?<br />
<br />No levitar das águas, no borbulhar das águas salgadas, a noite é eterna. Senti minha mente acalmar, como se me entregasse aos braços dessa misteriosa eternidade. Mas eu não tinha as travessuras dela. Nadei como um peixe ferido por um anzol, recém fugido do pescador. Busquei refúgio nela, aquela que andava nua, ávida de mar e que amava como uma pagã, mas esqueci que o oceano é infinito. Se eu fosse uma gota de sangue, teria errado de veia e me perdido na bagunça do coração dela. Me perdi na ironia da vida ao sentir um destroço de um dos navios que queimei. Não tinha forças para me abraçar a ele. Ele cheirava a queimado.<br /><br />Aí perguntei aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Não, não perguntei. O silêncio do mar durante a noite é o mesmo silêncio dos céus. E talvez a dor do inferno seja o silêncio.<br /><br />Cortei o silêncio, mas não o feri com uma canção de glória ou uma santa melodia. Engasgado com água, catatônico, com brilho no rosto que há muito não se via, teimei em balbuciar aquele ingrato mantra das almas condenadas, das almas perdidas e afogadas.<br /><br />Eu te amo.<br />
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<br />Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-73960954153008424012013-09-10T09:46:00.003-03:002013-09-10T10:18:44.103-03:00PlanosMais uma vez deixo mil planos para trás<br />
Quando o 'não' é uma locomotiva que puxa vagões de razões obscuras<br />
Quem poderá obstruir o trilho?<br />
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Mais uma vez deixo cem planos para trás<br />
Quando seu abraço equivale às costas de um desconhecido que caminha atormentado à minha frente, em uma avenida qualquer<br />
Quem poderá se virar para mim?<br />
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Mais uma vez deixo dez planos para trás<br />
Quando seus olhos já não encontram os meus e já não se entrelaçam nossos dedos, como uma ciranda de crianças em risonho recreio<br />
Quem poderá formar a roda e cantar algo que me faça rir?<br />
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Mais uma vez deixo um plano para trás<br />
Quando o futuro se mascara de passado para esconder as lágrimas do presente que a vida lhe deu<br />
Quem ousará fazer planos?<br />
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Mais uma vez deixo o nosso plano para trás<br />
Plano Piloto rumo às Águas Claras e salgadas que insistem em brotar de meus olhos<br />
Quem me faria voltar?Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-27500912976248006152013-05-09T15:31:00.002-03:002013-05-09T15:35:28.316-03:00Uma Ode ao Cálcio"Born to be wiiiiild", apenas esse trecho daquela música de rock se contorcia na mente de Ernesto. Finalmente aquela moto e Ernesto. Não, não se tratava de Ernesto Guevara e sua motoca riscando o mapa da América Latina. Até porque o Che jamais iria cantar uma música daquelas. Ele estava mais preocupado em ouvir flauta de índio boliviano. E a música não existia naquela época. Espero que esses argumentos tenham bastado. Ernesto nunca gostou de moto. "Máquinas da morte", era o que sempre dizia quando começavam a falar sobre o veículo de duas rodas. Ele não tinha o menor apreço pelos motoboys de São Paulo, mas quem o tinha? E verdade seja dita, Ernesto sempre foi adepto do transporte público. Ao viajar pelo interior do Paraná, recusou um serviço de moto-táxi, "perigoso demais para arriscar", pensava Ernesto enquanto ignorava o chamado do moço do moto-táxi. Mas aquela moto amarela, com traços de Harley-Davidson, ah aquela moto! Vibrava como milhões de abalos sísmicos num Japão qualquer aí. A liberdade de uma boa curva, a indecência de uma acelerada. "Onde você estava por todo esse tempo?", perguntava aos gritos, enquanto fazia curvas e costurava o trânsito embaraçado de São Paulo. Não havia pessoas na cidade, nas calçadas, nos pontos de ônibus ou nas portas de botecos, fumando seus cigarros na parte de fora do toldo. Não havia motoristas nos carros, ninguém lamentando o tempo perdido, ninguém ouvindo CBN querendo saber mais sobre o trânsito, aquele ecossistema de nervos e paciência budista. Havia dobermans. Deus, eles eram muitos. Não se intimidavam com o roncar da moto amarela. Não titubeavam em suas investidas, quando avançavam e rasgavam o ar com suas ferozes mordidas. "Quem eram aqueles malditos dobermans", pensou Ernesto enquanto tentava ressuscitar em sua mente um caminho, um atalho. Mas de repente, do que valia um GPS sequer, se Ernesto nem em São Paulo estava mais?<br />
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- Mas que maravilha! Agora não sei onde diabos me meti! - gritou Ernesto, enquanto sua voz ecoava outras frases.<br />
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Ernesto parou a moto, não tinha capacete para tirar. Ernesto era a aventura, era o esculacho, o peito estufado de encontro com a lei. Ernesto nem sequer usava meias. Era o esculacho. Desejou um pouco de bebida, água serviria, mas onde estava não havia o que desejar, a não ser a sobrevivência. Montou sua moto, castigou o pedal de partida com uma pela pisada e acelerou como nunca. O mundo estava ao contrário e o chão era nuvem. Era lindo. Mas postes, bancos de praça, semáforos, idosas e suas bengalas, calçadas rachadas, tudo caia sobre Ernesto. Mas não havia o que temer. Lar doce lar. "Por que tenho essa mania idiota de montar na minha moto em plena sala de casa? Devia parar com isso", pensou Ernesto, corrompido por lembranças estranhas, mas que eram suas. Ao menos pareciam ser. Dobermans.<br />
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- Mas o que é isso? Saiam desgraçados! - pisoteou novamente o pedal de partida.<br />
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A moto acelerava enlouquecidamente, o escapamento virado em direção aos dobermans. Mas eles não tinham medo. Valentes. Ernesto fechou a porta. "Já chega por hoje, preciso de um pequeno trago", dizendo isso, subiu a escada da sala com sua moto, e lançou-a embaixo de sua cama. Esfregou uma palma da mão na outra e caminhou em passos pausados, aquela bota de couro, bico fino, detalhes indecifráveis de costura, sim, aquela bota testemunhara cada coisa. Toc, toc, toc. Ernesto não lembrava que seu chão era revestido por um piso de madeira. Deu de ombros para o fato, dobrou seu lábio inferior, como se sofresse de alguma mágoa instantânea e olhou para cima. O teto girou, noventa graus de giro. Virou parede.<br />
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- Isso não é possível - resmungou enquanto coçava seus olhos, tentando acreditar no que acontecera.<br />
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Ao tirar as mãos dos olhos, um bar. O verde vivo, fluorescente, neon por toda a parede, aquele maldito esqueleto velho sentada em um dos tamboretes, chorando pelo leite derramado, declamando um poema sobre os benefícios do cálcio. "Beba leite", ela vociferava. Aquela mandíbula mexendo enquanto palavras saiam sabe Deus de onde, aquilo dava nos nervos.<br />
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- Sente aqui, Ernesto, aqui ao meu lado, rapaz! Anda! - um velho baixo, parrudo como uma anta, careca da testa até o meio da cabeça, com smoking branco e gravata borboleta vermelha com pontos amarelos dava pequenos tapas no couro que revestia o tamborete ao seu lado.<br />
- Quem é você? - Ernesto caminhava lentamente, avesso a qualquer hospitalidade estranha. Sobrancelha franzida, mãos nos bolsos. TOC, TOC, TOC.<br />
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O homem pegou um bloco de notas e começou a escrever com um lápis envelhecido, todo mordido nas pontas. Era nostálgico em seu modo de escrever, como se estivesse torcido por uma mão enorme. Mão de Deus. Era uma criança velha, de smoking, é claro. Entregou um papel para Ernesto, que estava sentado no tamborete, mirando o barman, acompanhando cada ato do pobre funcionário. "É bom que ele não erre a mão nesse drink", Ernesto pensava enquanto apanhava o papel da mão ressequida do idoso calvo.<br />
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<i>Economizo as palavras. Por isso escrevo.</i><br />
- Não faz sentido, velhote - ergueu seu copo, olhando para a cor alaranjada que o líquido assumira. <br />
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Uma dentadura jazia inerte, dentro do copo. "Piada de mal gosto desse babaca", refletiu enquanto cerrava os dentes no bico do copo. O líquido passava entre os dentes da frente e desapareciam na imensidão de sua garganta. "Realmente não faz sentido".<br />
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- Me explique melhor, seu velho mudo dos infernos! - Ernesto tinha os ânimos inflamados. <br />
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Alguma coisa tinha naquela bebida. Ah, tinha. O velhote, meio caquético, meio mancebo (a julgar pelo seu vigor ao rabiscar o papel), continuava ali, apoiado no balcão, inclinado sobre o papel. Uma fila de formigas passava a centímetros de sua mão, que dançava sobre a folha grosseira e amarelada. Ele suava, e havia algo de urgente em seu olhar, como se tivesse uma verdade para contar. Como se fosse a última testemunha viva de um crime prescrito. Arrancou aquela folha do bloco e entregou outra vez para Ernesto.<br />
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<i>Não se engane em relação a mim, garoto. Perdi minha língua para não enlouquecer. Não era sequer um instrumento de tropeço para mim. Era causa de insanidade. Assim Deus quis. Assim o é. </i><br />
Ernesto leu a mensagem, raciocinou lentamente. Coçou a sobrancelha direita que estava levemente desequilibrada em relação a da esquerda. Amassou o papel e jogou para trás, ignorando o destino que iria tomar. O papel não chegou a tocar no chão, arqueou sua trajetória evitando o impacto com o duro solo. Sem explicações, sem razões para ser, o subiu suavemente, como uma andorinha domina os braços dos ventos. Ernesto percebeu que o papel estava lá de novo, ao lado do copo já drenado. "Haja a santa paciência, pra tolerar essas brincadeiras". Acenou para o barman e pediu um uísque, à moda antiga.<br />
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- Preste atenção, meu senhor. Não vou tolerar mágicas, truques. Odeio essas coisas e eu tô falando sério - ele apontava o dedo para o velho como se fosse uma testemunha indicando um suspeito como autor de um crime.<br />
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O velho sorriu serenamente, sem exibir os dentes. Sua boca era acidentada, lábios escurecidos e sulcados. Mas a feição era de um bom senhor, um velhinho daqueles que simpatizamos nas ruas. Fez um sinal com a palma da mão, pedindo para que Ernesto esperasse pelo próximo papel. Ernesto bufou com linhas desprezíveis, olhou para cima e apoiou seu cotovelo no balcão e em seguida, apoiando sua bochecha na palma da mão. Sua cara ficou engraçada.<br />
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- Ei chefe! E o meu uísque? Posso saber onde está? - perguntou desinteressado, com o olhar passeando lentamente pelo vazio.<br />
- Eu já te disse que quem tem chefe é índio! - Ernesto ouviu a voz flutuando atrás de sua nuca.<br />
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Observou o velho que ainda estava lá, escrevendo, como se fosse uma criança entretida debruçada em seu livro de pintura. Observou o barman, aquele paspalho que observava a tudo. Notou algo impressionante: o uísque parara no ar. Não tinha ainda atingido o fundo do copo e o barman estava lá, encostado na porta dos fundos, parado, como se fosse uma cena comum. O esqueleto repetia sua ode ao cálcio. "Maldito esqueleto, odeio essa mandíbula trêmula. Não é possível que eu tenha uma mandíbula como essa", Ernesto era puro desprezo em suas considerações. Lembrou da voz por trás de sua nuca e virou. Era ele, Artur. Mas antes de sentir qualquer alívio por vislumbrar um rosto conhecido, sentiu aquela massa de ossos e pele, quatro dedos pontudos, fechados, massacrando a mandíbula de Ernesto. Sentiu como se um anjo maligno trancasse seu rosto com um cadeado de fogo. Ele não conseguia falar mais. A mandíbula estava travada, a dor se remexia em seus nervos, seus sangue borbulhava em intensidade, Ernesto via cores, explosões de cores, tudo girava.<br />
<br />
- Espero que tenha aprendido a lição, meu nobre amigo - Artur estendia a mão para o amigo golpeado se recompor.<br />
<br />
Ernesto pulou de imediato e procurou pelo velho. Havia apenas um papel escrito e o lápis desgastado, imóvel ao lado de um copo. Parecia rum.<br />
<br />
<i>Quando um homem ouve ecoar as palavras que diz, como se fosse um ciclo infinito, tende-se a medidas drásticas. Economize palavras ou arranque-as de seu solo nutridor. Eu sou homem. Eu arranquei. </i><br />
Ernesto chorava ao terminar a leitura. Como se todas as suas dores fossem condensadas em uma pasta grosseira, áspera e agreste. Essa massa substituía seus músculos, nervos de angústia se materializavam e tiniam causando tremores assombrosos. E com todo esse processo de ebulição apenas lágrima, aquele líquido límpido, salgado e inofensivo, saía como produto daquela série de sensações. "Lágrimas não são assim tão inofensivas", Ernesto tocava sua mandíbula e sofria. Olhou-se no espelho e chorou mais um pouco. Não havia mandíbula. Não havia língua. Havia uma mancha, borrando seu rosto, a cor era indescritível. Essa cor não existia. A mancha se estendia do buço até o queixo.<br />
<br />
- O cálcio é um milagre mineral, benéfico como é a flor, dentes e ossos... - o esqueleto teve seu poema interrompido por um copo que cortou o ar, bem rente à sua clavícula.<br />
<br />
Ernesto procurava por Artur que havia desaparecido. Sentou no tamborete onde o velho sentara antes e alcançou o último bilhete. O esqueleto deu uma risada oportuna.<br />
<br />
- Ei você! Da boca borrada! - apontava pra Ernesto - O que acontece com você?<br />
<br />
Ernesto pegou o papel com a mensagem do velho e o ergueu com a mão direita. Com a mão esquerda sinalizou que iria escrever algo. Olhou para a mensagem, leu as duas primeiras palavras e ficou exaltado. Não havia mais uma folha de papel, nem guardanapos naquele bar decadente. Pegou o lápis com a mão esquerda e virou o bilhete. Escreveria no verso.<br />
<br />
<i>Ninguém pode sobrepor seus problemas ao dos outros. Não há escapatória para aquilo que você não entende e ignora. Não há fuga. Nem no verso de um papel.</i><br />
<br />
Lágrimas lhe caíam dos olhos, cada vez mais espessas. Seus canais lacrimais estavam no limite. Procurou por todos os lados mas não achou sua cama. Queria a moto novamente. O esqueleto apontou para o norte e Ernesto correu como nunca. Observou uma figura escura a cinquenta metros dele. Era a cama. Se prostrou e lá embaixo, não percebeu nenhum resquício de sua moto. Mas três dobermans permaneciam sentados por lá, patas cruzadas e sete cartas em cada mão. "Isso parece o apocalipse!", Ernesto tentou voltar para o bar, mas um doberman arrancou seu pé direito, com uma mordida só. Com o pé de Ernesto em sua boca, despejou as sete cartas no chão. Os outros dois dobermans brigaram pelo pé, e os latidos e ganidos eram ensurdecedores. Sem o pé direito, Ernesto escapou de sua cama e correu até o bar. Ele perdia muito sangue. Sentou no tamborete, sem o pé direito, e viu o uísque enfim cair no fundo do copo. Esqueceu a dor e recebeu com prazer o copo. Tentou beber mas esquecera que não tinha mais boca. Apenas um borrão de cor não existente. Olhou para o que restou de seu pé e percebeu o sangue jorrar. Olhou para o pé esquerdo que mexia normalmente, obedecendo as ordens do seu cérebro. "Ao menos sou canhoto", pensou Ernesto pensando estar a sorrir, mas sabendo que nem dentes tinha mais.<br />
<br />
- Cálcio, ah! o cálcio! Faz bem para os dentes, o cálcio! - o esqueleto era a alegria em osso e osso.<br />
<br />Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-43586968847586533802013-05-05T14:30:00.001-03:002013-05-05T19:18:52.361-03:00Barriga de Chope- Nelson, nós conversamos em uma reunião com a gravadora.<br />
- Sim, acredito que as pessoas conversem em reuniões, a não ser que exista a possibilidade de vocês tocarem bongô fumando merda, olhando pro teto - acendi um cigarro enquanto balbuciava meu sarcasmo.<br />
- Olha Nelson, você é um bom baixista, ninguém tem dúvida disso.<br />
- E também componho metade das músicas - cortei novamente a fala do empresário da banda.<br />
- Sim, você é um excelente letrista. Também não temos dúvida disso. Mas é que...<br />
- 'Nós', 'temos', é muita terceira pessoal nesse papo. Quem são vocês? Em nome de quem você está falando, pelo amor de Deus? - soprei fumaça intencionalmente na direção do rosto dele.<br />
- Esse 'nós' significa os caras da gravadora, o Martinho e eu - o seu jeito soturno de falar começou a me deixar agitado.<br />
- Pois bem, desembucha logo. E pare de falar olhando pra baixo, parece criança arteira depois de fazer merda. Aliás, que merda você fez?<br />
<br />
A tarde era quente, mais um daqueles dias típicos em São Paulo. Você sai de casaco pela manhã, morrendo com um frio moscovita, ao meio-dia tudo o que você quer é que a cidade se torne uma colônia naturista e que todos andem nus balançando suas bolas e seus seios. Eu odiava aquela salinha do estúdio. Era pra ser apenas mais um ensaio da banda. Os Fumos Enrolados. Eu odiava o nome da banda, mas fui voto vencido. Eu tinha uma lista de sugestões, todas vetadas. Acredito que o nome 'Os Tolos da Colina' era mais legal, tinha um fundo beatlemaníaco, alimentaria a curiosidade do público. Mas fui voto vencido. E o Paulinho Kabul era um bom moço. Um empresário esforçado, bebia como se o seu corpo fosse uma grande esponja. Sempre tinha boas ideias e sua rede de contatos, bem, era um tanto medíocre. Mas ele havia conseguido aquele contrato com a gravadora e a sua moral conosco foi catapultada. Ele pegou um cigarrinho de maconha, girou o baseado por alguns minutos, com olhar fixo num cartaz pregado na parede daquela maldita salinha. O cartaz era de um show do Deep Purple em Montreaux, no ano de 1969. Tenho certeza absoluta que aquele ano havia sido melhor que essa merda de 2006. <br />
<br />
- E então, Paulinho? - arregalei meus olhos, fuzilando-o com raios de pressão. Eu mais parecia com um homem morrendo afogado, de tanta apreensão.<br />
- O pessoal da gravadora acha que você não ajuda na imagem da banda. <br />
- Pffff - fiz um ruído tremendo meus lábios, externando desprezo - O que uma coisa tem a ver com a outra? <br />
- Pra eles faz sentido, apenas isso. Eu argumentei, cara. Juro pela minha mãe - ergueu seu braço, abrindo a mão, com a palma virada para mim.<br />
- Quer dizer que somos apenas imagem? Somos apenas ícones legais? E em qual momento vocês falaram sobre música? - minha cara de afogado agora era de afogado em meio a uma cacetada de tubarões.<br />
- Não falaram sobre música.<br />
- Agora já não existe 'nós', existe apenas 'eles'.<br />
- Nelson, é assim que o mercado funciona. Não tem como nadar contra a maré.<br />
<br />
Eu continuava atacando o cigarro com dedicação, apertando o filtro macio entre meus dedos. A minha vontade era de apagar aquele cigarro na testa dele.<br />
<br />
- Veja bem, aquilo que era uma era de ouro - apontei para o quadro do Deep Purple - Não tinha isso de 'imagem', de 'comércio'. Caralho, os caras eram maltrapilhos, fediam e não estavam se importando.<br />
- Eu sei disso, mas os tempos mudaram, Nelson! Você é um idealista, não dá pra viver assim! Hoje temos uma série de novos conceitos, porra...<br />
- Maldita cultura de massa. Aliás, quer dizer que vocês vão virar uma bandinha como qualquer uma dessas? Que se vende? Você sabe que o Martinho vai ter que fazer uma plástica naquela cara horrível - eu havia me acomodado na pequena poltrona dura, de tecido desgastado e manchado.<br />
- Nelson - os olhos de Paulinho estavam amansados, o efeito da maconha havia acariciado sua mente - se você quiser uma máquina do tempo, não sou eu que vou te dar - começou a rir suavemente, com feição de um chinês que trabalha duro em uma mina de carvão.<br />
- Então além de me dispensar, você ainda me destrata? Só um instante.<br />
<br />
Estendi meu braço na direção de Paulinho, pedindo para ele esperar ali.<br />
<br />
- Ei Nelson! - deu uma risada - Onde vai? Pegar uma arma?<br />
- Precisaria de uma bomba pra fazer o que gostaria - respondi desanimado enquanto ganhava o corredor.<br />
<br />
Fechei a porta da salinha maldita e fui até outra sala, onde deixávamos nossas coisas para ensaiar. Aquela corja que antes era minha banda, já havia se mandado. Covardes. Abri um pequeno armário e percebi que minha garrafa de Jack Daniels estava lá. Eu não bebia esse uísque por ser modinha entre roqueiros. Era o melhor mesmo, eu gostava muito. Eu ainda tinha dois terços da garrafa cheia, isso daria para me fazer raciocinar. Dei um pulo até a pequena copa do estúdio, que estava imunda e abri a geladeira branca, descascada e enferrujada em sua base. Havia gelo também. Mas como nem tudo era classe, o único copo disponível era um de requeijão. Despejei quatro cubos de gelo e voltei para a salinha, com um copo em uma mão e a garrafa na outra. O carpete empoeirado e encardido do estúdio me fez pensar no covil em que ensaiamos. Nem é tudo isso. Vira e mexe encontrávamos pequenas bandas idiotas perambulando pelos corredores daquele estúdio chinfrim, gravando suas demos, com dinheiro contado, todos se achando os roqueiros consagrados. Confesso que eu não estava nem aí para toda a aura esplendorosa de sucesso que circunda as ambições de cada moleque que se propõe a fazer um som. Eu estava lá para fazer algo diferente. Eu tinha base musical, conhecimento da história da música, eu sabia o caminho das pedras para criar algo novo, mas no final das contas, eu era um péssimo músico. Aquele papo do Paulinho, de eu ser um bom baixista, foi bajulação. Como se fosse uma enfermeira passando algodão molhado no meu braço antes de enfiar uma agulha enorme em minhas veias. Deus do céu.<br />
<br />
- Onde estávamos? - perguntei adentrando a sala e fechando a porta.<br />
- Hã? - Paulinho estava pra lá de Bagdá. Ou pra lá de Kingston. Somente os esclarecidos entenderão.<br />
- Olha aqui, Paulinho, largue essa erva danada e me dê sua atenção - eu era imperativo, mas com a serenidade de uma vaca num pasto.<br />
- Diga, meu querido Nelson. Diga o que quiser, meu querido Nelson.<br />
- Corta esse papo de 'querido', cara. Eu vou beber, e já que você quer se entorpecer nessa merda, então seremos dois entorpecidos discutindo.<br />
- Boto fé.<br />
- Bota fé... sei - comecei a trabalhar no uísque.<br />
- Pois bem, meu caro Paulinho...<br />
- Corta essa de 'meu caro' - Paulinho começou a rir de forma ligeira, aquilo afetou minha retórica.<br />
- Ei, Paulinho, seu porra! Ouça!<br />
<br />
Paulinho enfiou aqueles dentes amarelos pra dentro da boca novamente e finalmente ficou quieto.<br />
<br />
- Cara, vocês estão nessa de se vender mesmo? O que tem de mais em mim? Eu nem sou drogado, porra - meu tom era lamurioso.<br />
- A gravadora vai colocar a banda pra tocar em uma série de programas na MTV. E sabe, a banda tem mania de tirar camisa em êxtase, mostrando tatuagem, pulando igual macacos, aquela merda lá, todo mundo drogado. É a visão do inferno, tá certo, mas vende. As menininhas estão loucas por vocês. Aliás, menos você.<br />
- O que tem eu, caceta? Me explique es-pe-ci-fi-ca-men-te - pausei a última palavra para ver se aquela mente fumada entenderia.<br />
- Você tem barriga de chope. Você não tem tatuagem. Você é o intelectual da banda, só bebe e fuma, não curte uma droguinha sequer. Você tem perfil para tocar com o Los Hermanos ou algo parecido.<br />
- Ei, eu fumo uma maconhazinha de leve.<br />
- Então... É de leve. A gravadora quer algo bonito e subversivo. Quer todo mundo em forma. E o seu cabelo não ajuda.<br />
- Meu cabelo? Ele é o mais legal dessa banda! O Pépe tem caspa pra cacete! A cabeça dele parece um telhado de casa americana no natal, parece neve! Fica pulando no palco com aquelas caspas nos ombros, parece que saiu de um pacote de biscoito de polvilho! E olhe o cabelo do Martinho, parece uma palha de aço enferrujada. Se você der uma tapa na cabeça dele, o cabelo se desfaz!<br />
- O Martinho é o símbolo da banda, é o que a gravadora quer.<br />
- Ah sim... olhei para Paulinho com desdém - A gravadora não vai trocar o nome dele? Aquilo é nome de sambista.<br />
- É, é uma boa sugestão - seu olhar era vago, como se visse um quadro, em algum museu legal.<br />
- Tá vendo? Você também se vendeu. Puta que pariu - finalizei o primeiro copo. A tarde seria longa.<br />
- Você parece um comunista falando - esboçou um sorrisinho naquele rosto salpicado de marcas de espinhas.<br />
- Ei, quem satiriza os comunistas sou eu! - ergui minhas costas apontando para o rosto dele.<br />
- Abaixe o dedo, Nelson... você é muito atrevido.<br />
- Quer dizer que então você vai se prostituir? Ótimo. Vão fazer música para menininhas enlouquecidas? O que querem? Boquetinho no camarim? Meter o dedo naquelas ninfetinhas? Porra, eu achava que você não gostava do cheiro de fraldas. Amigão, foda-se essa banda, vou continuar fumando, bebendo e comendo bocetas adultas.<br />
- Os Beatles faziam música pra meninada, Nelson. Isso não é de hoje. Estamos falando do começo dos anos sessenta - o pobre diabo me lançou um olhar desafiador, seguido de um ar de soberba, como se tivesse o argumento definitivo.<br />
- Ohhhh - olhei para o alto como se vislumbrasse uma revelação divina - Então os Fumos Enrolados serão os novos Beatles? Daqui quatro anos vocês lançarão algo parecido com o 'Revolver'? E o 'Sergeant Pepper's'? Daqui cinco anos? Uau! - eu sou extremamente exagerado com minhas ironias.<br />
- Não... vamos apenas curtir e ver no que vai dar.<br />
- Meu Santo Cristo! E é assim que você vai levar essa banda? Deixa a vida me levar? - terminei o segundo copo, com leve torpor de sentidos.<br />
- Deixe de ser antiquado, Nelson. É assim que o mundo funciona! Pare de ser o músico romântico! - de supetão, Paulinho se ergueu da cadeira.<br />
- Baixa a bola, camarada.<br />
- Camarada? Tá vendo? Parece comunista. Vá sumir pelo interior, vá cantar folk numa comunidade hippie. Haja paciência.<br />
- Meu Deus do céu! Pra mim já basta!<br />
<br />
Ele podia me ofender de diversas formas. Mas ali ele passou da conta. Me ergui da poltrona, deixando o copo com os gelos quase vencidos pelo calor no chão acarpetado e ensaiei um gingado de boxe. Paulinho se assustou com minha apelação para a violência.<br />
<br />
- Vamos! - ergui meu rosto, extremamente austero - Erga-se! Ninguém me chama de comunista, ninguém me chama de hippie! Nossa amizade chegou num ponto crítico.<br />
- Calma Nelson, calma, cara - ele recuou as costas na cadeira e levantou a guarda de forma penosa.<br />
- Calma uma ova!<br />
<br />
Fui para cima daquela puta musical. Mas eu estava levemente bêbado, sentia a suavidade de uma nuvem nas pernas, a leveza de uma bailarina em seu número mais glorioso. Caí em cima dele e golpeei a maçã de seu rosto sofrido e esburacado. E ele, como um bom covarde, esperneou e relinchou, como um pangaré em perigo.<br />
<br />
- Cale a boca e lute como homem! Sua puta maldita! - rosnei, babando em seu rosto.<br />
- Você está acabado, Nelson! Saia de cima de mim, idiota! Caraaaaalhoooo! - ele tentava chamar a atenção de alguém com seu escândalo.<br />
- Você me paga por tudo isso, desgraçado! Lute como um homem! - minha determinação era tão grande ao montar em cima da carcaça daquele desgraçado, que eu poderia facilmente ser campeão de rodeio, nenhum touro seria suficientemente arisco pra me derrubar.<br />
- Me deixe levantar! Você quer brigar como homem? Me deixe levantar! Eu vou te dar uma lição daquelas, pode apostar!<br />
<br />
Meu orgulho foi ferido e me ergui daquele corpo raquítico e me postei, gingando com brilhantismo. As pernas se alternavam, meus braços estavam leves e meus ombros relaxados. Eu era uma espécie de Mohammed Ali brasileiro e com barriga de chope. Paulinho ergueu-se lentamente, desajeitado, assustado. Ficou parado diante de mim, olhando para a porta. Seu olhar fica entre mim e a porta. Ele falou algo desafiador.<br />
<br />
- Seu merda, me pegou desprevenido. Vamos ver do que você é capaz!<br />
<br />
Ao dizer isso, deu um pinote e fugiu pela porta. Ouvi os passos pesados de um cagão, atacando o carpete imundo do estúdio. Ele gritava, me acusando de loucura. Ouvi a porta de entrada do estúdio fechar. Me recompus e servi mais um pouco de uísque, sem gelo, sem frescura. Naquela situação, eu poderia beber água sanitária e ainda pediria mais. Corri até a janela da salinha maldita, me desviando da pequena mesa redonda e barata e consegui visualizar a rua. Paulinho corria feito louco em direção à padaria, enquanto eu bebia meu uísque, processando ainda a derrota, o fim de minha carreira musical. Fazia parte. Levantei minha camiseta e olhei para minha barriga; ela sempre me acompanhou, nunca foi empecilho para conquistar uma moça ou para jogar um bom futebol. E agora ela estava ali comigo, me olhando, redondinha, macia, peluda, como se me consolasse pelo fracasso. Bebi o último gole do uísque que já se tornara forte à medida que meu sangue ia esfriando. Acariciei lentamente minha barriga, com a complacência de uma grávida, como se eu estivesse esperando um pobre neném.<br />
<br />
- Foda-se tudo isso. Preciso de uma coxinha bem crocante.Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-14970065747220922452013-04-30T14:41:00.002-03:002013-04-30T14:53:25.719-03:00Os Apuros de um Futuro PapaiEra mais um dia seco em Brasília. Seco mesmo, como se giletes transpassassem minhas narinas. Você sente o corte a cada inspiração e um leve alívio a cada expiração. O ato básico da vida é um sacrifício quando se vive sob quinze por cento de umidade relativa do ar. Mas eu já estava me acostumando e até então, meu nariz nunca sangrara.<br />
<br />
O metro às seis da tarde exibia sua coleção abarrotada de pessoas, todas elas com presença cativa naquela plataforma curta e cada vez menos capaz de comportar tanta gente. É como se tirassem o fogo do inferno, mas mantivessem o calor. O desespero, a falta de ar, a negligência com o próximo, as cotoveladas, os rostos desfigurados, como se manequins assumissem vida, mas continuassem sem coração e sem exageros, a distância de Deus e do seu Paraíso, transformavam aquela cena em uma figura que desesperaria Dante e sua descrição bonitinha de inferno. Quando o trem de modelo defasado (sim, existem alguns modelos modernos com narradora robô) chegava lentamente, prenunciando o ritmo sereno de sua jornada até o fim da linha, as pessoas se apinhavam ao redor das portas, o empurra-empurra, pessoas se atirando, saltitando, girando e trombando nas barras de alumínio do trem, promoviam um balé assombroso do cotidiano. Eram bailarinos sofridos, sem flexibilidade, com apenas um passo ensaiado, o passo do desdém, da busca do alívio, da busca por um assento. São raros os momentos em que os instintos se sobrepõem a qualquer ato de humanidade, seja a cortesia, ou seja o pensar. Pensar na vida, pensar nos planos, no amanhã, no ontem. Naquele momento, não existia o homo sapiens. Era como se um bando de macacos estivesse a se refugiar, sob o abrigo de uma caverna, de um sol flamejante, torturante. Ali eles apenas existiam. E existir era apavorante. Eu estava aquém daquela feira de odores e fluídos, aquele contrabando de olhares. Eu sempre deixava aquela loucura cessar e entrava triunfante, ficando em pé mesmo. Prefiro minha paz, nem que o preço seja permanecer por meia-hora sobre meus pés chatos. Sempre tinha uma leitura interessante ou simplesmente ficava bolinando meu celular. Mas nem sempre eu conseguia repousar em quietude perspicaz; pessoas que esperavam pelo trem que levava a outro destino (em Brasília são dois os destinos que partem da estação Central: Samambaia e Ceilândia - ambos sofridos) montavam um batalhão de choque, declarando aquele território como seu, impedindo a entrada de pessoas que ainda não entraram no trem, evitando aquele alvoroço. Eles simplesmente teimavam firmes como se fossem numerosas espadas do rei Arthur, postada em frente às portas do trem. Eu pedia licença, dava doces cutucões nos ombros, mas eles fingiam não ouvir, não sentir. Eram múmias em sarcófagos abertos, empoeirados pela ignorância. Forcei minha entrada como se quisesse arrombar uma porta, e aquilo geralmente despertava os ânimos. Passei entre uma velha descabelada e suada e um homem nanico, com a cabeça mais larga que o comum, exibindo pouco revestimento capilar em sua extensão. Parecia uma caricatura desenhada por um cego reumático. Enfim entrei e me voltei para a porta, encarando aquelas múmias sem expressão, envoltas por lençóis de indiferença. Deus como estou poético.<br />
<br />
Naquele dia, eu ouvia Perry Como, um cantor tão defasado como os trens velhos do metrô de minha amada capital. Eu flutuava, abençoado pela interpretação de 'Come Rain or Come Shine'. "Oh, Deus, essa música eu dediquei à Elisa", pensei com a testa enrugada. Lembrava do meu olhar entrelaçado ao dela. A canção era entoada pela Billie Holiday. Me arrepio só de lembrar. O nariz dela, levemente enrugado, cúmplice daquela boca discreta, que insistia em me provocar com aquele sorrisinho atrevido. "Maldita seja Elisa, queria você aqui comigo, miserável do inferno". Chacoalhei minha cabeça discretamente, para me desprender daquela imagem do passado. Ainda doía muito. Fiquei a observar o sossego e a harmonia que enfim subjugou aquela massa de reprimidas figuras. Como em qualquer concentração de pessoas, a paz era espetada por tagarelices das mais diversas. Aquilo em muitos casos me desconcentrava. Mas um homem, comprimido em seus trinta anos, barba falhada, mas farta, com roupas mal ajambradas gritava como um vendedor da rua vinte e cinco de março.<br />
<br />
- Que Deus abençoe a viagem de vocês! Que Deus nunca deixe acontecer com vocês o que aconteceu comigo! - caminhava com dificuldade entre os cidadãos que, como era esperado, permaneciam indiferentes ao clamor do pobre diabo.<br />
<br />
Percebi uma inquietação fora do normal em seu rosto. A expressão de desespero se promovia sobre os vincos de sua face morena e bem avermelhada, com algumas pequenas cicatrizes. Rosto claramente castigado pelo sol e pela desconfiança. Um cara novo como aquele não devia ter tantas rugas. Pausei a música e deixei um dos fones de ouvido cair.<br />
<br />
- Eu fui um idiota! Eu sou um idiota! Não me julguem, pelo amor de Deus. Que Jesus tenha misericórdia de mim - apontou para o céu, sem erguer muito o braço - Mas eu não quero pagar por isso! Eu preciso de ajuda! Ah, Senhor, eu preciso de ajuda!<br />
- Credo, o que você fez, véi? - era uma adolescente gotejada por piercings em todos os cantos aparentes, se destacando em meio a outros moleques com ar de deboche.<br />
- Eu vou ser julgado, eu sei que vou. Por favor, tentem me entender! - o homem urrava, deixando aquelas múmias atentas.<br />
- Desembucha logo aí, porra! - um homem musculoso ergueu sua voz, nervos evidentes no pescoço, com a mão aberta e estendida para o louco, como se fosse estapeá-lo.<br />
<br />
As pessoas estavam apreensivas, o silêncio era unânime. Apenas os ruídos do trem castigando os trilhos cortava aquela interrupção brusca do barulho. As pessoas arregalavam seus olhos, como se esperassem pelo desenrolar do último episódio de uma novela.<br />
<br />
- EU ENGRAVIDEI MINHA NAMORADA! - dizendo isso, despencou sua postura já vacilante e quase se esparramou pelo chão do trem.<br />
- Puta que me pariu, cara! Vai se foder! - um homem de óculos e camisa amassada quebrou o silêncio, abrindo espaço para mais críticas.<br />
- Meu Deus! Pensei que ele tinha matado alguém!<br />
- Eu também! Tipo, a mãe dele! Sei lá! Algo parecido<br />
<br />
Já não se tratava de burburinho. O trem parecia uma convenção de vendedores. Um misto de alívio e chacotas passeava pela atmosfera em forma de comentários rápidos e altos. E como já era previsto, as pessoas que conversavam antes do episódio, voltaram com seus assuntos, dando risadas. Quem não estava conversando, começou a conversar. E eu avesso a tudo isso, meneei negativamente minha cabeça e fitei o louco e futuro papai. O trem freou e o condutor anunciou que chegávamos na estação 102 Sul. Mais pessoas com juízo adormecido entravam como zumbis, lentamente, lançando olhares uns para os outros, como formigas que se chocam no caminho do formigueiro.<br />
<br />
- EI! EU NÃO ACABEI! - o homem sofrido voltou berrar.<br />
- Ei campeão, já deu, hein? Chega! - era o homem musculoso novamente, com aqueles nervos saltitantes no pescoço, aquilo me provocava repulsa.<br />
- Opa, opa! - gritei e me dirigi ao grandalhão, enquanto enrolava meus fones de ouvido e os colocava no bolso da calça.<br />
<br />
O homem tomou um susto, como se fosse um milagre alguém enfrentá-lo. Ele era mais baixo que eu, mas o braço dele tinha o diâmetro da minha coxa. Eu tenho boas pernas. Ele soltou sua mochilinha de rato de academia, estufou o peito e gesticulou muito.<br />
<br />
- Opa O QUÊ, meu irmão? Vai querer criar problemas? - O Golias vociferava em minha direção. Minhas pernas tremiam, mas meus olhos se mantinham alinhados aos dele.<br />
- Não quero criar problemas, mas você não tem o direito de ameaçar um cara tão desesperado - minha calma estava inabalável, como se fosse um grosso véu escuro revestindo uma porção trêmula de gelatina.<br />
- Você virou juiz pra dizer meus direitos?! - mais gritos. A voz dele não era lá essas coisas, não era grossa.<br />
- Amigão, deixe o cara esmolar. Ele já está cheio de problemas... - fui interrompido.<br />
- Amigão um caralho!<br />
- Ué, você me chamou de seu irmão no começo dessa discussão - eu era um monge urbano, embasado na pacífica retórica.<br />
- CALE A BOCA! - ele apontou pra mim e em seguida forçou passagem entre as múmias entorpecidas pelo espanto que a situação provocava.<br />
<br />
Eu estava um pouco longe da muralha humana, e quando ele se deslocou, ginguei um pouco, peguei minha mala e me escondi atrás de algumas figuras empalhadas que serviam apenas como obstáculos, não como seres humanos animados. Isso era uma vantagem.<br />
<br />
- Ei, tire sua mão de mim, filho de uma quenga! - um homem com sotaque bem forte de Pernambuco se desvencilhou de mim.<br />
- EI! Pare com isso, seu veado! - o homem louco e bagunçado, futuro papai, se lançou contra o incrível Hulk do cerrado.<br />
- Tire suas mãos de mim, seu corno desgraçado! - o grandalhão latia, enquanto tombava no chão.<br />
<br />
As pessoas se apinhavam ao redor dos assentos, deixando uma espécie de ringue para que lutássemos. Eu odiei a ideia. Quando aquela torre animada tombou, aproveitei para me fazer de apaziguador. Não seria legal chutar aquele morro de músculos quando ainda estava caído. Não eu, Nelson, espancado duas vezes, sendo uma dessas vezes, num trem. Lancei-me entre os dois brigões, como um juiz de vale-tudo, finalizando o embate. Ilusão minha. Senti uma mão calejada, como se fosse um tijolo lascado, se apoderar de meu fino braço. Dei um grito agudo e comecei a me debater. Como um sabonete molhado, me livrei da opressão do homem bombado. E ele estava irritado. O louco, futuro papai, levantou-se em um só movimento e se afastou. "Filho da puta, você me paga, maldito", praguejei contra o recuo do meu aliado. O monstro sagrados dos trilhos levantou-se usando as duas mãos e bufou. Sua pele estava roxa, como se tivessem trocado a pele dele por um tecido grosseiro e escuro. "Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito", pensei enquanto lembrava que sempre sonhava em dizer isso diante da face da Dona Morte. Não era bem aquela senhora de capuz e foice que se apresentava diante de mim. Mas era tão assustador quanto. Quando a montanha de ódio preparava sua investida fatal, o alucinado que seria papai gritou:<br />
<br />
- PUTA QUE PARIU! ALGUÉM ME OUÇA!<br />
<br />
As pessoas pararam e o touro com fisionomia humana desviou seu olhar para o louco. Respirei ofegante, por alguns segundos. Enquanto calculava minha fuga, lamentava a coincidência de estar em um dos trechos mais longos entre estações. Da estação 102 Sul, o trem só pararia na estação 108 Sul, negligenciando a 104 e 106. Culpa do governo. Maldito PT.<br />
<br />
- Eu não quero causar essa zona toda, pelo amor de Deus! Só quero pedir dinheiro para pagar o aborto da minha namorada! - havia convicção nos olhos reféns dos sulcos que dominavam a pele de seu rosto. Sim, havia convicção.<br />
- Pra pagar o que? - perguntei em voz alta e chocada, meio impressionado, meio procurando desviar a atenção do brutamonte para a nova situação que se desenhava.<br />
- Para minha namorada abortar! Quem quer mais um marginal nas ruas? Eu não tenho condição pra criar esse moleque! - se explicava como se fosse um advogado em meio a um tribunal.<br />
- Você precisa de Jesus! Tome vergonha na cara, seu safado! - uma velha reuniu forças e abandonou seu assento preferencial, dirigindo-se ao louco, que agora, não sei se será papai.<br />
- Minha senhora, com todo o respeito... - o homem sentia a hostilidade da humanidade. Eu sabia como era isso.<br />
- PESTES COMO VOCÊ DEVERIAM MORRER! - o titã do planalto central latiu. A atenção dele já era do cara doido. As batidas do meu coração estavam mais calmas. "Deus, não é dessa vez que entrego meu espírito", pensei dando risada do conteúdo patético da minha cabeça.<br />
<br />
E mais uma vez - que me perdoe o leitor pelo tema repetitivo das minhas narrativas - o pau comeu.<br />
<br />
O louco - que levando em consideração aquela situação - realmente não seria mais papai, apenas se jogou no chão, em posição fetal, protegendo sua cabeça e erguendo de forma penosa o outro braço. Pessoas jorravam contra o pobre indigente. E o pior: ele não era indigente. Era um louco apenas. E as pessoas não se davam conta disso. De estado vegetativo, evoluíram ou regrediram para o êxtase violento. "Essas coisas me preocupam, o mundo está perdido", pensei enquanto ouvia o anúncio do condutor do trem, de parada iminente na próxima estação.<br />
<br />
O trem parou, mas antes de escapar daquele vagão da morte, me meti no meio do emaranhado de bárbaros e, pronto para saltar até a plataforma em um só movimento, esperei o apito que anunciava o fechamento das portas. Quando as luzes que ficavam acima das portas piscaram, desferi um murro na nuca do grandalhão, que desmoronou em cima de alguns idiotas que gritavam com o louco. Saltei rapidamente, sentindo o golpe de uma das portas no meu pé esquerdo. O gorila branco estava esboçando alguma reação enquanto eu via o trem deixar a estação lentamente. Acenei para aquela tribo de loucos e ganhei os degraus da escada. Naquela noite, voltaria para casa de táxi.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-65244619226284600802013-04-17T17:04:00.005-03:002013-04-17T17:04:51.322-03:00A Contradição Encarnada em Passos VacilantesEu caminhava lentamente, seguindo meu novo ritmo de vida. Depois eu explico. Olhava hipnoticamente para meus sapatos opacos em movimento. Havia um pequeno risco marrom, era barro, com certeza. Eu ainda não havia engraxado os benditos sapatos e não foi por falta de ofertas. Nunca em minha vida alguém chegou pra mim e se ofereceu pra engraxar meus sapatos, até porque eu sempre usei tênis, inclusive em trabalhos mais formais. Ouvir um moço qualquer me chamando de patrão, excelência ou doutor era uma novidade absurda pra mim. Eu me sentia, talvez pela primeira vez, um homem digno.<br />
<br />
- NELSON! - ouvi meu nome em alto e bom som, era um som grave, como se uma foca estivesse me chamando.<br />
<br />
Continuei minha marcha despretensiosa. Eu ziguezagueava com frequência, meus passos sempre foram vacilantes, o que me fazia suspeitar, ao menos uma vez por dia, de uma espécie de AVC iminente. Aquela espécie de foca continuou a me chamar, mas desta vez, meu nome vinha seguido de barulho de passos rápidos. Respirei fundo e preparei uma expressão de surpresa.<br />
<br />
- Meu Deus, Nelson! Você? Você aqui em Brasília? - meu cérebro começou a mexer nas fichas de contato. <br />
- Acho que sou eu... - balbuciei alguns ruídos prolongados - e você? Quem é?<br />
<br />
Antes que ele respondesse, meu cérebro puxou a ficha do infeliz. Fiz expressão de decepção misturada com surpresa sincera.<br />
<br />
- Eu sou o Caio, pô! Namorava a melhor amiga da Amanda, sua ex, lembra? - a boca dele era enorme. Um homem com mais de 30 anos usando aparelho é repugnante.<br />
- Caio, eu sei quem é você, caralho. Mas você é muito atrevido, não?<br />
- Como assim, cara? Não entendi - seu rosto tomou a forma de um ponto de interrogação, enquanto ensaiava um abraço, com os braços levemente erguidos.<br />
- Além de atrevido, é cínico também! Que maravilha! - minhas mãos começavam a ferver. <br />
- Mas Neeeeelson, o que eu fiz pra você? Você não está me confundindo? Eu sou o Caio, morava no Sacomã, lá em São Paulo! - recolheu suas mãos junto ao peito, com aquele rosto envelhecido.<br />
- Eu sei quem é você, Caio, por Deus, eu sei quem é você! Você é o cara que, quando terminei o namoro com a Amanda - fiz um sinal de 'abre aspas' arqueando levemente minha postura pra frente -, acabou ficando com ela. Logo você, Caio! E nem escondia!<br />
- Cara, eu não fiquei com a Amanda! Eu juro! <br />
- Odeio quem não respeita juramentos, fica jurando a esmo! Não te dou uma lição aqui porque estamos na Câmara. Se não, que Deus me ajude, eu te daria uma surra!<br />
- Nelson, de onde você tirou essa história?<br />
- Da boca das pessoas, das redes sociais com as fotos de você saindo com ela... - fui interrompido.<br />
- Peraê! Vai me dizer que agora você é de ouvir picuinha, fofoc... - interrompi o desgraçado também.<br />
- E DA BOCA DA AMANDA! - as pessoas passavam atônitas com minha reação. Ver aquele bando de assessores bem apessoados, com seus crachás balançando no peito, me encarando com feição confusa, me fez acalmar o facho. A assessora loira e brava que me deixa intrigado diariamente, surgiu do nada, me olhou de soslaio e passou como um raio. Me contive.<br />
- Oh... ela te contou então? - Caio exibia traços de uma criança com calvície. Aquela bochecha infantil, rosada me deixava mais possesso.<br />
- Olha, é muito atrevimento da sua parte. Saia da minha frente - fechei os olhos, erguendo meu rosto, típico comportamento da aristocracia francesa diante de conflitos familiares.<br />
- Mas Nelson...<br />
- Mas o quê? Acha que só porque houve uma coincidência das grandes e nos encontramos em Brasília, só porque o mundo é pequeno, o passado está limpo? Que tipo de homem você é?<br />
- Me perdoe cara. Pensei que poderíamos voltar a nos falar, pelos velhos tempos.<br />
- Caio, eu não gosto de você. Não tem velhos tempos. Não suporto seu aparelho, sua careca prematura, esse nariz pontudo, essa sua cara de mórmon. <br />
- Cara de mórmon? - o aparelho dele refletiu um raio de luz.<br />
- Todos os mórmons que conheci na vida, tinham seus traços. Você deve ser algum missionário, só pode ser. Pelo menos você é chato como um deles!<br />
- Desisto. Me desculpe por tomar o seu precioso tempo, Nelson. Espero que esteja tudo bem com você.<br />
- Tá vendo? Parece um maldito mórmon falando. A não ser que esteja sendo irônico - aponteio dedo pra ele.<br />
- Não estou sendo. Bem, que se dane. Até um dia.<br />
<br />
Caio passou por mim com indiferença no olhar e passos firmes. Senti seu perfume, doce e forte, o que me fez sentir mais raiva dele. Com certeza eu ficaria com dor de cabeça. Pensei em como fui rude e me senti bem. Coloquei a mão nos bolsos e voltei a caminhar, com o ritmo que havia descrito no começo. Ritmo vagaroso, coisa que até estranhei no começo, quando cheguei na capital do país.<br />
<br />
Lembro que meses antes de decidir vir para cá, lia uma reportagem, em alguma revista de turismo, onde descreviam o cotidiano dos brasilienses. Engravatados pegando mangas em árvores. Umidade abaixo dos dez porcento, vias sem calçadas para pedestre (provavelmente eu seja o maior pedestre de todos os tempos). Sentado no vaso sanitário vaticinei: "jamais tocarei meus pés sofridos e maltratados naquela cidade planejada". Mas como sou um espécie de contradição encarnada, cá estou. Na verdade, São Paulo me cansou por uma série de coisas. Sim, espancamentos estão na lista. E demorei meses pra me recuperar da última sova que tomei em Congonhas. Mas aquele episódio acabou por ser tão benéfico, veja bem, sofri por algumas semanas pelo fim do meu relacionamento. Foi justo, eu fiz merda, todo segredo é revelado um dia, mas por Deus, não precisava ser antecedido por um espancamento covarde. Já coleciono dois espancamentos e aquilo realmente dói. E aqueles chutes nas costelas, de alguma forma, resvalaram em minha alma e, como todo mundo sabe, dor da alma é difícil de tratar. E eu não sou um homem religioso, não consigo acreditar que uma força invisível cure minhas dores. Por isso bebo. Mas isso é outro papo, muito complicado.<br />
<br />
Cheguei em Brasília para trabalhar, a convite de um amigo. O velho Abel, sabe Deus o motivo, confia muito em mim. E de passo em passo, vacilantes em alguns momentos, cheguei na Câmara dos Deputados. Assessoria de imprensa de deputado. Nem eu acredito, mas a verdade é que eu, que perambulava de bar em bar na Terra da Garoa, coleciono hoje caminhadas épicas pela Esplanada dos Ministérios.<br />
<br />
Às vezes me sinto como um cidadão de Oran, daquele livro do Camus, A Peste. A saudade da família e de alguns amigos é imensurável. Em muitos momentos, me flagro pensando neles. Mas vejo uma espécie de muralha no entorno do Distrito Federal. É claro que já pensei em votar para minha cidade. Mas algo aqui me atrai. Não sei se é a mudança dos hábitos. Eu sempre quis ser o que sou hoje. Mas ao mesmo tempo, me sinto preso, privado de tudo que amo. E quase tenho um derrame ao pensar no paradoxo dessa sensação. Eu amo muitas coisas aqui. Brasília me ensinou a encarar a vida como homem, de peito aberto e rosto erguido. E aos poucos colecionei pessoas amadas, que me fazem lembrar frequentemente quem eu sou. Eu sou a contradição encarnada.<br /><br />Eu sei que essa balela de contradição encarnada já encheu o saco. Mas esse sou eu. Em passos vacilantes. Repetitivo. Enchendo o saco.<br /><br />
<br />Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-58844415882292493762012-07-19T14:56:00.002-03:002012-07-19T14:56:11.249-03:00Dois Milagres<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS"; font-size: 10.0pt;">Chovia
muito lá fora.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS"; font-size: 10.0pt;"><br />
- Não sei, cara. Não sei se tenho uma ideia de mulher perfeita. Pra ser
sincero, não ando muito seletivo - teci meu comentário sobre o velho assunto
desgastante.<br />
- A ideia da mulher perfeita nos leva ao amor. O amor pra mim não existe. É um
mito criado no decorrer da evolução humana. É simples assim. Os animais não
amam. Se reproduzem e saem fora pra caçar, sei lá - Ernesto é a frieza em
pessoa, pragmático ao extremo, um cientista do subterrâneo. Jamais se
apaixonou.<br />
- Se uma cabrocha casasse com um pedaço de gelo, teria mais emoção do que
casando com você - Artur replicou enquanto levantava para ir ao banheiro - Vou
mijar.<br />
- Eu só acho que os sentimentos que não são instintivos são superestimados pela
sociedade - Ernesto continuou com a voz mais baixa.<br />
- E o que você diz dos pinguins e sua fidelidade? - desafiei enquanto meu olhar
passeava pela sala em busca do maço de cigarros.<br />
- Isso é uma necessidade devido ao ambiente que eles vivem. Devido ao esforço
da fêmea ao botar um ovo. O macho cuida de tudo porque quer garantir a
continuação da família, instinto que qualquer animal tem.<br />
- Do que vocês estão falando? - Artur voltava do banheiro.<br />
- Fidelidade dos pinguins - respondi enquanto acendia o cigarro.<br />
- Deixe eu terminar - interrompeu Ernesto - E desde quando fidelidade é amor? O
cachorro é fiel ao homem por instinto, a genética dele foi modificada ao passar
do tempo, desde quando o homem começou a domesticar esse animal.<br />
- E por que o amor não pode ser transformado em instinto? - Artur parecia mais
irritado que curioso.<br />
- Pra mim o amor é fruto de uma mente evoluída. O cérebro humano à partir do
momento que pode pensar e criar, pode criar ilusões relacionadas aos instintos.
Temos o dom de complicar as coisas.<br />
- E como você acha que os seres humanos deveriam viver? - era minha vez de
perguntar, ou melhor, provocar.<br />
- Artur, me passe a garrafa de licor, por favor - pediu Ernesto enquanto se
acomodava no sofá.<br />
<br />
O licor era de chocolate, bebida que eu julgava fraca. Mas era um deleite para
Ernesto, que tinha suas peculiaridades. Ernesto despejou uma boa quantidade do
líquido leitoso e escuro em seu copo e continuou:<br />
<br />
- O que eu acho? Se dependesse de mim, todo mundo transaria só pra reprodução e
claro, teríamos que reproduzir muito, engravidando várias mulheres.<br />
- Eu não consigo imaginar o mundo assim. A mulher só seria comida se estivesse
no cio? Não, obrigado. Prefiro a putaria humana mesmo - Artur falava em tom
jocoso, abrindo sua caixa de cigarros.<br />
- E você, Artur? Tem alguma ideia de mulher perfeita? - eu era o maldito
moderador da conversa.<br />
- Eu sou um maldito romântico, tenho que confessar.<br />
- O que isso significa? Está esperando achar uma princesa encantada nos
puteiros que você frequenta? - Ernesto despejou ácido como resposta aos
deboches.<br />
- Você com essa maldita cara de Matt Dylon, sempre com esse sorrisinho tímido
no rosto... não tem muito o que dizer de mim.<br />
- O que tem a minha cara com o Matt Dylon? E o que essa suposta semelhança tem
a ver com o assunto? Estou confuso - Ernesto exibia o sorriso descrito por
Artur.<br />
- Esqueça - pigarreou por alguns segundos e continuou - Minha mulher
ideal tem o corpo e o rosto da Helena Ramos nos tempos áureos.<br />
- Quem diabos é Helena Ramos? - interrompi o diálogo tentando buscar essa
mulher em meu arquivo mental.<br />
- Você não conhece a Helena Ramos? Nunca viu nada sobre Helena Ramos? - Artur
se exaltava impressionado, como se visse um matemático que não soubesse somar.<br />
- Não, nunca ouvi falar. Você já ouvi falar dela, Ernesto? - joguei a peteca
para meu amigo.<br />
- Nunca vi mais gorda - um resquício de licor se alojava ao lado da boca de
Ernesto. Não me manifestei.<br />
- Gorda? Vai se foder, Ernesto! Ela é a musa da pornochanchada! Ela é
maravilhosa! - falando isso, puxou sua carteira do bolso traseiro e puxou um
papel dobrado.<br />
<br />
Artur abriu o papel e exibiu orgulhoso uma foto de Helena Ramos mal impressa
por uma impressora jato de tinta.<br />
<br />
- Você é um maníaco, Artur - Ernesto já não tinha mais o sorrisinho no rosto.
Estava claramente chocado.<br />
- Por Deus, Artur, que porra de foto é essa em sua carteira? Seu pervertido! -
ao dizer isso, estendi meu braço e tentei capturar a foto, mas ele com reflexo
felino escapou do meu bote.<br />
- O que foi? Qual é o problema? - perguntava defendendo a foto, abraçando-a -
Problema seria se fosse um homem, seus linchadores de idosos.<br />
- Você é um garoto punheteiro, apenas isso - respondi com feição perplexa.<br />
<br />
Artur devolveu a foto à carteira e sentou no chão.<br />
<br />
- Ela é ou não é linda?<br />
- É, realmente é maravilhosa. A típica gostosa brasileira.<br />
- Então, essa é a mulher perfeita, falando da parte física, é claro - Artur fez
uma pausa e quando Ernesto ia começar a falar, fez um gesto com a mão direita,
como se pedisse a palavra - Ainda não terminei, Ernesto, seu falastrão. Odeio
que me interrompam, você não faz ideia disso, camarada.<br />
- Fique a vontade e me poupe disso tudo... - Ernesto levantou-se e foi ao
banheiro novamente.<br />
- A minha mulher ideal teria que cantar como a Elis Regina. Teria que cantar os
versos de "Me Deixas Louca". Eu fico embriagado quando ouço a Elis
cantando essa música. Ficaria em estado de ataque se uma mulher cantasse essa
música pra mim.<br />
- Estado de ataque? - Ernesto questionou em voz alta, direto do banheiro.<br />
- Um estado diferente do estado vacilante em que você frequentemente vive.<br />
<br />
Ao terminar sua resposta em voz alta, Artur continuou:<br />
<br />
- O estado do verdadeiro homem primitivo, diante de sua caça. Louco, faminto
pela carne de sua presa. Acho que é isso... Isso que é instinto, Ernesto! Eu,
Artur Gonçalves, louco pelas tenras carnes de um híbrido de Elis Regina e
Helena Ramos. Deus do céu, quem me dera... - literalmente Artur suspirou e
desabou no sofá após tamanho discurso emocionado.<br />
<br />
Eu já havia deixado de ficar chocado há tempos com essas reações e palavreado
démodé do Artur. Ele é um bom rapaz, sempre com lapsos de grandes ambições, que
acabam sufocadas por sua personalidade acanhada. Ele apenas fica a vontade
entre amigos. Diante da sociedade é um ser obscuro e desconfiado.<br />
<br />
- Pois bem, meus amigos, - me ergui do sofá e com um copinho de cerveja à mão e
pedi a atenção para mim - eu preciso contar sobre uma mulher. Ela não é
perfeita, mas se trata de um perfeito equilíbrio. Ela existe, mas é uma
confusão extrema. A intensidade de tesão que sinto por ela é a mesma do
desespero que ela me faz sentir, esse é o equilíbrio.<br />
- Como assim desespero? Ela tem enfiado o dedo no seu anel enquanto trepam? -
Artur perguntou em tom de sarro.<br />
- Não, não... Antes fosse! Daria meu cu pra ver esse desespero sumir. Mas a
merda está feita e como sempre, me envolvo com cadelas desgraçadas, sem
sentimento algum ou então com sentimentos demais.<br />
- Isso é verdade! Eu nunca vi alguém para atrair tantas mulheres vis! - Artur
continuava interagindo.<br />
<br />
Ernesto ficava observando, esfregando o queixo com dois dedos, com aquele
sorriso discreto no canto direito da boca, analisando a história.<br />
<br />
- Enfim, é uma jornalista lá do Sul. De Santa Maria. Rio Grande do Sul. Dos
pampas. Terra de veados. Terra de Getúlio!<br />
- Tá, tá... Sabemos disso tudo. Continue! - Ernesto quebrou seu silêncio.<br />
- Pois bem, eu a comi. Foi uma cilada! Eu juro! - resolvi dar uma pausa para
acender um cigarro. Esses assuntos pedem um bom cigarro.<br />
- Cilada? Como assim, homem? Pare de fazer suspense e seja direto! - Artur
estava ansioso, inquieto.<br />
<br />
Soprei uma boa quantidade de fumaça em direção ao rosto de Artur e o observei
tentar se desvencilhar dos jatos acinzentados.<br />
<br />
- Ela me chamou para sua despedida, um almoço na casa dela, numa sexta-feira.
Eu pensava que seria uma reunião entre amigos dela e não vi problema algum,
afinal, é sempre bom aumentar nossa lista de contatos. Fui na melhor das
intenções, juro! Nunca havíamos tido nada, nem sequer um beijinho, tudo
estritamente profissional. Levei um livro de presente, com dedicatória e tudo
mais. Ao chegar no apartamento dela, apenas o tio gay dela estava lá. O tio é o
dono do apartamento, ela apenas estava hospedada lá.<br />
- O tio quis te comer? Quis participar ao menos? - Ernesto e aquele maldito
sorriso na boca, no canto direito.<br />
- Vou ignorar essas perguntas e continuar a história, seu filho da puta -
respondi apontando a brasa do cigarro para ele - Então, aí a merda começou a
acontecer. Almoçamos nós três e em seguida, o tio se levantou limpando a boca
com o guardanapo e disse: "é isso pessoal, o almoço estava ótimo mas
preciso ir". Eu olhei para ela, e o seu olhar era pura malícia, como se
dissesse por telepatia: "agora você é meu, garotão". Por Deus,
comecei a suar muito, e ao mesmo tempo sentir tesão por ela.<br />
- Era disso que você falava quando se referia à intensidade do tesão ser a
mesma do desespero? - Artur questionou com olhar analítico.<br />
- Não! Calma! Isso é só o princípio da bosta. O roteiro foi seguido
perfeitamente. Nos jogamos na cama dela e fodemos por uma hora seguida. Tive
uma linda performance, é sério. As pernas dela tremiam! Segundo ela, fazia tempo
que ela não fazia nada de sexo. Ela me disse que deixou o marido lá no Sul pra
fazer um trabalho aqui. Vê se pode?<br />
- Casada, devassa... É um raro exemplar que não se deixa passar, hein? São
sigilosas, carentes, loucas na cama.<br />
- Sigilosa? Uma ova! É aí que mora o problema, Ernesto! A vadia vai foder com
meu relacionamento. Ela disse que vai largar o marido e me caçar aqui <st1:personname productid="em São Paulo. Ela" w:st="on">em São Paulo. Ela</st1:personname> é
louca!<br />
- Mas você não está em crise no namoro com a Elisa? Você disse que já
terminaram várias vezes, por que o desespero? Talvez seja disso que você
precise para terminar de vez.<br />
- Ernesto, você é louco, só pode ser! Eu não termino de vez porque amo a Elisa,
porra. Tô tentando fazer dar certo.<br />
- Ama tanto que se esbaldou na vulva da chinoca gaúcha, não foi? - Artur e seu
linguajar inadequado.<br />
- Artur, quem é você pra questionar meu amor? Aliás, vão tomar no meio dos seus
cus! Não tô pedindo conselho sentimental, não estou numa maldita terapia ou
estou?<br />
- Só constatei o óbvio - Artur agora falava baixo, em tom de escusa.<br />
- Olha só, ela disse que vai causar escândalo, vai arrombar a porta do meu
apartamento, que vai perturbar minha namorada. Vai falar tudo. Ela é louca!<br />
<br />
Eu realmente me vi desesperado, e isso já havia acontecido em relação ao
ocorrido. Mas diante dos meus amigos, o medo foi potencializado. Talvez porque
tenha me mostrado frágil demais diante deles, não sei. Mas eu estava apavorado,
ansioso, com dormência bem leve nas pontas dos dedos. Era terrível.<br />
<br />
- Meu amigo, você está em maus lençóis.<br />
- Artur, você não ajuda muito falando isso - Ernesto interrompeu.<br />
- Me desculpe, foi apenas um comentário - novamente em voz baixa, Artur se
constrangeu<br />
<br />
Ficamos pensativos, como se estivéssemos tendo alucinações, observando seres
encantados voando pelo ar.<br />
<br />
Que tal abrirmos um scotch? Bebericar até ficar de pileque é sempre uma boa
saída. Temporária, eu sei, mas é - propôs Artur.<br />
- Só tenho Jack Daniels aqui, nada de scotch.<br />
- Vou lá no mercado comprar, você merece, meu camarada - Artur se levantou e
tomou o rumo da porta.<br />
- Vamos tomar o Jack mesmo!<br />
- Odeio Jack Daniels - dizendo isso, fechou a porta.<br />
<br />
Ernesto e eu trocamos olhares por alguns segundos, ambos perplexos, e logo em
seguida, dirigimos nossos olhos para o chão.<br />
<br />
- E o que pensa em fazer, Nelson?<br />
- Eu não sei, eu não sei. Tenho o quê fazer? Não imagino uma saída.<br />
- Sei lá. Polícia, denúncia, fuga no meio da noite, terminar o namoro e segurar
o rojão... - Ernesto balbuciava algumas soluções enquanto tinha o olhar fixo
para seu copo vazio, com alguns resquícios de licor.<br />
- Não, não. Nada disso...<br />
- Por que não mata a vagabunda?<br />
<br />
Dei uma risada e continuei com olhar fixo para a lâmpada acesa.<br />
<br />
- Vai pirar igual o Maulin? Que enlouqueceu e achava que era uma mariposa?
Ficava olhando para a luz, sem poder se mexer, lembra?<br />
- Lembro sim, pobre diabo.<br />
- Ao menos se livrou da Agnes, aquela pedra no sapato. Tá vendo? A morte às
vezes é a solução.<br />
- Ernesto, pela alma dos santos martirizados, pare de falar <st1:personname productid="em assassinato. Me" w:st="on">em assassinato. Me</st1:personname> desculpe,
mas tenho dignidade.<br />
- Dignidade, quem disse que isso é algo? Você tem que viver os instintos! Você
tem que se preservar! Ela vai foder sua vida, Nelson! ACORDA! - num salto
repentino, Ernesto gritou e logo foi ao banheiro.<br />
- Por que você não caga no chão e mija em postes? Vá se foder com essa sua
ausência de espírito, com todos os instintos animais! Daqui a pouco você estará
numa selva, liderando um bando de macacos - gritei olhando para trás, para a
direção do banheiro.<br />
- Bem, na verdade quem vai se foder é você!<br />
- Vá pro inferno, seu... Tarzan!<br />
<br />
Levantei do sofá e peguei três copos de uísque e os coloquei na mesa de centro.
Liguei o som e deixei Tom Zé tocando. O bom, velho e louco Tom Zé, não se fazem
mais gênios como ele. Deitei no sofá, com as mãos atrás da nuca e vi um filme,
projetado no teto da sala, de um possível homicídio cometido por mim, contra a
vaca da Cecile. Senti uma pequena vertigem, um curto enjoo. Meu coração pulou e
bateu intenso, enlouquecido. E de repente, voltou ao normal. Eu odeio ficar
ansioso, como odeio.<br />
<br />
- Pára de enlouquecer, veado - Ernesto deu um chute leve na minha costela.<br />
- Me deixe em paz, rei da floresta...<br />
- Não fique assim. Ela vai chegar <st1:personname productid="em Santa Maria" w:st="on">em Santa Maria</st1:personname> e vai
reconsiderar, vai te esquecer. Aliás, você devia se desesperar somente quando
ela ligar e avisar que tem voo comprado pra São Paulo, não acha?<br />
- Faz sentido. Mas eu não consigo parar de pensar nisso. Ela me manda
mensagens, ela é louca! Quando esqueço, por alguns minutos, ela me manda uma
mensagem de texto. Filha de uma puta...<br />
- Ela já foi embora?<br />
- Não, vai embora amanhã, no meio da tarde, eu acho.<br />
- Então vá lá conversar com ela! Vá no aeroporto, converse numa boa, faça um
apelo sem mostrar desespero. Seja convincente!<br />
- É uma boa ideia. Embora eu tenha quase certeza de que nada vai fazê-la mudar
de ideia. Mas é válido.<br />
<br />
Levantei do sofá e peguei meu celular. Liguei para a vagabunda.<br />
<br />
- Alô, Cecile?<br />
- Oi meu AMOR! Como está? Está com saudades? - a voz dela era puro entusiasmo.<br />
- Hummm, tudo bem por aqui... E você?<br />
- Sim! Está com saudades ou não?<br />
- É.<br />
- É?<br />
- É isso - eu queria que o Ernesto não estivesse ali. Era o Nelson medroso e
frouxo que falava ao telefone, não o Nelson corajoso, que enfrenta os desafios
aos trancos e barrancos.<br />
- Não estou sentindo muita firmeza nisso! É igual responder a um "eu te
amo" com "obrigado"!<br />
- Sim, estou.<br />
- Melhor assim! Olha só, avisei ao meu marido que quero conversar sério com
ele. Sou determinada, QUANDO QUERO, EU CONSIGO! - e riu malevolamente, uma
maldita serpente diabólica.<br />
- Deus de amor... Você está certa disso? - eu suava <st1:personname productid="em bicas.- Sim" w:st="on">em bicas.<br />
- Sim</st1:personname>! ESTOU CERTA! - gritava como se estivesse reclamando
num atendimento de um serviço qualquer.<br />
<br />
Cada palavra dela de determinação fazia meu cu piscar de medo.<br />
<br />
- E se eu não quiser, Cecile? Como você acha que pode obrigar alguém a gostar
de você? Como pode tentar obrigar alguém a te amar? Não acredito que tenho que
falar sobre isso com uma mulher adulta, esposa e mãe de filhos... - passei a
palma da mão na testa, em sinal de desespero.<br />
- VOCÊ VAI ME AMAR! VOCÊ VAI QUERER ME AMAR, VAI BEIJAR MINHA BUNDA!<br />
<br />
Senti algo molhar a parte traseira da minha cueca. Literalmente me caguei. O
frio na barriga era intenso.<br />
<br />
- Misericórdia... Bem, vamos nos encontrar no aeroporto? O que acha? Amanhã,
para me despedir de você. Peço uma folga na parte da tarde. Meu banco de horas
está imenso mesmo...<br />
- QUE MARAVILHA! Está combinado! Me encontre às duas e meia, ali perto do
check-in da TAM. Congonhas, hein?<br />
- Tá certo, tá certo. Duas e meia, check-in da TAM em Congonhas.<br />
- Ótimo, meu AMOR! Nos vemos lá! Beijos, lindo!<br />
- Beijos, Cecile.<br />
- TE AMO.<br />
<br />
Pensei em responder "obrigado", mas eu queria ser diplomático. Queria
minha paz de volta.<br />
<br />
- Beijos, querida.<br />
- NÃO VAI RESPONDER AO MEU "EU TE AMO"?<br />
- Deus do céu, Cecile, você ainda não me ama.<br />
- EU-TE-AMO, Nelson! - eu tinha dó das pessoas ao lado dela, onde quer que ela
estivesse.<br />
- Que seja, amanhã nos vemos.<br />
<br />
Desliguei o telefone. Antes que ela me aprisionasse via telefone. Olhei
constrangido para Ernesto.<br />
<br />
- Que grande merda, Nelson. Vamos pensar em algo, cara. Você vai ter que ser
persuasivo amanhã. Caso não dê certo, diga que gosta de homens, ou tem fantasia
por sexo com animais, que sonha em casar com uma chipanzé ou um pinguim.<br />
- Já chega, Ernesto. Amanhã será amanhã. Vou trocar minha cueca pois acho que
me borrei aqui - saí andando lentamente, com as pernas abertas.<br />
- Eu não acredito nisso! Está cagando de medo de uma mulher! - Ernesto chorava
de rir, deitado no chão.<br />
<br />
Ignorei as gargalhadas e me troquei. Havia uma linda freada de caminhão lá
atrás. Aproveitei pra cagar o material que estava me importunando. Depois
caminhei até a geladeira e percebi que havia apenas uma lata de cerveja. Peguei
o celular e liguei para Artur, mas enquanto o celular chamava, ele bateu à
porta. Atendi.<br />
<br />
- Queridos, bebamos e morramos - Artur chegou com uma garrafa de Red Label e
uma caixa de cervejas.<br />
- Caralho, que maravilha! A cerveja estava acabando eu até te liguei, mas você
estava aqui no corredor...<br />
- Eu havia bisbilhotado a geladeira e notei a ausência do líquido dourado.<br />
- Valeu cara, eu pago pelas cervejas.<br />
- Cortesia minha, meu amado companheiro, cortesia minha.<br />
<br />
Agradeci a cortesia e abri uma lata. Joguei uma para Ernesto e novamente
estávamos sentados, gozando de um pouco de silêncio. Artur chegou.<br />
<br />
<br />
- Bebamos e morramos! - ergueu seu copo de uísque sem gelo, apenas dois terços
de água e um de uísque.<br />
- Você só sabe falar isso? - Ernesto se indignou.<br />
- Ficou valente com seu licor? Perdeu o juízo, meu irmão?<br />
- Vou te mostrar o seu irmão...<br />
<br />
Quando Ernesto ensaiou se levantar, eu coloquei minhas mãos em seu ombros e o
mandei ficar sentado. Artur já estava em pé, ensaiando algum gingado precário
de boxe.<br />
<br />
- E chega por hoje, Artur. Parecem duas bichas.<br />
- Foi ele quem começou - Artur apontava para Ernesto com feição de criança
ofendida.<br />
<br />
Bebemos muito. Bebemos a garrafa toda. Bebemos todas as latas. E eu não via
mais nada, apenas sentia a embriaguez, a leveza das pernas, a facilidade na
fala. A facilidade em antipatizar com as pessoas quando estou bêbado. E como é
de praxe, expulsei as visitas do meu apartamento. Me lancei contra meus dois
amigos, com violência e os puxei pelas camisetas. Abri a porta com uma faca grande
e afiada nas mãos.<br />
<br />
- Pra fora! As duas maricas pra fora! - vociferei golpeando o ar com a faca.
Golpes diagonais.<br />
- Pare com isso, já estou me retirando! - Artur estava trêmulo como sempre. Uma
menina diante do perigo.<br />
- Você me paga, Nelson. Você me paga, ouviu? - Ernesto era corajoso, frio, mas
temia levar facadas a toa.<br />
- Saiam daqui, seus covardes! Saiam daqui! - eu gritava no corredor do meu
andar. Os vizinhos estavam acostumados a ouvir as minhas baixarias. Eu sempre
expulsei amigos ou amigas, independente do horário.<br />
<br />
No outro dia acordei com ressaca forte. A mistura de cervejas e uísques nunca
davam certo em meu corpo. Acordei ainda tonto, me arrastei pelado até o
banheiro e deitei no chão do box. Espichei meu braço direito e por alguns
milímetros, não alcancei a torneira do chuveiro. Me ergui lentamente e
consegui. A água caía gelada, o que me fez levantar de supetão. Regulei a água,
pacientemente, sentindo náuseas. A água enfim estava morna e consegui deitar
novamente. Por fim, senti um espasmo no esôfago e virei o rosto para a
esquerda. Vomitei muito. Vômito marrom, acompanhado por amendoins mal
mastigados e uns pedaços de folhas escurecidas. Quando senti que a coisa ficou
séria, me ajoelhei e continuei a vomitar. Magnífico.<br />
<br />
- Cristo amado, que maravilha - balbuciei dando um pequeno sorriso.<br />
<br />
Vomitar impurezas faz bem. A ressaca perde suas rédeas e nos desvencilhamos de
sua tortura. Levantei confiante e com oitenta por cento a menos de dor de
cabeça. Vomitar é um milagre. Saí revigorado do banho e me troquei rapidamente.
Corri até o ônibus e fui até o metrô, sim, o mesmo maldito caminho de todos os
dias. Peguei o trem na Barra Funda e confesso que ainda senti um calafrio. Ser
linchado num trem é algo indescritível. Apenas sinto as dores dos socos e
ponta-pés que tomei naquele dia. Já cruzei com alguns dos idiotas que me
espancaram e eles ao me reconhecerem, desviam o olhar, num constrangimento para
os dois lados. Lembro de poucos rostos, mas infelizmente eles voltam para casa
no mesmo trem que eu e eles simplesmente aparecem no meu caminho. A vida segue,
como se nada tivesse acontecido, assim é o mundo. Cheguei em meu trabalho e
falei com meu chefe imediato. Falei que tinha uma pendência urgente para
resolver e precisaria da tarde. Pra variar, ele contestou, disse que a situação
era crítica na empresa e que ele precisaria de mim. Eu repliquei que não
conseguiria trabalhar, que eu estava com horas e mais horas no banco de horas e
que aquilo era meu direito. Depois de uma leve discussão, consegui a folga.
Fiquei chateado porque sabia que ele iria me perturbar a vida nos dias
seguintes, me sobrecarregando de trabalho, graças a essa folga, graças a
maldita Cecile. Mas tinha que ser assim, sempre foi assim. Trabalhei até o
horário do almoço e saí correndo. Fui até a avenida Paulista e peguei um ônibus
azul, Aeroporto. Cheguei às duas e quinze e resolvi comer algo mas ao ver os
preços, mudei de ideia. Comprei uma cerveja, muito cara por sinal, mas eu
precisava da cerveja, ao menos isso. Cheguei no check-in da TAM às duas e vinte
e seis e ela já estava lá. Quando ela me avistou, abriu os braços e correu em
minha direção, como se eu fosse uma zebra e ela uma leoa faminta:<br />
<br />
- MEU AMOR! - ela gritou, gritou bem alto, as pessoas paravam para olhar.<br />
- Oi Cecile, tudo bem? - respondi segundos antes de ser esmagado por um abraço
bem efusivo. Ganhei alguns beijos na boca.<br />
- Você é pontual! Espero que meu avião não seja! QUERIA FICAR COM VOCÊ POR MAIS
HORAS!<br />
<br />
Senti um tremor no joelho. Minha barriga começou a gelar, lembrei que me borrei
no dia anterior e constatei que dessa vez iria me cagar todo.<br />
<br />
- É... Vamos nos sentar? Precisamos conversar.<br />
- Claro, MEU AMOR!<br />
- Você pode parar de gritar, Cecile? Deus eterno...<br />
- Vamos nos sentar! ESTOU ANSIOSA POR SUAS PALAVRAS!<br />
<br />
Um peido forçou sua saída, mas eu o prendi com maestria. Andei lentamente para
não soltá-lo bruscamente. Sentamos em frente a um quiosque de café, perto da
escada rolante que leva ao embarque. Fui ao caixa e pedi dois cafés. Levei-os à
mesa e sentei, sem encostar as costas no encosto da cadeira. Eu escondia meu
olhar do olhar dela, mas os olhos dela brilhavam como os de uma criança em
manhã de natal.<br />
<br />
- Pois bem, Cecile...<br />
- ESTOU TÃO FELIZ POR VOCÊ TER VINDO SE DESPEDIR DE MIM! É MUITO AMOR! - fui
interrompido.<br />
- Cecile, é o seguinte...<br />
- DIGA, MEU AMORZINHO! - interrompido novamente.<br />
- Tá certo - fiz uma pausa para respirar e olhei para a espuma do
café - Vamos lá, nós não podemos continuar com isso. Eu namoro, você é
casada e tem dois filhos! Não podemos levar isso adiante! Não mesmo!<br />
- VOCÊ ESTÁ ME DISPENSANDO? É ISSO, AMOR?<br />
- Por que você faz as coisas se tornarem mais difíceis?<br />
- Se você me dispensar, vou transformar sua vida num inferno! Você já tentou me
dispensar lá na casa do meu tio! E voltou atrás dessa ideia idiota, não foi! E
agora quer me dispensar de novo? EU FIZ TUDO POR VOCÊ! VOU LARGAR MEU MARIDO
POR VOCÊ!<br />
- Shhhhhhh! - pedi silêncio a ela, com olhar constrangido, direcionado às
pessoas que estavam nos observando - Silêncio! Não grite! Ninguém precisa saber
dos nossos problemas! - sussurrei como se quisesse gritar com ela.<br />
- VOCÊ SÓ QUERIA SEXO, NÃO? SÓ QUERIA ME COMER!<br />
- Pare de gritar, por Deus, pare! - mais sussurros.<br />
- Pois bem, senhor Nelson. Você vai ter o que merece! Aguarde por notícias
minhas... - de repente ela se conteve e falou me olhando soturnamente.<br />
- Eu só quero resolver essa situação numa boa, sem estresse pra você. Me ajude
nisso! - meu desespero podia ser tocado.<br />
- Vou fumar ali fora. Não me siga! VOCÊ TERÁ NOTÍCIAS MINHAS! - e saiu com
aquele bundão enorme, rebolando e com passos fortes, fazendo os saltos altos
estalarem no chão.<br />
<br />
Pensei seriamente em correr para o banheiro e cagar todo meu medo e apreensão.
Ensaiei levantar e segui-la, fazê-la desistir da ambição louca dela, mas fiquei
sentado, seria mais escândalo e provavelmente ela iria partir pra cima de mim.
Pensei que se tomasse café, ficaria ainda mais agitado. Mandei meus pensamentos
para o inferno e tomei o meu café. As pessoas me olhavam com piedade, sabiam
dos meus problemas, mas ninguém queria resolve-los. Maldita humanidade. Fiquei
ali por um tempo, e ela não saía da parte de fora. Fui verificar e ela estava
se acabando nos cigarros. Olhei no painel de voos e percebi que o voo dela saía
em uma hora, mais ou menos. Cinco minutos depois, ela passou como um raio por
mim. Senti vapores quentes saindo de suas ventas, como se Satanás, numa versão
rabuda, passasse por mim rumo ao submundo. Senti um calafrio e também senti o
perfume dela, maldito perfume. Não lembrava o nome, mas era o mesmo de uma
antiga namoradinha. Lá se foi a boa lembrança que eu tinha com essa fragrância.<br />
<br />
A última visão que tive dela foi na entrada da área de embarque. Eu a segui
sorrateiramente, como um detetive aposentado. Passou sua bagagem de mão no
detector de metal, cumprimentou a todos os funcionários da Infraero e sumiu de
minha vista. Fiquei observando, paralisado, todo o tráfego intenso de pessoas
naquela tarde de sexta-feira. Pra variar, um caos no aeroporto, muitas
reclamações, da maior variedade. E eu no meio daquele fuzuê, paralisado. Sentei
numa cadeira e fiquei ali, olhando para o painel. Apenas olhava, não prestava
atenção <st1:personname productid="em nada. Assim" w:st="on">em nada. Assim</st1:personname> fiquei
por uma hora, pensando no que seria da minha vida a partir daquela tarde. Já
imaginava ligações enlouquecidas para a pobre da minha Elisa. E falando nela,
recebi uma ligação dela. Obviamente ignorei a chamada. Não dava pra atendê-la.
Ela iria me perguntar onde eu estava, fazendo o quê, por quê e além do mais,
ela ouviria o barulho do auto-falante do aeroporto e ficaria ensandecida
querendo saber o que eu estava fazendo no aeroporto. De vez em quando, eu
pensava em terminar com ela. Seria mais fácil. Ela se tornara um monstro que só
cuspia reclamações e pragas. Mas eu a amava. Como a amava. Ficar naquela
situação de brigas e discussões acabava comigo. Queria paz com ela, tudo o que
mais queria era paz com a Elisa.<br />
<br />
Fiquei ali na espreita, numa tocaia sem sentido (já que a Cecile não sairia
mais dali), ao lado da entrada da área de embarque, e lá de dentro ouvi o
auto-falante:<br />
<br />
- ATENÇÃO CLIENTES DA TAM , DO VOO 3045 QUE VAI PARA PORTO ALEGRE, FAVOR
SE DIRIGIR PARA O PORTÃO DE EMBARQUE DE NÚMERO 8, ONDE SERÁ FEITO O
PROCEDIMENTO DE EMBARQUE.<br />
<br />
Fiquei em pé enquanto meu coração explodia. Fui fumar alguns cigarros com outra
cerveja que comprei. As pessoas percebiam minha inquietação, meus passos eram
rápidos e sem direção. Eu queria que uma solução caísse do céu, mas como
sempre, nada cai do céu. Sou cético demais para acreditar num milagre.
Realmente eu estava fodido e ponto. Uma senhora quis puxar assunto comigo, mas
eu a ignorei virando as costas. Ouvi algo parecido com "rapaz
insolente". Ignorei o insulto. De repente parei e pensei: "o quê
diabos estou fazendo aqui?". E realmente era inútil! Eu não sei o que me
prendia ali. Olhei para o painel de voos e havia a notificação de que o
embarque estava encerrado para Porto Alegre. "Deus do céu, leve essa
mulher para longe e que ela nunca mais volte", pedi desesperado, em
pensamento.<br />
<br />
A tarde estava ensolarada, diferente do dia anterior, porém o tempo virou
novamente. Muito comum <st1:personname productid="em São Paulo. O" w:st="on">em
São Paulo. O</st1:personname> céu escuro trovejava e espirrava suas
primeiras gotas de chuva. Praguejei por isso, pois como toda pessoa normal, não
costumo andar com guarda-chuva em dias de tempo aberto. Fui para fora e fiquei
em uma parte coberta, onde outros desesperados fumavam intensamente, olhando
para o nada. Uma cortina de fumaça cobria nossas cabeças. Era o último cigarro.
Praguejei novamente. Peguei o isqueiro e nada do fogo acender. Tentava e apenas
faíscas saíam. Praguejei mais um pouco. Tentei mais uma vez e quando o fogo
apareceu, ouvi um estrondo enorme, jamais ouvido ou imaginado em minha vida.
Foi terrível, como se o aeroporto tivesse desabado. Vi um clarão gigantesco à
minha esquerda, saindo da avenida Washington Luís. As pessoas pularam para fora
da parte coberta e se dividiram: uns corriam para dentro do aeroporto, outros
corriam para a direção da avenida, curiosos para saberem o que havia causado
tamanho clarão. Eu continuei fumando e erguendo a cabeça, procurando saber, ali
de onde eu estava, o que poderia ter acontecido.<br />
<br />
- Acho que um prédio desabou! - uma voz feminina gritou.<br />
- Vamos lá ver! Vamos! - um grupo de três pessoas correram, parecendo cavalos
selvagens galopando.<br />
- Acho que foi um avião, cara! Acho que foi um avião! - um homem com os óculos
tortos, afogado em terror gritava.<br />
<br />
E quando o pobre diabo gritava que era um avião, as possibilidades se ligaram
em minha cabeça.<br />
<br />
- Qual avião? Qual voo?! - perguntei ao homem enlouquecido.<br />
- Não sei! Não sei!<br />
- Foi um da TAM! Foi um da TAM! - um outrohomem apareceu, esverdeado pelo
pavor, saltitando como se fosse um mensageiro de guerra.<br />
- Alguém me diga qual foi o voo! PELO AMOR DE DEUS! - clamei aos céus, às
pessoas, ao mundo.<br />
<br />
Passaram minutos, poucos minutos que pareciam uma eternidade. Eu corria sem
rumo junto com outros loucos sem rumo, na área onde eu fumava. Era um caos,
parecia com filmes de cinema. Eu me sentia ridículo, totalmente ridículo. Eu
queria saber se Cecile estava no voo, meu desespero era maldoso, horrível.
Pessoas torcendo para que um ente querido não estivesse no avião e eu torcendo
para que uma pessoa específica estivesse lá. Eu era o diabo em meio a anjos
voando desorientados.<br />
<br />
- Meu Deus! FOI O DE PORTO ALEGRE! FOI O VOO DE PORTO ALEGRE! MEU DEUS! - um
homem horrorizado, desfigurado pelo terror, pela maldita revelação da tragédia.
A tragédia havia batido à porta. Sim, aquela tragédia que ninguém espera
acontecer jamais.<br />
<br />
Quando eu ouvi 'PORTO ALEGRE', ajoelhei no chão e agradeci a Deus, gritando:<br />
<br />
- OBRIGADO SENHOR! MILAGRES ACONTECEM! DEUS SEJA LOUVADO!<br />
<br />
Na mesma hora o corre-corre fez um pausa e as pessoas se aproximaram
lentamente. Todos transtornados, com cara de descrença e revolta. Olhei à minha
volta e que Deus me ajude, era muita gente.<br />
<br />
- MINHA FILHA ESTÁ NESSE VOO! - uma mulher gritou <st1:personname productid="em prantos.- VOCÊ NÃO" w:st="on">em prantos.<br />
- VOCÊ NÃO</st1:personname> TEM ALMA! TENHO NOJO DE VOCÊ, FILHO DA PUTA!
- uma moça bonita, com seios grandes que balançavam enquanto ela gritava,
apontava o dedo para mim.<br />
- COMEMORANDO A QUEDA DE UM AVIÃO? VOCÊ É LOUCO? - um homem bem apessoado, de
terno chegou em fúria, fazendo o sinal de loucura com o dedo girando ao lado da
cabeça.<br />
- Calma, minha gente, uma mulher maldosa ia estragar minha vida e ela
estava naquele voo... - comecei a ter a sensação de morte, sim, a morte
acariciava meu ombro novamente, como no trem - e ela estava naquele voo e...<br />
<br />
Eu sei que não fazia sentido eu me explicar. Piorou tudo. Tudo mesmo. E quando
eu olhei para os céus em busca de mais um milagre, descobri que dois milagres
não caem do céu num mesmo dia. Um jovem de vinte e poucos anos, no auge de sua
saúde, correu como aquele jogador da seleção de 94, o Branco, corria para bater
uma falta. E o chute não deixou a desejar: pegou bem embaixo de minha axila
direita. Senti alguns ossos tremerem intensamente. Dei um grito fino.<br />
<br />
Daí pra frente, fugi em pensamento para um lugar lindo, onde minha querida
Elisa não brigava comigo, apenas me amava e me desejava loucamente. É sério,
estávamos há três meses sem sexo. Eu não acreditava naquilo.<br />
<br />
Em seguida, senti uma solada na minha nuca. Que pisada incrível! Isso fez eu
cair de cara no chão. Eu ainda ouvi a minha testa estalar no chão. Foi de uma
violência incomparável. Eu já podia ser mártir cristão na Nigéria. Já tinha
know-how suficiente pra apanhar por alguma causa nobre. Alguém pegou meu braço
e o torceu para trás, malditos filhos das putas, era muito ódio, era muita dor.
Por que as pessoas descontavam sua tristeza com ódio? Não poderiam amar mais?
Poderiam me entender, onde estava a era de aquário? A era da compreensão e do
entendimento? Onde estava a evolução humana?<br />
<br />
- Vem cá, seu desgraçado! - era uma mulher sem os saltos, puxando meu cabelo e
erguendo meu rosto.<br />
<br />
Os tapas dela não doeram. E acho que ela percebeu que não tinha muita
força e acabou pegando seu cigarro e queimando minha fronte. Isso doeu muito.
Meu corpo era uma espécie de Judas da TAM para ser malhado em praça pública.
Eles sabiam que teriam que processar a TAM, aparecer na TV emocionados, eu os
entendia. Mas eles poderiam me compreender.<br />
<br />
Por fim, eu apaguei, um pouco depois da queimada com o cigarro. A polícia não
apareceu, ninguém, nenhuma autoridade. Nenhuma boa alma. Todas as autoridades
estavam concentradas na explosão do avião. Maldito avião, maldito piloto
estúpido. Provavelmente ele não conseguiu levantar voo e acabou caindo em plena
avenida, se chocando contra algum prédio ao lado do aeroporto. E os amigos,
parentes que presenciaram a minha presepada, cansaram de me bater. Engraçado
como as pessoas cansam de espancar os outros. É como se fosse um exercício
físico qualquer. Uma hora cansa.<br />
<br />
<!--[if !supportLineBreakNewLine]--><br />
<!--[endif]--><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Trebuchet MS"; font-size: 10.0pt;">Acordei
em uma sala de hospital, totalmente imóvel, sem mexer nada. Mexer as
sobrancelhas doía. Era terrível. E para meu desespero, a porta foi aberta
bruscamente. Era Elisa e sua mãe entrando na sala. O amor da minha vida -
pensei - com um buquê de flores na mão. Minha sogra não tão querida, vindo para
desejar melhoras, uma boa recuperação. Cecile carbonizada dentro de um avião,
Elisa sensibilizada pelo meu infortúnio, mais carinhosa do que nunca. Elisa
começou a chorar, o que me fez pensar que ela estava emocionada por me ver
daquele jeito, todo sofrido. Fiquei emocionado também, esboçando um sorriso
discreto. Mas não era choro de tristeza, era de ódio.<br />
<br />
- EU FIQUEI SABENDO DE TUDO, SEU FILHO DE UMA PUTA! – dizendo isso, começou a
me surrar com o buquê de flores. Que buquê pesado, meu Deus do céu.<br />
<br />
Eu não conseguia falar direito, apenas emitia sons incompreensíveis, bizarros.
Eu grasnava como um grande e fodido pássaro desesperado. A mãe dela finalmente
conseguiu contê-la, para meu alívio. E quando tudo parecia ter terminado, dona
Ana bateu com o buquê na minha cara. Senti um espinho da rosa furar minha
testa. Comecei a me balançar e fazer mais sons, até que a enfermeira chegou e
afastou as duas loucas.<br />
<br />
- EU SOUBE! A VADIA, A CECILE, AQUELA PUTA ME LIGOU HOJE! SEU FILHO DA PUTA! –
Elisa rosnava e babava com ódio mortal, só faltou latir.<br />
<br />
Meu desespero era aparente e doloroso. Doía mesmo, porque eu fazia expressões
de dúvida, de desespero e isso doía muito.<br />
<br />
- Como diabos a Cecile ligou para a Elisa? A Cecile está morta! Meu Deus, será
que tive um derrame? Será que enlouqueci? - pensei atordoado, desesperado.<br />
<br />
A enfermeira veio me acalmar e limpar meu corpo e a cama que ficaram cheios de
pétalas e folhas. Cuidou do corte causado pelo espinho em minha testa. Mas nada
disso me acalmou. Eu estava inquieto, afobado, querendo falar, gritar. Só saiam
sons bizarros de minha pobre boca espancada. Eu já havia percebido a falta de
alguns dentes. De repente ouvi a voz de um dos companheiros de quarto.<br />
<br />
- Enfermeira, ligue a televisão, pela cruz do Senhor, tenha compaixão -
era um velho preto, parecia uma uva passa gigante, deitado, como se nada mais
no mundo pudesse o tirar de lá.<br />
<br />
A enfermeira disse que deixaria ligada apenas por meia hora. Era noite e um
jornal dava algumas notícias. Fiquei atento esperando saber de algo. O corte do
espinho na testa estava doendo.<br />
<br />
- FAMILIARES DAS VÍTIMAS DO VOO JJ 3054 DA TAM AINDA NÃO SE MANIFESTARAM SOBRE
OS PROCESSOS QUE SERÃO MOVIDOS CONTRA A COMPANHIA AÉREA. O ACIDENTE OCORREU NA
ÚLTIMA TERÇA-FEIRA, QUANDO UM AVIÃO VINDO DO AEROPORTO SALGADO FILHO <st1:personname productid="EM PORTO ALEGRE NÃO" w:st="on">EM PORTO ALEGRE NÃO</st1:personname> CONSEGUIU
DESACELERAR NO PERCURSO DE POUSO E SE CHOCOU CONTRA UM DEPÓSITO DE CARGAS DA
PRÓPRIA COMPANHIA - noticiou o âncora do jornal televisivo.<br />
<br />
- O QUE? NÃO ESTAVA INDO PRA PORTO ALEGRE? ESTAVA VINDO DE PORTO ALEGRE?<br />
<br />
Tentei me mexer, buscando algo para tentar um suicídio. Mas a ideia passou
logo. Me conformei imóvel em minha cama de hospital. Tudo estava liquidado.
Perdi meu relacionamento. A vadia da Cecile havia cumprido sua promessa e agora
viria para São Paulo atrás de mim, maldita seja essa gaúcha. Naquela noite de
tragédia, constatei que um segundo milagre não cai do céu num mesmo dia. Na
verdade o segundo vem depois do primeiro. E no meu caso, nem o primeiro veio.
Pensando melhor, veio sim, sobrevivi novamente. Pensando melhor, já são
dois milagres. <o:p></o:p></span></div>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-89223983661444671212012-06-21T11:53:00.000-03:002012-06-21T11:53:50.862-03:00Entre Estações e TrilhosO destino me disse um nome, eu anotei<br />
Ele não me disse o lugar, mas para algum lugar eu fui<br />
No trem de minhas expectativas<br />
E ao me deparar com o lugar, me apaixonei<br />
O nome era aquele mesmo, mas a estação estava errada<br />
<br />
No trilhos da insistência e da teimosia<br />
Descarrilhei<br />
Sem nome da estação de destino, vaguei<br />
Vaguei<br />
<br />
E aquele nome novamente me apareceu<br />
Em uma placa simples, esquecida e empoeirada<br />
Vítima do tempo que tudo corrói<br />
Sofrida pelos que a ignoraram<br />
<br />
Era o mesmo nome e estranhei<br />
<br />
Existem duas estações com mesmo nome?<br />
Quando se trata de distância, sim<br />
Desembarquei<br />
Existirá amor numa estação de trem?<br />
Quando se trata de amor, sim<br />
Me acomodei<br />
Já existiram encontros marcados entre ferrovias?<br />
Quando se trata de destino, certamente<br />
Me entregueiFelipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-83234150958672724152010-12-19T00:59:00.003-02:002013-04-03T22:09:15.813-03:00DesalmadoEu acho que eram as contas, às vezes penso que era o meu momento conturbado com a Elisa. Enfim, eu andava nervoso naquela época e tudo me irritava. Eu era um animal acuado e inseguro. A falta de dinheiro e de amor me deixam extremamente assombrado e toda essa ausência de elementos de conforto me fazem ouvir jazz melancólico. Eu geralmente me fecho num mundo de tom esverdeado como lodo, como um pântano, um brejo amaldiçoado. Me alimento de sombras e fugas, de tristeza auto-induzida, de lágrimas saborosas. Quem não gosta de sofrer quieto num canto, curtir a sarjeta e se rastejar nos espinhos de uma depressão? O homem precisa disso, todos precisam. Mas santo Deus, estou me perdendo com toda essa divagação.<br />
<br />
Eu lembro que eu ouvia Charlie Parker no meu iPod, tentando acalmar todo o turbilhão de pensamentos violentos que apareciam em série na minha mente. Eu andava tão preocupado e carente que existiam duas linhas de pensamentos: as violentas e as indecentes. Ou eu estava com raiva de algum cidadão sofrido que trafegava à minha frente tentando um lugar na lotada escada rolante da plataforma do trem que ia para a Julio Prestes, na Barra Funda ou estava babando em algum rabo. Seria melhor dizer ‘qualquer’ rabo. Eu me flagrava falando em voz baixa: preciso de uma boceta. Eu me envergonhava disso. Eu me auto-julgava, eu me auto-condenava e eu me auto-castigava. E toda aquela situação começava a me irritar porque eu - logo eu - um cara tão simpático e popular, estava impaciente para conversas junto às pessoas mais próximas. Eu não tinha saco para pequenos papos, estava cansado da humanidade. Olhar todos trafegando, entrando no trabalho, sabendo que fariam a mesma coisa de sempre, com o olhar conformado ou o sorriso de pobre estúpido, com todos os diabos, como isso me cansava.<br />
<br />
Caminhei até a frente do meu trabalho e finalizei o meu cigarro. Meu pulmão estava pedindo arrego e eu, teimoso que sou, continuei a fumar, no pior clima seco e calorento que a cidade nos oferecia. Eu precisava daquela merda de vício. Puxei me crachá e me identifiquei no portão. Abaixei minha cabeça como um bom operário dos anos 20 faria, e me arrastei pelas estreitas ruas da empresa. Avistei a porta do meu setor e suspirei. <br />
<br />
- Mais um dia, puta que pariu... – deixei escapar um breve murmúrio. <br />
- É, mais um dia, amigão! – era Lopes, um paspalho pelego que sempre portava um sorriso pronto para os seus superiores na hierarquia da corporação.<br />
- Hum... – olhei para o lado e ao avistá-lo tentando repousar sua mão em meu ombro direito, me desvencilhei e o desprezei.<br />
<br />
Ele permanecia com um sorriso brilhante enquanto eu me afastava rapidamente de suas mãos sujas. Subi a escada e praguejei levemente, amaldiçoando os cigarros que raptaram e esquartejaram minha saúde. Malditos cigarros. Bati o cartão e percebi que estava dentro da tolerância de atraso. Pisquei os olhos lentamente, sentindo que minhas pálpebras pesavam toneladas. Bebi três copinhos de água e alguma garota de má-fama se dirigiu a mim.<br />
<br />
- Que bela ressaca, Nelson! A noite foi foda, hein? – era Creusa, uma mulher horrorosa, mal penteada, mal organizada, mal compilada, enfim, mal feita. Deus não foi o responsável por ela. Não o Criador do Universo. Não teria feito tamanha presepada.<br />
- Foda? Faz tempo que não fodo, coração. E não bebi ontem. Tô sem dinheiro. E se tivesse dinheiro, não beberia porque só beberia se não tivesse dinheiro...<br />
- Você está confuso, isso sim. <br />
<br />
Esbocei uma réplica à constatação da lambisgóia, mas preferia me reservar. Apenas fuzilei-a com meu olhar de homem vencido e me retirei do recinto. Cheguei em minha mesa e dei outro suspiro. Um peido sacana ameaçou abandonar meu corpo, mas o aprisionei com uma apertada no cu. De mim ele só sairia no banheiro. Chega de constrangimentos. Já vivo constrangido por viver, porra. Me acomodei na cadeira e iniciei minhas operações.<br />
<br />
- Bom dia, Nelson! – Diogo me cumprimentava sem pretensão alguma.<br />
- Bom dia – fui seco na resposta, mas ele entenderia, eu estava focado no trabalho.<br />
<br />
E dentro do foco, eu passei boa parte do dia, sem olhar para o relógio, sem trocar uma bendita palavra com alguém, a não ser com os clientes que vez em outra insistiam em complicar minha bela vida. Mas eu estava lá, sentado como um velho negro sábio às margens do rio Mississippi, fumando um bom cachimbo e conversando com os pássaros. Eu era o senhor do meu trabalho. Eu era bom naquilo. Enquanto viajava, pensando em New Orleans, com toda aquela música e comida, fui interrompido pelo Diogo.<br />
<br />
- Estou com dores, cara. Dor na nuca, sabe?<br />
- Sei sim, tem um ambulatório lá embaixo, passa lá – eu não desviava o olhar da tela de meu computador. <br />
- Putz, não sei se vou chegar até lá. Tô com uma dormência, um formigamento no rosto! O que pode ser? – Diogo estava angustiado, perdido em seus sintomas. <br />
- Bom Deus, man. Deve ser dor de cabeça.<br />
- Meu Deus, minha cabeça parece que vai explodir! Minha nuca, Pai Eterno, o que é isso?! – Diogo exaltou de vez a sua voz e se ergueu.<br />
<br />
Como um raio partindo minha mente, parei para pensar: “ele está sofrendo um AVC!”. Levantei de minha cadeira e fui beber mais alguns copinhos d’água. Observei a feição do rosto de Diogo e era de dar dó. Ele estava atordoado, e sentia que ele tentava reagir, mas não conseguia se levantar. Eu realmente estava amargo naqueles dias. Fiquei ao lado do bebedouro, avistando de longe o pobre diabo. Estava esperando ele empacotar de vez para voltar ao meu lugar. Eu não sentia compaixão. Nenhuma boa atitude me atraía, eu queria paz, e paz significava silêncio e distância de qualquer confusão. E o Diogo era a tradução de uma boa confusão. Se ele morre ao meu lado, ou tem um derrame ou sabe Deus o quê, todos cairiam em cima de mim, com perguntas, fofocas do tipo: “ele não socorreu porque não quis” , “ele tinha inveja do Diogo e o deixou morrer” ou “o Nelson é um covarde e desalmado”. Pelo amor do que é mais sagrado, eu quero quilômetros de distância dessas picuinhas. <br />
<br />
Diogo permanecia com um mão na cabeça e outra na nuca. Ninguém teve o trabalho de o notar. Nenhuma alma sequer parou para auxiliá-lo, para ouvir seus gemidos de dor. Um pingo de remorso se apoderou de mim, mas logo o sequei e voltei ao meu estado de sentinela. Eu esperava pelo desmaio do Diogo para voltar ao meu assento e continuar meu bom trabalho. Eu estava numa verdadeira tocaia sacana, bebendo litros e mais litros de água. O café chegou na hora certa e lentamente despejei uma boa quantidade do liquido negro no copinho de plástico. Fiquei assoprando e bebendo aos poucos, sempre de olho no desgraçado do Diogo que não cedia à pressão alta. Comecei a ficar impaciente e fui até o restaurante da empresa. Perguntei qual seria o cardápio do dia e quando a senhora que servia o almoço foi conferir as panelas, peguei um saleiro e o enfiei no bolso. <br />
<br />
- Carne de panela, arroz, feijão e salada – a mulher me anunciou a lista de atrações do almoço.<br />
- Ah ta, ta certo. Bem, até mais – me despedi com passos apressados. Minha produtividade no trabalho estava comprometida por um homem doente que me assolava com seus pedidos de ajuda.<br />
<br />
Voltei ao bebedouro e alcancei um outro copinho de plástico. Abri lentamente a tampa do saleiro e despejei o equivalente a uma colher de sopa de sal. Preenchi o resto com água e misturei com o dedo indicador. “Agora ele morre de vez”, pensei, guardando o saleiro novamente no bolso. Não posso deixar de repetir, eu estava muito amargo naqueles dias. Pelo amor de Deus. <br />
<br />
Quando me dirigia para a mesa dele, para oferecer meu elixir da morte, o desgraçado apareceu como uma visão infernal, correndo em minha direção, gritando e praguejando.<br />
<br />
- Nelson, me ajude! Nelson! Minha cabeça vai explodir! Maldição! – dizendo isso, trombou comigo, me fazendo cair de bunda, derramando toda a água com sal. <br />
- Vai se foder, Diogo! Que ideia idiota é essa? Sai de cima, desgraçado! - ele caiu como um dejeto por cima de minha barriga. <br />
<br />
Ao virar seu corpo, seu rosto estava ensanguentado. Muito sangue saía de seu nariz e seus olhos estavam fechados. Ainda o ameacei, mais pela raiva que por qualquer outra coisa. Mas ele estava imóvel. Pessoas correram ao nosso encontro até que alguém gritou “chamem um ambulância!”. Me livrei do peso de Diogo e o larguei no chão. Um enfermeiro do ambulatório chegou com pressa e mandou as pessoas se afastarem. <br />
<br />
- Porra, o que aconteceu com ele? Alguém sabe se ele estava se queixando de algo? Algum sintoma? – o enfermeiro tinha voz firme e inquiria a multidão enquanto segurava a cabeça do Diogo com seu braço direito.<br />
<br />
Todos ficaram calados, inclusive eu. Eu não queria ser estrela naquela palhaçada. “Foda-se”, pensei. Mantive silêncio sepulcral. <br />
<br />
- Alguém pode me ajudar a carregar o coitado lá pra baixo? – o enfermeiro deixava vazar um pouco de pânico em sua voz. As pessoas estavam paradas, atônitas e inutilizadas pela curiosidade. <br />
<br />
Eu prontamente me afastei e fui para a minha mesa. E voltei a trabalhar. Aos poucos as pessoas se dispersaram e em alguns minutos aquela pausa coletiva havia acabado. Claro que o clima era outro. Pessoas tagarelavam sobre a boa pessoa que Diogo era, outras especulavam o que poderia ter acontecido. Eu olhei finalmente para o relógio e vi que faltava ainda um bom tempo para o fim do expediente. <br />
<br />
- O Diogo não disse nada para você, Nelson? – minha supervisora era asquerosa com seus quarenta e tantos anos. Dentes apodrecidos e fantasia por homens de fio dental. <br />
- Não me disse nada. Conversávamos sobre um pedido absurdo que presenciamos. Estávamos questionando algumas atitudes do setor de entregas. Só isso. Quando fui beber água, ele começou a sentir os sintomas.<br />
- Que desgraça. Temos que esperar pelo diagnóstico do hospital.<br />
- Vamos esperar. Tomara que dê tudo certo – voltei meu olhar para o monitor.<br />
- Que Deus o abençoe... – ela estava transtornada, com olhar de piedade digno de santa da igreja católica. <br />
- Amém – respondi sem ânimo, tentando fazer com que ela percebesse que estava sendo inconveniente naquele momento.<br />
- Vou te deixar trabalhar agora.<br />
<br />
Não respondi, apenas a chamei de galinha grávida em meu pensamento e permaneci hipnotizado pelas luzes de meu monitor. <br />
<br />
As horas enfim passaram. Às dezessete horas, a supervisora chegou com a cara inchada, cheia de lágrimas besuntando suas bochechas flácidas e avermelhadas. Ela abraçava um analista enquanto uma outra mulher apertava sua mão. <br />
<br />
- Foi um derrame! Ele está entre a vida e a morte! Meu Deus, ajude ele! Por favor, meu Deus! – <br />
ela clamava no meio de todo o setor. As pessoas se sensibilizaram e foram até a triste mulher para consolá-la. <br />
- Vamos rezar por ele, minha querida... – a faxineira ensaiou um abraço tímido.<br />
- Vamos fazer uma corrente de oração. Vai dar tudo certo! – outra boa alma se pronunciou.<br />
- O foda é que esses derrames em pessoas novas são como um enfarto, muito difíceis de se recuperar, acho que ele vai ficar com sequelas – resolvi quebrar meu silêncio.<br />
- Como você é desalmado, Nelson! Agora é hora de pensamento positivo! – uma colega de meu setor, negra como um tição, vociferou como se convocasse um tipo de greve. <br />
- Vá pro inferno, porra. Estou dando meu parecer – eu mantinha uma frieza impressionante.<br />
- Tá certo, Nelson. Vá trabalhar que é melhor – minha supervisora me orientou em meio aos soluços.<br />
- Que Deus tenha misericórdia do Diogo – fui sarcástico e dramático. As pessoas aceitaram minha invocação por misericórdia e se acalmaram. <br />
<br />
O expediente chegava ao fim. Pessoas fofocavam à todo vapor. Pessoas se apinhavam ao redor do relógio para bater seus pontos. O Diogo era o assunto da vez. Mensagens de solidariedade invadiram nossas caixas internas de e-mail. Uma mulher, em seus quarenta e dois anos convocava pessoas para uma oração pelo Diogo. <br />
<br />
- Você vai visitá-lo, Nelson? – um homem pálido como um doente de lepra se aproximou de mim, expelindo um bafo que misturava merda, cigarro e café.<br />
- Deus de amor, Arnaldo, o que você andou comendo? Seu bafo está horrível, e é sério! <br />
<br />
Arnaldo fechou sua mão direita em concha, levou-a até seu nariz e baforou um pouco de hálito na palma da mão. <br />
<br />
- Caralho, ainda bem que você me avisou! – dizendo isso, puxou um Trident de canela e começou a mastigá-lo.<br />
- Isso só vai piorar. Vá lavar a boca, escovar os dentes, sei lá.<br />
- Será que é o estômago?<br />
- Pode ser uma úlcera, sei lá. Vai saber, né?<br />
- Deus me livre! E então? Vai visitar o Diogo? – o hálito estava repulsivo.<br />
- Primeiro, vire a cara pra falar comigo. Segundo, não, eu não vou visitar. Deixe a família se encarregar disso – acendi meu primeiro cigarro em horas.<br />
- Olha, primeiro é que quem tem cara é cavalo. E segundo, você é um desalmado, Nelson.<br />
- Eu já cansei de ser chamado de desalmado. E se você não tem cara de cavalo, pelo menos bafo de cavalo pangaré você tem, meu camarada.<br />
- Eu te mostro quem tem bafo de cavalo – Arnaldo se lançou contra mim, irritado com todas as ofensas gratuitas.<br />
<br />
Me esquivei do primeiro soco, mas a joelhada veio logo em seguida. Consegui colocar uma mão nos meus bagos para protegê-los. Mas o choque entre o osso do joelho dele com a minha frágil mão de pianista classudo, foi doloroso. Ele deu uma derrapada e se recuperou, porém não esperava que eu me aproveitaria de seu descuido, afinal, ele ficou de costas para mim. Chutei seu traseiro, na parte entre as bolas e o cu. Ele gemeu e deu um leve salto com o impacto do peito de meu pé em seu rabo. Logo em seguida chutei o seu tornozelo direito, o que o fez iniciar uma corrida de fuga desengonçada. Segui o miserável por vinte metros, porém meu pulmão me limitou. Ergui meu punho direito, tremulando-o e gritando.<br />
<br />
- Corra, cavalo filho da puta! Corra!<br />
<br />
Pessoas estavam paradas, observando a curta briga que ocorreu, todas paradas na calçada do outro lado da rua. Peguei meu cigarro que havia caído no chão e o coloquei de volta em minha boca. Arrumei minha camiseta e sacudi o cabelo. Estava tudo em ordem. Atravessei a rua e percebi que todos os espectadores da luta apertavam seus passos, constrangidos com minha presença. Enquanto caminhava rumo à estação de trem de Presidente Altino, pensava em como eu estava estressado. Aquilo não estava certo, mas acabei misturando esses pensamentos com a vontade de ter um revolver na cinta, para sair atirando à esmo, para cima, para baixo, nas pessoas, nos cachorros, na polícia, enfim, trocando em miúdos, virar um maníaco ensandecido. <br />
<br />
Verifiquei meu maço de cigarros e haviam apenas dois restantes. Parei na padaria e comprei mais um. Aproveitei e levei uma garrafinha de cerveja para me refrescar. Matei toda a bebida em poucos goles e me senti muito bem. Enfim eu estava em meu caminho de volta para casa e eu sentia uma sensação de alívio maravilhosa. Cheguei à catraca da estação, passei meu bilhete único e escutei o clássico barulho do trem atacando os trilhos em sua velocidade cambaleante. Ensaiei uma arrancada, mas minha corrida era preguiçosa e precavida, afinal, qualquer esforço a mais e eu poderia apagar, acordando em algum hospital fodido, sem minha carteira, iPod e outros pertences. Mas consegui chegar com tranquilidade, e ainda achei um assento vazio. Ao sentar, suspirei e me senti velho. Dei uma leve checada nas pessoas e todas pareciam gelatinas cinzas, tremulando com o movimento irregular do trem. Em meu iPod - que já estava bem ultrapassado – passeei pelos nomes que constavam em minha lista de artistas e resolvi escolher o bom e velho Cat Stevens, ou para quem gosta de atualizações, Yossuf Islam. Fui direto em minha música preferida dele, “Morning Has Broken”, e quando a voz serena dele começou a reverberar por minha mente, pensei: “puta merda, como sou brega”. Mas algo na voz dele me acalmava, talvez fosse o instrumental, eu realmente não sei, mas tudo o que ele canta me soa nostálgico, e no meu caso, isso é bom. <br />
<br />
Os trens da CPTM – especificamente naquela linha – são muito lentos, mas são de uma lentidão pirracenta. O governo anda reformando todas as estações, está uma beleza, toda a modernidade, mas e as porras dos trens? O que importa no final das contas são os trens! Mas o óbvio da população não é óbvio para os governantes. Talvez eles sejam avançados demais. Por isso que estão lá, mandando e roubando, sem impedimentos. Esse pensamento invadiu minha mente e comecei a ficar irritado, ainda levando em consideração que eu suava em bicas, molhando meus finos cabelos, dando ao meu penteado um aspecto esculachado, largado. Comecei a mexer minha perna direita, exibindo clara ansiedade e o trem nem havia chegado à estação seguinte, que era relativamente próxima. De repente o trem finalmente fez o que parecia tencionar, parou e permaneceu assim por um bom tempo. Muitos trabalhadores impacientes começaram a se lamentar, alguns ironizavam o serviço de transporte público. Mas o que mais faziam era rir. Era melhor rir que chorar, eu concordo, mas será que será sempre assim? Rindo pra não chorar? E se o povo chorasse um pouco? Eu pareço um comunista pensando na solução para os problemas. Chega de crítica política e social, pelo amor de Deus, chega.<br />
<br />
Em meio ao fuzuê que se instalou, um erro da natureza, assentado à minha frente, com sua boca semi-aberta, óculos de aro fino e cabelo duro mas cuidadosamente penteado, olhava para mim. Reuni todos os traumas da minha vida, lembrei de todos os valentões que assolaram minha vida, as pessoas que me ameaçaram de morte, bêbados que me perturbavam em baladas e nem todos eles unidos, não conseguiram me irritar tanto quanto aquela figura bizarra que permanecia imóvel, me encarando. O olhar dele era extremamente desafiador e um pouco disperso. Não sei como diabos isso seria possível, mas era assim que ele me olhava. Às vezes levantava o queixo me encarando por cima de seu nariz. Às vezes de forma sombria, inclinava sua cabeça para baixo e me olhava com ar suspeito. Eu não estava gostando e estava de saco cheio. O trem se arrastava lentamente saindo de sua paralisação e o Cat Stevens cantava “Into White” e essa canção é muito parada. Peguei meu iPod como se ele portasse alguma culpa pela irritação e troquei para “Prayer to God” do Shellac. A pior música que eu poderia ouvir naquela hora. O vocalista da banda vomita tanto ódio entre os versos, que eu não pude evitar de me contaminar. Todo aquele papo de “MATEI-OS, JÁ MATEI-OS!”, começou a compactar a minha paciência e finalmente meus braços fervilhavam. Eu já não os sentia. Era o sinal de que eu iria entrar numa briga, sempre foi assim. E o panaca permanecia olhando, arrumando a posição de seu óculos, como se quisesse focar uma imagem. Sua cabeça mexia, mas seus olhos me perseguiam. Ele deu um sorriso e isso foi a maldita gota d’água. Me levantei tirando os fones de ouvido e me dirigi a ele. Ele sorriu e não demonstrou surpresa alguma. Ele queria briga, só podia ser.<br />
<br />
- Tá olhando o que? Eu posso saber? – tentei moderar ao máximo o volume de minha voz. <br />
Ele continuava me observando, como se eu fosse algum objeto de estudo, uma espécie de macaco em extinção. <br />
- Ei, fale comigo, filho de uma puta! – apontei o dedo para ele e em seguida dei um tapa em seus óculos.<br />
<br />
Os óculos caíram no chão e os chutei. Ele permanecia em estado de observação, sem aparentar cautela ou medo. Minha cabeça estava latejando de raiva e resolvi descer um bom tapa em sua cara. Ele soltou um som, que parecia o sopro de um flauta e isso me impressionou. “Que porra de homem é esse?”, pensei. Ao redor, as pessoas começaram a reclamar, e eu podia ouvir cochichos. <br />
<br />
- Porra, deixa o cara em paz! Eu trabalhei o dia inteiro, cacete! – um homem de farto bigode gritou do meio do vagão.<br />
<br />
Eu mostrei meu dedo do meio para ele e voltei minha atenção para o maluco. Ele não falava nada, apenas olhava. Ele tinha um deboche instalado nas curvas de sua expressão facial, um sarcasmo tão ostensivo, que comecei a recear. Mas o que me tirou do sério foi um sinal de positivo com o dedo polegar direito que ele fez, para mim. Ele caçoava da minha força, devia achar meu tapa uma piada. Fechei minha mão direita e com destreza desloquei perfeitamente meu ombro para trás, e joguei meu braço com toda força do mundo ao encontro do rosto dele. Aquilo que era um murro bem encaixado. A massa de dedos fechados sofreu o impacto na fronteira entre a narina direita e os lábios superiores. Ao me concentrar no soco, perdi estabilidade com o movimento e pra variar, o trem tremeu. Cai em cima de uma senhora. Um homem moreno, com barba por fazer e cabelos grisalhos se ergueu e me puxou pela gola da camiseta, me lançando contra a barra de alumínio que ficava ao lado da porta do vagão. Me ergui rapidamente e me posicionei para a briga. O homem era forte, mãos calejadas e os braços com circunferência duas vezes maior que a dos meus. Mas eu ainda estava com muito ódio e meu orgulho me impulsionava para a confusão. Eu estava liquidado, todos estavam incomodados com o brigão e em breve eu estaria numa delegacia ou algo do gênero.<br />
<br />
- Meu Deus do céu! O que aconteceu com ele? Meu Jesus! – a senhora, em quem caí, gritava horrorizada. <br />
- Aquele homem bateu nele! – era o grisalho me denunciando. <br />
- MAS POR QUE VOCÊ BATEU NELE? ELE É AUTISTA!<br />
- Puta que pariu... – eu falei com voz trêmula.<br />
- A senhora disse que ele é autista? – novamente o grisalho se intrometia no assunto. <br />
- Sim, ele tem problemas mentais, meu senhor! Por que ele bateu no rapaz? – a senhora perguntava com os nervos à flor da pele. <br />
- ESSE HOMEM É LOUCO! – um homem loiro, bem apanhado, de cabelos arrepiados e muito bem perfumado, se aproximou de mim. <br />
- O que você tem a ver com isso, seu merda?! – gritei tentando intimidá-lo. <br />
- Você bateu num deficiente, seu bosta! – uma negra com uma bunda enorme e calça extremamente apertada vociferou por trás de mim, batendo com sua sombrinha em minha nuca.<br />
- Mas que ideia é essa, sua preta desgraçada?! – me virei para ela, colocando as mãos na nuca.<br />
- Você é um maníaco e ainda é racista? Vamos pegar ele de porrada! – o grisalho de novo estava no centro das atenções. <br />
<br />
E o pau comeu solto. Senti uma braçada em meu ombro esquerdo. Um ponta pé na lateral de meu joelho. O trem chegou na estação Domingos de Moraes e as pessoas na plataforma, ao ver o linchamento, evitaram entrar . <br />
- Deus, me ajude! – gritei embaixo da saraivada de mãos que caia sobre mim. <br />
<br />
Mas Deus, se estivesse em carne e osso por ali, também me daria uma boa coça. Uma pessoa entrou no trem, um adolescente com uma tatuagem de estrela no ante-braço, e sem perguntar o motivo, começou a largar o pé pra cima de minhas costelas. Eu entrei em pânico, erguendo minhas pernas e tentando acertar alguém, mas foi em vão. Alguém segurou meu pé direito e o torceu. Tentei aliviar a dor, fazendo meu corpo seguir para o lado da torcida, mas alguém travou meu corpo com murros no peito. As portas do trem fecharam e seguiram para a Lapa. A senhora que cuidava do maldito autista, bateu sua bolsa em minha cabeça. Eu estava apagando e ouvi um estalar de ossos. “Merda, quebrou”, pensei. Avistei minha camiseta encharcada de sangue e pensei na quantidade de litros de sangue que um homem precisa perder para morrer. Meu tênis havia sido retirado e deram um jeito de sumir com minha carteira e iPod. Meu celular, ainda estava no bolso direito, mas eu me conformei com a ideia de nunca mais vê-lo. O estranho de tudo foi que eu não pensava na morte. Pensava em meus bens sendo roubados. Eu era um miserável. <br />
<br />
As pessoas, de uma hora pra outra cansaram de me espancar. Ficaram entediadas e fizeram uma roda ao meu redor. Eu ouvia algumas vozes, algumas especulações. Sugestões sobre os motivos do espancamento. Eu ainda me mexia, vagarosamente, como se quisesse alertá-los de que ainda estava vivo. Mas o que eu não esperava aconteceu: eles me ergueram e quando chegamos à Lapa, fui retirado do trem nos braços de todos os meus molestadores, como um Cristo prestes à ser crucificado, rumo ao seu calvário. “O mundo está cheio de ódio”, pensei. E nos braços do povo, fui exibido para tudo e todos, o homem cansado, uma verdadeira vítima da vida moderna, com todos os relacionamentos frios, trabalhos abusivos e transportes públicos precários. Um mártir da correria do dia-a-dia, sendo removido do trem e lançado na plataforma. Meu corpo rolou até a parede da estação, cheia de lindos grafites coloridos. E ali jazi por alguns minutos. Meus espancadores voltaram correndo para o trem e ficaram com expressão de alarde. Mais pessoas presenciaram a desgraça, ao meu redor, é claro. Pensei em quantas rodas de pessoas são formadas no mundo, apenas para presenciar coletivamente uma desgraça. <br />
<br />
Por incrível que pareça, sentia o fim cada vez mais distante. Sorri um sorriso vermelho, vermelho vivo. Eu estava em frangalhos, mas naquele dia me libertei. A Elisa e sua frieza não valiam a pena. O trabalho e o dinheiro não valiam tudo aquilo. Finalmente eu vi a luz no fim do túnel. Custou uma boa quantidade de sangue, alguns dentes e a integridade de uns pares de ossos, mas finalmente eu, Nelson, mais conhecido como o homem cansado e estressado, estava livre.Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-68973324460784717412010-11-15T12:38:00.003-02:002010-11-15T12:38:11.947-02:00O Chefe<link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CFELIPE%7E1%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_filelist.xml" rel="File-List"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CFELIPE%7E1%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_themedata.thmx" rel="themeData"></link><link href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CFELIPE%7E1%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtmlclip1%5C01%5Cclip_colorschememapping.xml" rel="colorSchemeMapping"></link> <m:smallfrac m:val="off"> <m:dispdef> <m:lmargin m:val="0"> <m:rmargin m:val="0"> <m:defjc m:val="centerGroup"> <m:wrapindent m:val="1440"> <m:intlim m:val="subSup"> <m:narylim m:val="undOvr"> </m:narylim></m:intlim> </m:wrapindent><style>
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<div class="MsoNormal">- Opa chefe, tem um desses pra me descolar? – um homem com cabelos lisos e oleosos, com cavanhaque suspeito e óculos surrados se aproximou apontando para meu cigarro.<br />
- Quem tem chefe é índio, amigão... – e sentei a mão na cara do homem estranho.</div><div class="MsoNormal">Ele caiu rapidamente, mais pelo susto que pela força. Eu nunca venci uma briga, nem em meus sonhos. São frequentes os sonhos onde apanho, ou então, na melhor das hipóteses, bato em alguém porém sem força alguma. Acordo me sentindo impotente, levemente desesperado, pensando na fraqueza dos meus socos. Enfim, o homem sentou-se com a palma da mão esfregando a maçã do rosto, claramente transtornado.</div><div class="MsoNormal">- Eu pedi um cigarro... – o homem tentou se erguer, falando com voz mansa.<br />
- Tome – estendi minha mão entregando dois cigarros ao pobre diabo - pegue um de brinde.<br />
- Eu merecia um maço por isso.<br />
- Vá tomar no cu, rapaz. Não tente me explorar – ergui novamente o braço para ajudá-lo a levantar.</div><div class="MsoNormal">Ele se ergueu, limpou a parte traseira da calça e o ombro direito. Acendeu um cigarro e ficou me fitando com expressão atordoada. Deu três longas tragadas e olhou para baixo. </div><div class="MsoNormal">- Eu to cansado de ser escorraçado. Eu já fui um bom professor de história. Mas acho que ler aquelas merdas de Marx e Engels só contribuiu para minha ruína. Você não pode lutar contra o sistema. <br />
- Bom Deus, você é comunista? – perguntei enquanto me distraía com uma mulher rabuda que passava pela calçada no outro lado da avenida.<br />
- Sou. Mas como eu acabei de dizer, não há como lutar contra o sistema. <br />
- E o que faz hoje em dia? <br />
- Simplesmente ando por aí. Não pertenço ao sistema, não pago impostos para esses bandidos...<br />
- E nem trabalha – interrompi o homem.<br />
- Nem trabalho – complementou com olhar soturno –, mas não por falta de oportunidades. Simplesmente não vou me entregar ao jogo.<br />
- Então você resolveu mendigar, pedir cigarros e bebida pra gente desconhecida?<br />
- Em tese sim. Participo aleatoriamente de passeatas, manifestações e tento me manter longe da confusão. Mas como você vê, vivo me fodendo.<br />
- Vamos ali naquele boteco – apontei para a pocilga – te pago uma cerveja.<br />
- Ta querendo me comer, é? – agora o homem sofrido me olhava confuso.<br />
- Ta querendo morrer? Acha que quero enfiar meu pau no seu cu sujo de pedinte?<br />
- Tomo dois banhos ao dia. Sou limpo.<br />
- Você ta querendo dar a bunda?<br />
- Ta louco? Você que ta querendo me pagar cerveja.<br />
- E você ta dizendo que é limpinho... Precisa dar satisfação pra mim?<br />
- Só quis explicar que não sou um porco.<br />
- Tudo bem, foda-se. Vai querer uma cervejinha?<br />
- Ta certo, chefe.</div><div class="MsoNormal">Acertei um soco oportunista na região do fígado do homem estranho. Ele grunhiu e praguejou algumas curtas palavras. Suas pernas tremiam enquanto se encurvava. Tossiu por alguns segundos e cuspiu uma bola considerável de catarro esverdeado. </div><div class="MsoNormal">-Eu já disse te disse que quem tem chefe é índio, seu malandro.<br />
- Tudo bem, tudo bem. Vamos ao boteco.</div><div class="MsoNormal">Atravessamos a avenida sem trocar palavras. Eu estava aproveitando o momento. Eu era o fortão, o violento. Eu era o cara mau da história e estava gostando da sensação. Há muito tempo não andava de rosto erguido. Utilizei de alguns trejeitos para simular uma virilidade exagerada. “Eu poderia ser assim para sempre”, pensei. Mas olhei para meus braços finos e decidi que seria assim somente diante do comunista indigente.</div><div class="MsoNormal">Chegamos à espelunca que chamavam de boteco e sentamos diante de uma mesa de ferro vermelha, patrocinada pela Brahma. As cadeiras, também de ferro, apresentavam sinais de ferrugem em estado avançado. Um homem obeso não poderia utilizar uma cadeira como aquela. Ergui minha mão e fiz sinal para o atendente, solicitando uma cerveja. O atendente me olhou com o rosto traçado pelo marasmo e me chamou ao balcão. Reclamei em voz baixa e fui rapidamente saber o que ele queria.</div><div class="MsoNormal">- Olha aqui, chefe... Nós não servimos cerveja na mesa. Tá vendo algum garçom por aqui? – enquanto falava, gesticulava como se quisesse me mostrar algo.<br />
- Do que você me chamou?<br />
- Chefe...</div><div class="MsoNormal">Peguei um chumaço de cabelos do atendente e os puxei até o balcão, fazendo sua testa estalar contra a superfície dura. O impacto gerou um pequeno estrondo. </div><div class="MsoNormal">- Quem tem chefe é índio, seu puto – dizendo isso, acendi um cigarro e olhei para o homem ainda desorientado. Soprei fumaça em sua cabeça e novamente puxei seus cabelos – Agora você vai nos servir a cerveja na mesa, você me ouviu?<br />
- Sim, agora me solte! – sentia o desespero dele vibrando em meus nervos.</div><div class="MsoNormal">O homem se recompôs, arrumando o cabelo. Caminhou até a geladeira e buscou uma Brahma gelada. Abriu a garrafa e a deixou em nossa mesa.</div><div class="MsoNormal">- Sirva nossos copos, seu palerma! – dessa vez deixei minha frieza de lado e me exaltei.<br />
- Não é necessário, eu sirvo – o comunista se antecipou fazendo gesto apaziguador.<br />
- Quando eu pedir para um comunista intervir em assuntos de boteco, eu te chamo. Mas por hora, fique na sua.<br />
- Você é um cara estranho. Você me dá pena.<br />
- O pedinte na história é você, eu tenho pena de você.</div><div class="MsoNormal">Enquanto isso, o atendente ficava pardo ouvindo nossa discussão.</div><div class="MsoNormal">- Não fique parado aí! – apontei meu dedo indicador, torto na ponta, para a cara do atendente.<br />
- Pois não – e lentamente o atendente despejou cerveja em nossos copos.<br />
- Ah! Finalmente um pouco de classe nessa maloca do caralho! – enfim despejei algumas palavras denotando prepotência e desprezo.<br />
- Meu Deus do céu... – o andarilho vermelho lamentava discretamente por todas as minhas atitudes.<br />
- Você é comunista, seu homem ruim. Você não acredita em Deus.<br />
- É uma expressão que todo mundo usa.<br />
- Pro inferno com as expressões! Vamos beber!</div><div class="MsoNormal">O atendente pediu licença e eu consenti. Um grande galo se formou em sua testa. Eu dei uma risada de satisfação e peguei um palito de dentes. Comecei a mordiscá-lo deixando a pequena peça de madeira repousada no canto de minha boca. </div><div class="MsoNormal">- Você quer um emprego? Posso te conseguir – inquiri a triste figura que bebia comigo.<br />
- Eu já disse que não me faltam oportunidades. Eu não vou me entregar à esse sistema falido<br />
- Sistema? Cara, desde que o mundo é mundo, existem fortes e fracos. Sempre vai valer a máxima: “quem pode manda, quem tem juízo obedece”. Não adianta se excluir e achar que está fazendo algo.<br />
- Eu tenho o direito de fazer o que quiser com minha existência. <br />
- Direito? – fiz um ruído de desprezo com meus lábios – Balela! Você deveria agradecer ao bom Deus a graça de poder existir. E eu deveria blasfemar contra todo tipo de divindade por causa de sujeitos como você.<br />
- Qual é o problema com sujeitos iguais a mim? – dizendo isso, tirou seus óculos e limpou as lentes utilizando hálito e a camisa.<br />
- Sujeitos como você são ditadores enrustidos. Se dessem o poder à vocês, vermelhos desgraçados, vocês iriam cortar todas as liberdades básicas do povo, dando pão e salsicha de comida e trabalhos braçais que não tem nada a ver com nosso tempo.<br />
- O que tem a ver com nosso tempo?<br />
- Tecnologia. Você viu os avanços da nanologia? Os chips estão cada vez menores e armazenando cada vez mais dados. A internet, os serviços... o ser humano está evoluindo, trabalhando com a mente e deixando as máquinas cuidarem do esforço. <br />
- O homem está ficando obeso e relaxado, é isso o que acho.<br />
- Mas é a maldita evolução das espécies, pelo amor de Deus! – ensaiei uma levantada triunfal, erguendo os braços, detendo a razão em minhas mãos, mas eu estava muito próximo à mesa e percebi que o movimento demandaria mais habilidade. Desisti.<br />
- Evolução. O homem estagnou. Ele não evoluirá mais. Somente o socialismo poderá nos levar rumo à uma sociedade mais justa. Esse papo de evolução trata o homem como um indivíduo. Precisamos pensar no coletivo! – Agora o revolucionário de meia pataca estava se exaltando – O egoísmo está fodendo com a base da sociedade, está destruindo a família!<br />
- Calma, aê, sua imitação barata de Che Guevara – acalmei seus ânimos fazendo sinal de silêncio com o dedo indicador torto – Por que você não mata um presidente? Por que não monta uma guerrilha armada? <br />
- E quem se juntaria á mim? São todos revolucionários de butique.<br />
- E você é um revolucionário exemplar? Você não passa de uma ruína ambulante. Só isso.<br />
- Olha aqui, chefe...</div><div class="MsoNormal">Peguei meu copo preenchido com cerveja até a metade e esparramei o líquido dourado no rosto dele. Ele prontamente esfregou os olhos e deu um soco na mesa pois sentiu as bolhas de gás da cerveja estourarem em seus olhos. Mas sua revolta foi abafada por um tapa que desferi em seu rosto, com as costas de minha mão direita. Ele gemeu levemente e desviou seu olhar para um cartaz de cerveja. A mulher no cartaz era gostosa.</div><div class="MsoNormal">- Quem tem chefe é índio. Eu já te disse, seu comuna vagabundo. Mas nunca te disse uma coisa: você parece com o Trotsky, sabia? – acendi outro cigarro. <br />
- É, eu sei. Quem conhece o Trotsky sempre me diz isso. <br />
- Pois então te chamarei de Trotsky. Ou prefere Leon? <br />
- Eu prefiro meu nome, Demétrio.<br />
- Que nome ridículo. Seus pais estavam de ressaca quando te registraram, aposto minhas bolas nisso.<br />
- Provavelmente isso é verdade, pois eles era alcoólatras.<br />
- Pais alcoólatras... você só poderia ter virado comunista – deixei aflorar mais um pouco de minhas inclinações de extrema direita – pelo menos não virou poeta ou vegetariano. Embora vocês todos, no final das contas, não passam da mesma coisa.<br />
- E qual é o seu nome? Posso saber?<br />
- Artur. E quero ver meu nome tatuado no seu rabo – soprei fumaça na cara dele.<br />
- Artur, você é uma espécie de neo-nazista? Integralista? Pertence a alguma frente nacionalista?<br />
- Pro inferno com a política e suas ideologias, Trotsky.<br />
- Me chame de Demétrio – me interrompeu enquanto furtava um cigarro de meu maço.<br />
- Não, seu nome é Trotsky. E pare de se aproveitar de meus cigarros, seu meliante.<br />
- Você fala como um militar dos anos 50. Isso é repugnante.<br />
- E você se veste como um comunista dos anos 20. Parece os políticos do Partido da Causa Operária ou do PCB.<br />
- O velho partidão... Remanescente das ideias do grande Luis Carlos Prestes!<br />
- Luis Carlos Prestes... – fiz novo ruído de desprezo com os lábios – Perambulou pelo Brasil e não fez porra nenhuma... – coloquei mais cerveja em meu copo, esperando a resposta que o bastardo me daria.</div><div class="MsoNormal">Ele não respondeu. Ajeitou os óculos em seu rosto e pediu licença. Levantou-se lentamente e caminhou até o balcão. Seus sapatos eram surrados, como os de um vagabundo americano dos anos 30. Usava um blazer grosso de algodão com os cotovelos de couro, típico de um professor fracassado com tendências esquerdistas. Dei uma risada de deboche ao perceber que ele conversava em voz baixa com o atendente. O galo na testa do atendente era evidente e vergonhoso. Os dois conversavam sem dar pista do que poderia ser o assunto. Comecei a ficar intrigado.</div><div class="MsoNormal">- Meninas, podem parar de confidenciar a cor de suas calcinhas? Seu imprestável, traga mais cerveja aqui na mesa!</div><div class="MsoNormal">Ninguém me respondia. Coloquei outro palito de dentes na boca e me irritei. Eu estava extremamente embriagado pelo poder que o testosterona proporcionava. </div><div class="MsoNormal">- Seus paspalhos! O que vocês estão confabulando? – utilizei de meu vocabulário inadequado para impressionar um pouco. </div><div class="MsoNormal">Eles se voltaram para mim e ficaram parados, inexpressíveis e imóveis. Trotsky tinha um par de óculos opaco e riscado e aquilo me deixava indignado. Nunca confie num homem de óculos sem brilho. Tentei insultá-los mais um pouco, mas nada os fazia alterar a expressão. Fiquei enfezado e quando me preparava para levantar e dar uma lição naqueles homens mal-criados. Mas eles foram mais rápidos e se correram em minha direção. Levantei-me derrubando a mesa, fazendo um obstáculo para meus agressores. Funcionou melhor do que eu esperava. O comunista caiu no chão, em cima de seu ombro e ganiu, desta vez com tom escandaloso. O atendente era mais esperto e conseguiu frear sua corrida antes de se encontrar com a mesa. Cacos de vidro se espalhavam por todo o chão. Lamentei pelo Trotsky não ter se ferido em um deles. O atendente alcançou uma vassoura reclinada ao lado da porta do banheiro e começou a gritar como se fosse um guerreiro mongol conquistando algum reino sofrido asiático. Tomei uma cacetada no braço pois tentei me defender. Como doeu. Mas tive a frieza de pensar que não poderia gritar. Não eu, o homem violento do Cambuci. Cerrei meus dentes exibindo ódio e me joguei contra o pobre diabo. Eu me sentia vivo, meus braços estavam leves, anestesiados pelo ódio. Finalmente aprendi a brigar. </div><div class="MsoNormal">- Por favor, por favor! Não me bata! – o atendente estava caído no chão em posição vexatória. <br />
- Eu vou te currar as orelhas! – não sei de onde tirei essa frase, mas soou bastante agressiva.<br />
- Por favor, leve o que quiser, mas não me espanque! Oh, meu Deus!<br />
- Eu não quero nada desse bar maldito! Apenas jure que nunca mais vai tentar agredir um cliente! – sempre quis fazer alguém jurar em estado de humilhação.<br />
- Eu juro! Eu juro! – o atendente estava de joelhos. Percebi que havia um corte na parte calva de sua cabeça.<br />
- Que Deus tenha misericórdia da sua alma. Ponha-se em pé, seu vadio – eu estava soberbo em meu papel de senhor das ruas.</div><div class="MsoNormal">O atendente levantou-se e prontamente correu para trás do balcão. Olhei para a jukebox e resolvi procurar por uma boa canção. Procurei no arquivo da máquina por algum disco conhecido. Apenas apareciam álbuns de forró. Malditos nordestinos que estão morando perto do Largo do Cambuci. Todos os porteiros dos prédios e vigias de lojas da região estão bebendo nesses botecos. Comecei a me irritar com a jukebox. Encaixei um bom murro no equipamento e olhei para trás, verificando a situação do bar. O Trotsky estava sentado no chão, sem ânimo para nada. Um farrapo de gente. O atendente permanecia atrás do balcão, manipulando um pote de vidro cheio de ovos cozidos, rosados e em conserva. Um nojo só. </div><div class="MsoNormal">- Não tem música decente nessa jukebox, caralho? – intimei o pobre atendente que escolhia as palavras para me responder.<br />
- A... A... A ma... maioria é forró. Ma... Mas tem coisa bo... boa sim – o homem sofrido gaguejada constrangido. Senti uma leve pena.<br />
- Qual é o seu nome?<br />
- Carlos. Mas me... me chamam de Ca... Carlão – e continuava gaguejando com seu triste sotaque de pernambucano.<br />
- Carlão? Pra mim é Carlinhos – menosprezei seu apelido e apontei para os cigarros expostos numa estante na parede atrás do balcão – Carlinhos, me jogue um maço de Lucky Strikes vermelhos.</div><div class="MsoNormal">Ele rapidamente trouxe até a jukebox, com um cinzeiro limpo. Agradeci o fraco homem com um leve toque em seus ombros. E voltei a procurar um bom álbum na merda da jukebox. Depois de alguns segundos de pura atenção, achei uma preciosidade: Nelson Gonçalves. Meus nervos se acalmaram e escolhi a música “Negue”. Aquele compasso de bolero começou a preencher todos os espaços da espelunca. Dei um sorriso e acendi um cigarro. </div><div class="MsoNormal">- Agora você vai ouvir uma boa cantiga, Carlinhos. Nada de risca-faca nessa porra.</div><div class="MsoNormal">Ele ficou em silêncio, sem reação. Continuou seu trabalho. Trotsky permanecia sentado. Achei aquela cena ridícula.</div><div class="MsoNormal">- Trotsky, levanta daí, seu miserável, ou vou te erguer em meio a pontapés! – meu esporro foi imponente e enérgico.</div><div class="MsoNormal">O deplorável marmanjo levantou-se e procurou uma cadeira. Joguei dois cigarros para ele e o isqueiro. Mandei ele devolver depois. </div><div class="MsoNormal">Nem percebi que a noite já havia chegado. Fui para fora do boteco verificar a avenida. A Lins de Vasconcelos estava cada vez mais movimentada. Pessoas não paravam de passar na calçadas. Carros cada vez mais bonitos passeavam pelo asfalto novo que se prolongava por quilômetros. Voltei ao bar e sentei numa cadeira, cruzando minhas pernas. Ergui meu rosto e passeei meu olhar por todo o boteco.</div><div class="MsoNormal">- Cavalheiros, isso que é música! – ergui meu copo de cerveja – Carlinhos, pegue uma cerveja para beber. Sou generoso. Sou mau, mas generoso! E não esqueça de servir o Trotsky.</div><div class="MsoNormal">Ele me obedeceu e serviu os copos. Preencheu o que faltava no meu e foi para trás do balcão. </div><div class="MsoNormal">- Só mais uma coisa, Carlinhos. Isso é uma espelunca, mas nada justifica essa baderna toda. Quero esse lugar arrumado! E é pra hoje, seu picareta!<br />
- Sim senhor.</div><div class="MsoNormal">Resolvi que frequentaria aquele bar daquele momento em diante. A jukebox precisava de uns ajustes, mas o preço da cerveja estava decente e o Carlinhos era um pelego frustrado e cabisbaixo. Sobre o Trotsky, bem, darei um jeito de fazê-lo frequentar aquela espelunca. Depois que ele tatuar meu nome no rabo, é claro.</div><div class="MsoNormal">De repente um toque de relógio começou a soar. Cada vez mais alto e irritante, como se fosse uma sirene de bombardeio. Olhei para os lados e Trotsky não estava mais lá. Carlinhos evaporou e o som do relógio era cada vez mais insuportável. Minha cabeça estava por explodir.</div><div class="MsoNormal">- Alguém pare com essa porra! Vou espancar o dono desse relógio! EU VOU MATAR O MALDITO DONO DO RELÓGIO!</div><div class="MsoNormal">Quando percebi, estava em minha cama, tonto e confuso. Levantei em um pulo e corri para o banheiro. Me olhei no espelho e toquei em meu rosto. A barba estava por fazer e meu cabelo estava amarrotado. Voltei para a cama e o relógio ainda tocava. Como um soco, veio a percepção: eu sonhei com tudo aquilo. Dei um murro no relógio e praguejei. Senti uma frustração terrível e abaixei a cabeça. O rosto do Trotsky e do Carlinhos ainda voavam pela minha mente.</div><div class="MsoNormal">- Trotsky, seu comunista safado. Se você existisse, eu acabaria com sua raça! – quando ergui meu rosto, minha cabeça latejou. Ressaca. </div><div class="MsoNormal">Fechei a janela do quarto e acendi um cigarro. Busquei dois comprimidos de Anador e os tomei. Pensei no covarde do Carlinhos e no respeito que conquistei à base da violência gratuita.</div><div class="MsoNormal">- Diabos, ao menos venci uma briga em sonho. </div><div class="MsoNormal">Deitei na cama e esperei o sono voltar.</div>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-83737915552581532312010-07-21T17:32:00.000-03:002010-07-21T17:33:25.756-03:00Em Nome do Pai<p class="MsoNormal"><span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif; font-size: 15px; line-height: 17px; ">Eu estava olhando para o teto, mais precisamente para o ventilador de teto que girava enlouquecido, fazendo pouco barulho, é verdade, mas parecia que a qualquer momento iria alçar vôo e repousar em meu pescoço, cortando-o com velocidade, me garantindo uma morte indolor. Sempre tive esse medo, e nunca soube instalar um maldito ventilador de teto com segurança. Enfim, ventilador de teto a parte, eu estava pensando na vida, ouvindo pela terceira vez o disco Hate dos Delgados. Estava sublimado com a voz da vocalista, os arranjos monumentais, mas ao mesmo tempo que eu me deliciava com cada detalhe cuidadoso da execução dos instrumentos, o refrão de ‘The Light Before We Land’ me desferia um golpe no peito, um golpe gelado, como se as dores do passado estivesse concentradas num raio e esse maldito raio escuro me atingisse com toda potência do mundo. Era a maldita sensação da nostalgia. O engraçado de tudo isso é que eu nunca ouvi esse som na minha infância – que eu saiba, eles nem existiam na época – mas uma vontade de chorar me tomava, como se eu houvesse detectado alguma lacuna vazia na minha história, algo que deixei de fazer ou algum pecado covarde de minha existência. Preparei-me para o momento em que minhas lágrimas cairiam, mas nada aconteceu. Senti meus olhos secarem ainda mais, me frustrando, afinal, esse papo de que homem não chora é pura balela. Todo homem, em algum momento na vida, precisa chorar, como se fosse um êxtase religioso, como uma iniciação em uma seita absurda ou seja o diabo que for, o homem precisa de lágrimas lavando seu rosto e sua alma. Piegas? Pau na sua bunda.</span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Tomei coragem para levantar da cama e verificar o estado da geladeira. Estava vazia, mas não tem nada a ver com minha situação financeira. Eu não compro muita comida, tenho o costume de jantar fora, na padaria ao lado do prédio que moro. Compro mais bebidas e a geladeira só está vazia porque estamos no fim do mês. Sem desespero. Dei uma rápida olhada no computador que estava ligado com o programa de torrents. Estava baixando um filme, ‘Em Nome do Pai’, história real e muito triste, de um pai que vai para cadeia apenas para acompanhar o filho que havia sido confundido com membro do IRA, aquele exército revolucionário da Irlanda. Enfim, tem uma boa história (jamaicanos na cadeia lambendo peças de quebra-cabeça banhados em ácido) , boa trilha sonora (Bob Marley e Kinks) e uma atuação sensacional da Emma Thompson – a desgraçada sempre teve aquela cara de velha? – como advogada do coitado irlandês. Esse filme me marcou desde os onze anos, quando o assisti pela primeira vez. Mas com todos os deuses, o fato é que uma janelinha de conversa do Messenger piscava. Era o Fernando, um dos poucos amigos que tenho. Depois da morte do Alfredo, me aproximei ainda mais dele, talvez seja pela grande semelhança entre Fernando e Alfredo. Gosto musical, repulsa por qualquer religião ou política, a vida que levam (que Alfredo levou até seu suicídio), enfim, eu me sentia extremamente completado ao conversar com qualquer um deles. Pois bem, o Fernando me convidou para ir a casa dele. Eu não gostava muito de ir até lá por um motivo de nome antiquado e ridículo: Aristeu. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Aristeu é um evangélico neo-pentecostal, daqueles que vivem com um adesivo grudado no rabo, escrito DEUS É FIEL. Vivem com uma bíblia postada embaixo de seus sovacos, e tem líderes que vivem inovando as doutrinas e o modo de usar a bíblia, guardando milhares de dólares dentro dela para enganar a fiscalização no aeroporto. Tatuam qualquer merda em hebraico na nuca e andam com uma estrela de Davi enrolada no pescoço. Aristeu é um deles. Sempre tem um versículo para se defender, mesmo que seja na hora errada, na ocasião menos favorável possível. E eu não tenho tolerância para pessoas cínicas como ele. Nem o próprio Fernando tem tolerância com o pobre diabo pois vive acertando socos na cara dele, sempre quando descamba em proferir discursos pré-calculados e copiados de seus pastores. Resolvi ligar para o Fernando, não gosto de conversas longas por Messenger.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Fala rapaz! Como estão as coisas, Fernando?<br />- Opa meu jovem! Vão indo, vão indo... Ué, por que me ligou? Caiu sua conexão?<br />- Não, é que não gosto de longas conversas por internet, fico de saco cheio de digitar, sabe?<br />- Sei, então, o que me conta?<br />- Cara, não sei se vou aí. O Aristeu, man. Esse filho de uma puta me tira do sério. Você ainda consegue amaciá-lo na porrada, já eu tenho vontade de enfiar uma faca no pescoço daquele viado. Ele fala muita bosta, ele é persistente em reproduzir as mentiras em que acreditou, sabe?<br />- Eu sei, mas cola aqui, mano. Ele vai chegar tarde, hoje tem vigília na igreja dele. Estou livre dele hoje, por isso que te chamei. Além do mais, o Alberto vem também.<br />- Caralho, faz tempo que não falo com aquele maldito! Se é assim, logo mais to aí.<br />- Nelson, só uma coisa: traga uma garrafa de uísque – Fernando solicitou com voz sombria e ao mesmo tempo cheia de clemência.<br />- Porra, você quer quebrar minhas pernas... É fim de mês, man. Não dá pra comprar um J&B.<br />- Não tem problema, compre um Passport e tudo fica de boa.<br />- Quanto é que ta uma garrafa dessa merda? Quarenta mangos?<br />- Trinta e pouco, sei lá... Por aí.<br />- Bem, ainda é melhor que comprar um J&B. Já já eu colo por aí. Abraço.<br />- Abraço.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">A noite aplicava um mata-leão violento na tarde, e escurecia nosso lado do planeta. E nessa putaria toda, um frio se instalava com toda a malícia que uma massa de ar polar continha. Acho que fazia uns quinze graus e fui para o chuveiro tomar um banho rápido. Olhei para o sabonete seco e cheio de pêlos, e lamentei ter esquecido de tirá-los no banho anterior. Fiquei tirando-os com as unhas, enquanto elas ficavam cheias de sabonete e pêlos grudados. Passei as unhas na parede e comecei o banho. Estava pensando em tantas coisas que acabei terminando o banho sem passar o xampu. Percebi isso ao secar os cabelos e notar uma textura áspera. Detesto meus cabelos finos. Lembro das garotas dizendo: “Olha só que cabelo liso! Ele tem um cabelo tão lindo, e nós esse bombril”. Tudo o que eu queria era meter a rola nelas e elas invejando meus cabelos. Acho que é por isso que estão caindo. Malditas vadias. No final das contas, voltei para o chuveiro e lavei o cabelo. Vesti-me no banheiro mesmo – não queria sair no frio – só calcei o tênis na sala. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Peguei as poucas cervejas que havia na minha geladeira e coloquei numa sacola de supermercado. Eu iria bebê-las no caminho. Desci as escadas do prédio e ganhei a avenida, acendendo um cigarro. Caminhei até outra avenida paralela à que moro e parei numa loja de bebidas, na verdade é uma loja de vinhos, mas eles vendiam todos os tipos de destilados também. Comprei o uísque para o Fernando e dois potes de picles. Cheguei ao ponto de ônibus e aguardei por uns cinco minutos. O ônibus chegou cheio, típico de sexta-feira. Ele ia até o metrô São Judas. Desci lá mesmo e caminhei uns dez minutos até a rua Major Freire. Ele mora num bom apartamento de dois quartos, cheio de comércio ao redor, pizzarias, farmácias, um sucesso de bairro. O porteiro não gosta de mim, pois me olhou com desdém, porém ao remexer em suas memórias, lembrou de algumas noites em que estive lá, quando o barulho foi insuportável e os vizinhos ameaçaram chamar a polícia.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Vê se pega leve essa noite, hein? – o porteiro solicitou com voz suave porém firme, enquanto eu atravessava a entrada do prédio.<br />- Relaxa, chefe. O Aristeu não está hoje para torrar o meu saco – respondi erguendo meu polegar positivamente.<br />- Coitado do Aristeu, não sei o que vocês vêem de tão ruim no coitado. Ele é decente, trabalhador e vai na igreja.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Fiquei intrigado com a disposição do porteiro em defender aquele porra do Aristeu.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif""><span style="mso-spacerun:yes"> </span>- E o que o faz decente? Trabalhar? Ir à igreja? – destilei meu veneno com todo sarcasmo disponível.<br />- Sim, ao menos o pessoal da minha igreja é tudo gente honesta, rapaz. Gostam de trabalhar e não causam problemas.<br />- Ah sim, eu deveria desconfiar! Vocês estão em todos os lugares! Deus eterno!<br />- Nós quem? Evangélicos?<br />- Sim, vocês evangélicos... Com esse papo de honesto, trabalhador, digno... Ahhh! – dei um grito de desespero e desisti – olha, o Aristeu não está aqui e isso me faz feliz. Você não vai estragar minha noite.<br />- Jesus te ama! – exclamou o porteiro me entregando um folheto.<br />- Guarde isso pra alguém que agüente toda essa merda, chefe. Boa noite – me despedi andando apressadamente até o elevador.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Cheguei no corredor do oitavo andar e o cheiro era de feijão cozido. “Quem diabos resolve cozinhar feijão numa sexta à noite” e toquei a campainha do apartamento de Fernando.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Graaaande Nelson! Dá um abraço aqui! – Nelson me cumprimentou calorosamente, tomando de minhas mãos a sacola com uísque.<br />- Fala, meu velho! Caralho, deixa de ser compulsivo, seu porra – respondi ao perceber a sacola sendo tomada de minha mão.<br />- O uísque acabou e como você disse, é fim de mês e só você tem limite bancário por aqui!<br />- Maldito rato – adentrei o apartamento e fiquei observando a decoração esculachada. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Apenas o computador na sala, dois sofás, uma televisão e dois quadros: um com um palhaço triste, a breguice em forma de arte, e o outro exibia uma paisagem praiana, o típico marasmo artístico. O sofá cheio de manchas, sabe Deus do quê. O computador jazia numa escrivaninha sem a mínima conexão visual com o resto da sala. Uma bíblia permanecia ao lado do monitor. “Graças a Deus o Aristeu não está aqui”, pensei.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Então, pedi duas pizzas, acho que é o suficiente, não? – Indagou Fernando enquanto servia duas doses de uísque com gelo.<br />- Ué? E quem vai pagar por elas? – nesse momento meu saldo bancário apareceu em minha frente, como se estivesse estampado na parede, em neon.<br />- Eu tenho o vale-refeição ainda, Nelson. Só que ninguém vende bebida com VR.<br />- Caralho, que susto. Você tem essa mania de me quebrar as pernas, Fernando, vai se foder, rapaz...<br />- Fica frio, mano. O VR aqui tem uma boa quantia pra torrar.<br />- E por que não vendeu o VR pra comprar bebidas?<br />- Os caras estão descontando quinze por cento na venda! Nem fodendo que vou entregar quinze por cento de bandeja assim!<br />- Malditos desgraçados! Quinze por cento? Santo Padre!<br />- Pois é, mano. É uma boa grana, dependendo da quantia que você vai vender.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Brindamos às almas dos compradores de VR e desejamos suas mortes. Bebemos nossos primeiros goles.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- E onde diabos está o Alberto? – perguntei cutucando os gelos de meu copo com os dedos.<br />- Vem mais tarde. Ficou atolado de trabalho, o cara ta estressado pra caralho. Uma hora ou outra ele tem um colapso.<br />- Cara, meu trabalho também está cheio de pepinos, por todos os lados. Aqueles judeus estão metendo no rabo de todo mundo por lá. Eles não têm a mínima noção comercial, não manjam porra nenhuma de marketing e um dos diretores é metido a sabichão, sabe? Leu de tudo um pouco, vive com aquela postura de arrogância, olhando para todo mundo, como se todos fossem lixo, puro lixo.<br />- Eu sei qual é a desses caras...<span style="mso-spacerun:yes"> </span>– Fernando afirmou com olhar penetrando um baseado, o qual enrolava lentamente.<br />- Mas o cara curte Harry Potter. Ele é o típico boçal que tem grana, mas ainda não descobriu que dinheiro não compra inteligência.<br />- É, estamos cheios desses tipos... humm... por aí... – ele continuava concentrado no enrolar perfeito do baseado.<br />- Malditos judeus. Cara, eles se acham o povo escolhido, se acham acima de qualquer coisa dentro daquela comunidade de retardados. Um amigo meu tentou se converter ao judaísmo...<br />- Pelas barbas de Moisés, pra quê? – Fernando me interrompeu.<br />- Sei lá, ele tem grana, tem classe e diz ele que o pau dele foi circuncidado por causa da boa e velha fimose. Tava com a faca e o queijo na mão, mas o maldito rabino cortou o barato dele. O coitado foi a uma entrevista com esse rabino, e o judeu o ouviu, ficou com olhar disperso, dizendo centenas de ‘ahãs’ e toda aquela ladainha de bom ouvinte. E o meu amigo ficou com todo aquele papo de “sempre fui apreciador e amante da cultura judaica” – cadê a garrafa do uísque? – interrompi a conversa.<br />- Vou lá buscar, peraê. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Fernando chegou com a garrafa de Passport, sentou e deu um suspiro profundo, serviu os dois copos e correu até a cozinha pois havia esquecido das pedras de gelo. Voltou e concluiu o serviço.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- E aí? O que aconteceu com seu amigo? – Fernando deu um bom gole em sua bebida.<br />- Então, o rabino apenas disse que iria apreciar a conversa que tiveram e iria conversar com anciãos da sinagoga e tudo mais. O fato é que nunca entraram em contato com ele, e o rabino vivia dando perdidos no pobre diabo. Ele ficou revoltado e começou a compartilhar da mesma opinião que a minha: são todos uns excluídos da sociedade, vivendo em seus círculos de amigos com a ponta da rola cortada, se metendo em bar-mitzvas, brindando suas bebedeiras gritando “l’chaim!” e fazendo cara de cu quando avistam uma boa feijoada, cheia de porco morto boiando.<br />- Por isso que o Hitler jogou os caras nas câmaras de gás – Fernando acenou para o nada enquanto mastigava um pedaço grande de picles.<br />- Sim, eu cresci vendo filmes como a Lista de Schindler, O Pianista, A Vida é Bela entre outros milhões deles, me acostumei a sentir dó daquele povo, mas à medida que você cresce, vai percebendo, sabe? – peguei um pedaço de picles e o mastiguei.<br />- É... O único judeu que se salva é o Woody Allen.<br />- Concordo. E também gosto do Adam Sandler. Só não gosto da mania dele em pôr sempre algo que nos faça lembrar a maldita estrela de Davi ou a cultura deles, comida kosher e essas esquisitices de povo semita branco.<br />- Eles são brancos pelo tempo que passaram sugando os países da Europa, como Alemanha, Áustria, Polônia, Rússia... <span style="mso-spacerun:yes"> </span>– Fernando me lembrou esse fato e levantou rumando para a cozinha.<br />- Para o inferno com eles, só isso que tenho a falar. São alienígenas e ponto final. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Acendi um cigarro e fiquei olhando o maldito quadro do palhaço.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Fernando, quem pintou essa merda aqui? – perguntei enquanto expelia fumaça pela boca.<br />- Minha mãe – respondeu com voz falhada e constrangida, enquanto pegava umas latas de cerveja.<br />- Que bosta, hein? Você gostava do Bozo?<br />- Claro, quem não gostava?<br />- Eu. Nunca achei graça naquele palhaço com cara sádica. Um dia liguei pro programa dele e mandei ele tomar no cu. Ele me respondeu que não gostava de tomate cru. Eu dei muita risada com a cara constrangida que ele fez – bati a cinza do cigarro no cinzeiro e o repousei para dar uma mijada rápida.<br />- Confesso que ele era um tanto assustador. Mas o conjunto da obra era bom. Papai papudo, vovó Mafalda, toda aquela música! Caralho, lembro dos tempos da escola, eu chegava em casa, jogava a mochila no sofá e ligava a TV para assistir o Bozo! – Fernando exclamou com entusiasmo e olhar saudosista.<br />- Preferia ver o Chaves! E o SBT ainda era TVS, lembra? – perguntei enquanto sacudia meu pau.<br />- Cacete, é verdade! Lembra das vinhetas de natal, com todas aquelas canções calorosas, em harmonia? Meu, que bosta, vâmo parar com esse papo. Tá me deixando sentimental demais – os olhos de Fernando brilhavam.<br />- Que bichona! Dá uma cerveja aqui – tomei uma lata das mãos dele enquanto ele estava em transe, lembrando da infância.<br />- Você é um coração de pedra, Nelson. Não tem nada que te lembre a infância?<br />- Claro que sim! Estava viajando num disco dos Delgados, o Hate, sabe?<br />- Não, nunca ouvi – Fernando franziu a testa.<br />- Depois eu te mostro – tomei um gole da cerveja que estava trincando -, o que eu achei estranho é que os Delgados são uma banda que aprendi a gostar depois dos meus vinte anos. Mas eles me fizeram viajar de volta à infância. Meu peito ardia, me deu vontade de chorar.<br />- Que bichona... – Fernando sussurrou com tom de deboche.<br />- Pau na sua bunda, man – o interfone do apartamento tocou. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Fernando atendeu e autorizou a subida de Alberto. O miserável do Alberto. Talvez o cara mais tranquilo que conheci na vida. Sua fala era bem mansa, suas pálpebras permanentemente semicerradas, e a boca dele estava quase sempre fechada, como se estivesse sempre por bocejar. O andar dele era uma espécie de rastejar vertical, e sua postura sempre inclinada para frente, com os ombros curvados e a cabeça baixa. Parece que estou falando de um derrotado, mas não, ele até se dava bem na vida. Trabalhava como estagiário de direito num escritório de advocacia, ganhava razoavelmente bem, mas vivia enlouquecido com tanto trabalho, com tantos processos a analisar. Diferente de mim, ele tinha um chefe genuinamente brasileiro e muito gente boa. Quando estava fora da opressão de seu curto expediente, Alberto irradiava um bom-humor contido porém agradável. Conhecia muito sobre música e nunca perdia tempo com as mulheres. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Alberto, seu miserável! – me levantei e fui abraçá-lo.<br />- Deus do céu, Nelson! Deixou a barba crescer? – e me abraçou forte, talvez devido ao tempo, seis meses eu acho, que não nos víamos.<br />- Porra, o que anda fazendo de bom nessa vida desgraçada? – me perguntou enquanto recebia de Fernando uma lata de cerveja.<br />- Ah, entrei numa empresa de importação. Trabalho no comercial, mas ta uma merda sem igual. Meu chefe é um bosta arrogante. E você, ainda no estágio?<br />- Sim, logo logo concluo o estágio, e tudo indica que serei efetivado. Assim espero – deu um gole curto na cerveja e deixou um pouco da bebida escorrer pelo canto da boca –, cacete de cerveja! – foi ao banheiro secar a boca na toalha de rosto.<br />- Não Alberto! – gritou Fernando –, o merda do Aristeu vai chiar se sentir cheiro de cerveja nessa toalha!<br />- Pau no cu do Aristeu! – Alberto colocou a toalha dentro de sua cueca e começou a simular uma punheta.<br />- Puta merda, puta merda! Agora você que ponha esse pano pra lavar!<br />- Parece uma porra de uma dona de casa, Fernando! Relaxa! Você não disse que o crente não vem hoje?<br />- Sim, mas porra, deixa de bagunça. Quero que o Aristeu se foda. Você já ta bêbado? – Fernando perguntou enquanto chutava a toalha de rosto até a lavanderia.<br />- Ainda não. Só to curtindo com sua cara. De boa, hahaha! – Alberto dava risadas altas.<br />- E por que tanta alegria, Alberto? Tá confiante pra caralho, tudo isso é porque você vai<span style="mso-spacerun:yes"> </span>ser efetivado? – perguntei abrindo outra lata.<br />- Também, mas cara, eu to com tanto estresse que o meu chefe me deu uma semana de licença para descansar – Alberto se assentou no sofá, com um sorriso largo no rosto.<br />- Caralho, o que você fez para isso acontecer? Matou alguém? – perguntei, preparando-me para anotar as dicas.<br />- Ah, um viado chato, não é viado, na verdade to só ofendendo. É um gordinho puxa-saco do chefe. Fofoqueiro pra caralho, vocês precisam ver pra crer. Ele simplesmente é viciado em fofoca e intriga. Tem uísque pra mim aí, Fernando? – Alberto interrompeu seu próprio relato.<br />- Vem cá pegar, seu lixo! – Fernando estava estritamente irritado com a toalha de rosto violada sexualmente.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Alberto levantou-se e começou a preparar o seu drinque, enquanto continuava seu relato.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Então, o gordinho veio fofocar comigo. Ele sabia que eu não curtia fofoquinha. Quando ele veio falar do Gouveia, um office-boy gente boa pra caralho, eu o expulsei da minha sala na base do ponta-pé! – Alberto falava empolgado e em voz alta.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Eu dei muita risada, meio incrédulo. Ele voltou ao seu posto no sofá.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- O chefe sabia que o gordinho era um puxa-saco do caralho. Mas ele detectou um estresse cada vez maior nas minhas atitudes. Ele me chamou pra conversar. Eu pensei “santa merda, to fodido!”, mas ele reservadamente me propôs uma licença. Eu fiz cara de sofrido, e aceitei com um tom de relutância.<br />- Bem, acho que vou espancar o psicólogo do RH da minha empresa. É um moleque e esse é viadão mesmo. Gosta de intriga, vive puxando o saco dos diretores. É repugnante. E ainda acha que tem uma carreira brilhante pela frente – me exaltei erguendo a lata de cerveja.<br />- Pois então, dê uma boa surra nele, oras! – Fernando se intrometeu na conversa, voltando a sala, sentado na cadeira da escrivaninha.<br />- Vontade eu tenho. O problema é que aquele bando de judeus vai pirar e me mandar embora por justa causa. Eles já não vão com a minha cara. Tudo que eles querem é dançar Hinei Matov em cima do meu túmulo! – minha voz continuou exaltada.<br />- Então por que você não explode aquela merda, bem no estilo Hamas de vida? Hahaha! – Alberto propôs com deboche em cada letra que saía de sua boca.<br />- Vou mandar uma cabeça de porco embrulhada com a bandeira do Irã, lá pra casa dele no Higienópolis! – enfim assumi a mente de um palestino sanguinolento.<br />- Falando nisso, comi uma judia, há um tempo atrás. Estava curtindo um som no Milo e um amigo estava de olho numa branquelinha, feito neve, cara, vocês precisavam ver! Aí ele agitou uma amiga da garota para mim. Final da história: acabamos cada um num quarto. Olhei para o meu lado e estava uma garota linda que só vendo mesmo. Ela estava pelada, e a cama cheirava a lubrificação de camisinha – Fernando começava a se empolgar com seu relato – olhei pra baixo e eu estava pelado. Cutuquei o corpo dela e ela estava peladinha. Dei uma cutucada na buceta dela e ela apenas mexeu a boca e virou de costas para mim. Enfiei meu pau nela e nada dela se manifestar. Foi lindo. Gozei nela, foi bom demais. Tomara que tenha engravidado, aquela vaca.<br />- E seu amigo? – perguntei extremamente curioso.<br />- Porra, isso foi o mais engraçado. Ele saiu do quarto dele ao mesmo tempo em que eu saí do meu! Nos encontramos no corredor, só de cueca e camiseta e perguntamos quase ao mesmo tempo: onde a gente ta? Demos risada e fuçamos a geladeira das safadas. Pegamos um vinho e bebemos rapidamente. Comemos umas pizzas geladas, nos vestimos e fugimos. Queira Deus que eu tenha engravidado a vaca – Fernando fazia gestos simulando uma barriga grande.<br />- Caralho, isso que é uma boa história! – Alberto comentou em voz alta enquanto ia até a cozinha atender o interfone. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">A pizza havia chegado. Uma de peperoni e outra de frango com catupiry. Alberto foi com relutância buscar as pizzas. Eu me prontifiquei a pegar mais umas latas de cerveja. Alberto chegou e comemos em silêncio, mas rapidamente. Comemos quase tudo, deixando uma pizza de cada sabor sobrando. Guardamos na geladeira e nos concentramos em finalizar a garrafa de uísque.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Esse papo de judeu, já deu no saco. Vamos falar de outra coisa, sei lá. – Fernando propôs buscando nossos olhares, que estavam dispersos, observando os quadros.<br />- Cara, sabe o que os judeus têm mais que eu? – perguntou Alberto.<br />- Dinheiro, mulheres? Saúde? – respondi com um leve sorriso contornando minha boca.<br />- Não. Eles têm mais É QUE SE FODER! Hahahaha!<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">A risada foi generalizada. Fernando engasgou com a cerveja que bebia no momento da conclusão da piada. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Sabe como é que cabem vinte judeus num fusca? – comecei a minha piada.<br />- Sei lá, porra, como? – Fernando estava curioso e se inclinou esboçando uma risada.<br />- Coloque eles no cinzeiro! Hahahaha! – comecei minha gargalhada conduzida pelo meu estado alcoólico.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Novamente a risada foi generalizada. Fernando fazia sinal de que estava sem ar e começamos a rir mais ainda. Estávamos bêbados feito gambás alegres. Alberto nos alcançou heroicamente e já tinha seu bom e velho olho semicerrado de volta. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Eu queria gravar essa nossa conversa e mandar para meu chefe! Ele ia surtar! – exclamei enquanto finalizava mais uma lata de cerveja. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">A campainha tocou nesse momento. Logo após ouvimos batidas. Nos entreolhamos e todos ficaram com cara de surpresa. Fernando foi até a porta, verificar quem batia, através do olho mágico. De repente o Fernando virou bruscamente para nossa direção, e fez uma cara de maníaco frustrado. Certo ódio e traços de melancolia misturados em seus olhos. Eu saquei na hora: Aristeu, o crente filho de uma puta suja.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Abre a porta logo, Fernando! Quero ir ao banheiro! – Aristeu estava impaciente, dando pequenos passos para todas as direções possíveis, segurando seu pinto.<br />- Peraê! – Fernando voltou à porta e destrancou-a. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Aristeu olhou para o estado da sala, parou por um tempo e foi correndo até o banheiro. Aliviou-se e após lavar suas mãos, notou a ausência da toalha de rosto. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Fernando, cadê a toalha de rosto? – perguntou com a cara molhada e os olhos fechados.<br />- Sei lá, onde está? Você viu? – Fernando respondeu com deboche.<br />- Caramba, como vou secar meu rosto?<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Percebi que a noite seria longa.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Seque com a sua toalha de banho, Aristeu! – me intrometi, sugerindo uma solução rápida.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Aristeu me ignorou e continuou perguntando a Fernando sobre o paradeiro da toalha de rosto.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Aristeu, vá se foder, ta ouvindo?! Se não vou aí quebrar sua cara! – Fernando respondeu lá da cozinha, com voz irritada.<br />- Pra variar, a resposta de um animal. Meu Deus! – Aristeu retrucou com semblante arrogante.<br />- Vá para o seu quarto se não quiser morrer de câncer com a fumaça de nossos cigarros! Aliás, vá se foder! Por que você não está na vigília de oração da sua igreja? – Fernando queria conflito, queria briga.<br />- Foi remarcada para a próxima sexta-feira. O pastor está gripado. Hoje foi um culto normal mesmo.<br />- O pastor ta gripado? Por que Jesus não o curou, porra? – Fernando realmente queria treta.<br />- Ele é um ser humano e adoece como todo mundo. Ele não se autonomeou apóstolo de Cristo? Porra, o cara é um semideus!<br />- Você precisa ser mais tolerante, mais educado, Fernando. Deus tenha misericórdia de você – Aristeu nem se deu ao trabalho de olhar para mim ou para o Alberto.<br />- Enfia essa misericórdia no seu rabo, por favor!<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Aristeu se trancou em seu quarto para se trocar. Ligou a televisão na rede Gospel e ficou por um tempo em sua cama. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Bem, acho que dá pra gente continuar bebendo e trocando ideia. O que acham da gente ir naquele mercadinho vinte e quatro horas para comprar mais um uísque? – Fernando propôs com olhar malicioso.<br />- Eu voto em vodka – me manifestei.<br />- Eu também. Um pouco de vodka não fará mal, man – Alberto complementou minha ideia.<br />- Com todos os diabos, que assim seja – Fernando finalizou o pequeno concílio alcoólico.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Rumamos para a loja, fumando cigarros e falando sobre mulheres. Apenas Fernando estava mal vestido, com um short pequeno demais para os padrões masculinos do século vinte e um, e com um chinelo Rider. A camiseta era do Queen. Eu gostava muito de Queen. Nós três gostávamos.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Ao voltar para o apartamento, o porteiro me fuzilou com os olhos e eu bêbado retruquei levantando meu dedo do meio para ele. Ele olhou para frente e permaneceu parado, com postura ereta, como se estivesse vendo um coral de anjos em sua frente. Não entendi a reação covarde dele. Chegamos à porta do apartamento e uma surpresa: estava trancada. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Abre essa porra, Aristeu! Abre essa porra! PUTA QUE ME PARIU, EU VOU MATAR VOCÊ! – Fernando libertou seus demônios e gritava com ódio, com todo o ódio do mundo concentrado. Pensei que apenas os gritos dele derrubariam a porta.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">O interfone tocou no apartamento. Aristeu não foi atendê-lo.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Tá vendo? Já tem vizinho reclamando! Tá vendo, porra?! – Fernando se dirigia à gente apontando para a porta, completamente contrariado.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">De repente, como se um duende tivesse sussurrado em seu ouvido, Fernando se lembrou da chave reserva, que fica dentro da mangueira de incêndio do corredor. Enquanto Fernando destrancava a porta, podíamos ouvir o barulho do calcanhar de Aristeu cada vez mais distante. Com certeza estava correndo de volta para seu quarto. Quando entramos no apartamento, as luzes estavam apagadas, o computador desligado, e Aristeu havia comido as pizzas que sobraram. As cervejas estavam intactas. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Abra essa porra de porta, seu viado maldito! ABRAAA!<span style="mso-spacerun:yes"> </span>- Fernando iria matá-lo e eu não iria me meter.<span style="mso-spacerun:yes"> </span><o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Nunca gostei daqueles sujeitos que apartam brigas. Eu gosto de ver o circo pegar fogo. Alberto bebia outra lata de cerveja e servia uma dose de vodka. Pedi que servisse em meu copo também. Ele ligou pacientemente o computador e clicou no iTunes. Em seguida clicou em ‘Diamond Sea’ do Sonic Youth. A música tem quase vinte minutos de piração ruidosa, mas conta com uma linda canção. E ela começou linda, que harmonia maravilhosa. E Fernando continuava ensandecido junto à porta de Aristeu. E foi assim por trinta minutos, até a fera acalmar. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Uma hora você vai ter que me encarar, seu corno do caralho!<br />- Tenha uma ótima noite, Fernando! – Aristeu o provocou.<br />- FILHO DE UMA PUTA, EU VOU TE MATAR! – Fernando se inflamou novamente – É melhor virar politeísta, porque um só deus não vai te livrar de mim, seu crente sujo, maldito!<br />- Essa foi boa, hahaha! – comentei, tentando descontrair o Alberto que parecia um pouco tenso.<br />- Foi realmente boa, Nelson. Só não quero ver o que o Fernando vai fazer com o crente-rabo-quente!<br />- Orei muito por você hoje, Fernando. Deus vai te transformar – Aristeu novamente lançava sua arma espiritual, a intercessão não solicitada, a oração que ninguém pediu.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Enfim Fernando voltou à sala e sentou no sofá. Servi uma dose dupla de vodka para o coitado que estava uma pilha de nervos. Ele bebeu lentamente, porém sem interrupção. Matou o copo todo. Acendeu um cigarro.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Sabe o que acho? O Aristeu é como noventa e nove por cento dos crentes que existem: se fazem de santos, decoram alguns versículos para autodefesa e vão a igreja pra arranjar namoradinha. Eles casam cedo pra poder transar logo, se bem que tem muita crente-rabo-quente que dá o cu pra não perder a virgindade na buceta. Eu já comi mulher crente assim! Regulava aquela buceta velha mas deixava eu gozar no rabo dela! Olha só que cínica do inferno!<br />- Acho que todos nós comemos uma crente-rabo-quente – dei o meu testemunho relâmpago.<br />- Época boa era quando os crentes não estavam na mídia, na boca do povo. Eles eram mais puros, falavam mais de Deus e nem pensavam em entrar na política. Agora eles querem adequar a igreja deles com o mundo! Porra, deixe a gente em paz! – Fernando continuou.<br />- Já ouviram o rock gospel? – perguntou Alberto – totalmente sem referência. Rock feijão com arroz, sem graça, sem inovação. É só pra pegar os trouxas que se converteram e os deixar interessados na igreja. Vivem dizendo: “vamos pegar o rock que era algo para o diabo e dedicá-lo a Deus!”, porra, por que eles não pegam o ramo pornográfico e não o dedicam a Deus também? Já pensou? Suruba Divina 2! Hahahaha!<br />- Eles podiam criar os atores pornôs de Cristo, o que acham? Hahahaha! – Fernando finalmente se descontraiu.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Aristeu saiu de seu quarto enfurecido com os nossos comentários. Esqueceu do ódio de Fernando e do risco de morte que estava correndo.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Isso! Parabéns! – Aristeu batia palmas com cara de impressionado – Continuem a usar o nome de Deus em vão!<br />- Ah! Mas só me faltava essa! Seu filho de uma puta! – Fernando se ergueu para espancá-lo, mas Alberto e eu o seguramos. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Eu realmente não gosto de sujeitos que apartam brigas, mas queria ouvir o que ele tinha a dizer.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Continue, Aristeu, seu bosta – finalmente o insultei.<br />- Sem ofensas, Nelson, sem ofensas. Vocês usam o nome de Deus em vão e o próprio Senhor disse que não inocentaria quem fizesse isso. Vocês não temem a ira de Deus?<br />- Vamos lá, Aristeu... Me responda:<span style="mso-spacerun:yes"> </span>qual é o nome do seu deus? – perguntei com olhar desafiador.<br />- É Deus, mas pode ser Senhor, Todo-Poderoso, Senhor dos Exércitos... Uma infinidade de nomes.<br />- Cacete, mas ele não tem nome? Os hebreus foram originais, hein? Os indianos têm milhões de deuses e todos têm um nome. Os babilônicos tinham seus deuses, todos identificados.<br />- Mas existe um nome que está acima de todos os nomes! Jesus! Jesus Cristo! – Aristeu se entusiasmou e ergueu o olhar e os braços de forma teatral.<br />- Ué, mas você não é monoteísta? Não serve a um deus apenas? Por que tem dois nomes? Ou tantos nomes, como você citou?<br />- São três pessoas numa só, Nelson. Você sabe disso!<br />- Não, eu não sei. Às vezes você ora a Deus em nome de Jesus. Às vezes ora a Jesus em nome de Jesus. Às vezes você ora a Deus em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Mas o Espírito Santo só é a voz da consciência, nunca é invocado ou adorado. Por que essa confusão toda?<br />- Não vejo confusão nenhuma. É apenas uma concepção de Deus diferente das outras – Aristeu havia abandonado seu entusiasmo.<br />- Mas esse Deus que na verdade é uma fusão de três pessoas, é meio dividido, não? O Pai manda, o Filho obedece, o Espírito Santo obedece. Mas no final das contas nem o Filho, nem o Espírito Santo foram criados pelo Pai, sempre existiram junto a Deus, certo? – eu estava chegando ao ponto que queria.<br />- Deus é eterno, ninguém o criou. Isso é óbvio – Aristeu mostrou desprezo em sua resposta.<br />- Então quem criou a hierarquia entre pai e filho lá no céu? Alguém é mais forte pra mandar naquela porra, não é?<br />- Não chame o céu de porra.<br />- Mas alguém manda no céu, né? Então essa trindade é mais confusa do que a gente imagina!<br />- Não chame o céu de porra – repetiu com o olhar soturno e disperso.<br />- Mas eu já parei. Quem repete frase é porque perdeu a razão, Aristeu – Alberto se infiltrou na conversa.<br />- Você não foi chamado na conversa, Alberto – Aristeu continuou com o mesmo olhar.<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Fernando não se continha e sussurrava a toda hora que iria acertá-lo na cara, pra desmaiá-lo. Aristeu ainda tinha marcas de uma surra que tomou de seu companheiro de apartamento, após uma discussão que envolvia o sangue de Jesus, a besta do Apocalipse e uma conta atrasada da internet. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- E aí, Aristeu. Afinal, como você pede pra gente não usar o nome de Deus em vão se você nem sabe quem é quem no céu? – retomei a discussão de forma bem civilizada.<br />- Por que você me importuna com tantas perguntas idiotas? Vocês não vão me desvirtuar do caminho de Deus, nunca! – Aristeu claramente sem razão apelava para o emocional.<br />- Caralho, o caso dele é grave. Catarata espiritual, man! – Alberto constatou rapidamente a doença de Aristeu.<br />- Vocês é que estão cegos. O pecado cegou seus olhos para a verdade. A sabedoria de Deus é loucura para o mundo! – Aristeu usou mais um chavão pré-fabricado.<br />- Eu vou pegar ele de porrada agora! – Fernando se levantou novamente e jogou a vodka de seu copo no rosto do crente acuado.<br />- Isso! Por amor a Cristo, eu sofro essas afrontas! Glória a Deus! – Aristeu ergueu suas mãos e falava algo com voz inaudível, como se fizesse alguma prece secreta.<br />- Isso se chama lavagem cerebral, pessoal. O cara ouviu tantas mentiras, durante tanto tempo, que não consegue se livrar, não consegue raciocinar, mesmo com tantos argumentos lógicos. Ele é um maldito caso perdido – acendi um cigarro fazendo sinal negativo com a cabeça.<br />- Ao menos ele já ta os miolos fodidos. Tenho um primo que é um devasso desgraçado, vive traindo a namorada, fala um monte de merda e participa de uma igreja, apresenta uns programas evangélicos para jovens no canal deles. Mas sabe por que ele não sai da igreja? Por que só consegue status lá. Às vezes ele sai da igreja, mas volta, porque tem um bom status lá, ele se acostumou àquele ambiente. Mas eu nunca vi nenhuma obra cristã dele – Alberto falava enquanto buscava o maço de cigarros em sua jaqueta.<br />- Eu conheço esses tipos... Acho que todo mundo conhece – complementei.<br />- Vocês não falam nada com nada. Vou orar por vocês agora...<br />- Ah, mas não vai mesmo! – Fernando agarrou o pijama de Aristeu e o puxou.<br />- Deixa, Fernando! Deixa ele ter seus minutos de atenção. Eu já saquei a dele! – supliquei ao meu amigo, que largou o pijama de Aristeu.<br />- Senhor Deus, obrigado por mais esse momento onde a luz resplandece sobre as trevas. Obrigado pela vida de cada um que está nessa sala. Peço que o Senhor não considere as palavras deles, palavras de blasfêmia, de afronta ao Criador. Abra os olhos deles para a tua verdade que é a única que salva e liberta. Liberte-os, Pai, de toda opressão satânica, de todo mau costume, de todos os seus caminhos errados. Assim eu oro, em nome do Pai...<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">Fernando interrompeu a oração acertando um murro na boca de Aristeu, que estava de olhos fechados e se mantinha bem concentrado em sua intercessão. Desabou no chão e desmaiou como uma donzela sonolenta. O sangue vertido ganhava cada vez mais território no chão do apartamento. Eu ainda fui até Aristeu para verificar se o mesmo estava vivo. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:11.5pt;line-height:115%;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif"">- Que vontade de incendiar esse corpo desgraçado! Filho da puta metido à mártir cristão! Tudo é um teatro, tudo é como na época dos apóstolos, quando o pau comia solto. Porra, se ele não falasse tanta merda, eu o deixaria em paz. Mas ele insiste em querer me converter! – Fernando falava cabisbaixo, olhando para Aristeu desmaiado e ensanguentado.<br />- Precisamos mudar para a Europa, meu amigo. A cada ano que passa, o número de crentes-rabo-quente está aumentando. Você já imaginou essas igrejas escandalosas dominando nosso país? – perguntei enquanto repousava minha mão em seu ombro.<br />- Enquanto houver razão e bons argumentos, quero ver quem se atreve a me evangelizar, Nelson.<o:p></o:p></span></p>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-85385440366336312072010-07-16T21:45:00.009-03:002010-07-16T22:25:31.487-03:00Uma Foda Empatada<p class="MsoNormal"><span class="Apple-style-span" style="font-family:'Trebuchet MS', sans-serif;font-size:130%;"><span class="Apple-style-span" style=" line-height: 17px;font-size:15px;"></span></span></p><span class="Apple-style-span" style="font-family:'Trebuchet MS', sans-serif;font-size:130%;"><p class="MsoNormal"></p><p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">São Paulo é uma maldita cidade tropical. O calor é só um ingrediente picante dentro do caldeirão infernal que essa selva falida reúne. Poluição, ar seco, muito barulho e cheiro de sovaco sofrido. Mas quando o frio assalta o clima, ele vem como um arrastão carioca. Se na segunda-feira você praguejou contra o calor, pode ser pego de surpresa no dia seguinte ao acordar. Você acorda inconsciente de madrugada atrás de um edredom ou cobertor para aliviar a brisa gelada que se abriga no escuro. Hoje é um dia desses. Acordei e já era uma da tarde, com o nariz gelado e tossindo ainda mais que o comum. Quando fui dar a mijada matinal, mal encontrei meu pau entre os pentelhos e adivinhem só: errei a mira e acabei molhando o chão. Toquei a descarga e fui procurar um pano de chão, mas lembrei que todos estavam deploráveis e jogados na lavanderia, esperando a minha misericórdia, quando eu os lavaria. Bem, após todo o trabalho desgraçado para limpar o banheiro, olhei para o calendário na cozinha e agradeci aos céus por hoje ser primeiro de maio, o dia internacional do trabalho. Sempre me perguntei o motivo dos trabalhadores descansarem justo no dia que homenageamos o labor. Hoje eu não me questiono, apenas relaxo. Quando faz muito frio, eu pareço um maldito inglês das músicas dos Kinks. Preguiçoso, bêbado e rejeitado. E para mim, o modo mais prazeroso de descanso é me recolher em meus pensamentos, bebendo até adormecer. Geralmente escolho um repertório triste para o frio e hoje não foi diferente. Os Kinks, que para mim foram melhores que os Beatles e os Rolling Stones, lideraram a minha parada pessoal de sucesso. Assim como um marujo britânico e barbudo em algum bar de má fama na zona portuária, me postei a beber e raciocinar sobre temas diversos. Fiquei juntando peças da minha vida, mas vi que o quebra-cabeça estava bem incompleto por sinal. ‘Sunny Afternoon’ começou a tocar e me identifiquei totalmente com a letra. O sentimento de perda e falta de orientação me assolou e assombrou. Acendi um cigarro e estou aqui estático:<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><b><i><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">My girlfriend run off with my card<br />And gone back to her ma’ and pa’<br />Telling tales of drunkenness and cruelty</span></span></i></b><i><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;"><br /><br /></span></span></i><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Tá certo que a Bárbara não fugiu com meu cartão, mas eu realmente não sei o que ela vai dizer aos pais sobre mim. Talvez algum papo sobre eu ser um grande bêbado, mas cruel? Talvez eu seja bem cruel comigo mesmo, mas tenho sido um bom amante. Mas não um bom companheiro, seja lá o que isso signifique. Eu sempre canso as minhas namoradas, eu sempre sou acusado de não ter ambições, mas com todos os diabos, eu não nasci para ambicionar, para passar por cima das pessoas em prol de meus objetivos. Sei lá, acho que não me vendi para o capeta e pago o preço com essa vida pacata e miserável. As mulheres são realmente farinha do mesmo saco. Se um homem não pode garantir estabilidade financeira, a mulher descamba para outro. Malditas sarnas do demônio. Estou bem aqui sozinho, aliás, acho que já estou começando a divagar demais. Estou bêbado.<br /><br />O telefone tocou. Era o Maulin, um bom camarada porém muito estressado. Ele chegou ontem lá pelas oito da noite e só saiu às duas da madrugada após ser enxotado por mim, segundo seu relato. Quando bebo acima do suportável, tenho o péssimo costume de expulsar as pessoas de minha casa. Acredito que a Bárbara irá relatar isso aos pais dela. Que ela vá para o inferno, antes que eu me esqueça. Maulin vai aparecer mais tarde pra gente terminar as duas caixas de cerveja que sobraram aqui. Isso se eu não acabar com tudo antes.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">--------------------------------------------------------------------<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Nelson foi despertado pelo telefone que tinha um toque muito alto. Pulou do sofá de dois lugares completamente manchado por todos os líquidos imagináveis e correu para atender a chamada.<br /><br />- Pois não – Nelson atendeu o telefone tentando desenrolar o fio do aparelho.<br />- Nelson, é o Maulin. Mudança de planos. Temos duas opções: ou vamos ao Tchê jogar uma sinuca e beber ou você vem pra cá.<br />- Pra cá onde?<br />- Meu apê. A Agnes não está se sentindo muito bem, está meio tonta. Nem vai rolar deixá-la aqui sozinha. E ela disse que prefere ir ao Tchê a ir na sua casa.<br />- Você não engravidou a desgraçada, né?<br />- Pelo amor de Deus, Nelson, vai se foder... Você sabe que não existe nada entre eu e aquela drogada.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Agnes era uma mulher alta, cabelos ondulados e castanhos, assim como eram seus olhos. Trinta e sete anos, assim como era o tamanho do pé. A cara era de um desgaste descomunal, graças a anos de frustrações e bebedeiras como escapatória. Havia largado as drogas, mas todas as substâncias químicas haviam comprometido seu modo de pensar e reagir a certos imprevistos da vida. Ela estava rumando para a plataforma da loucura e Maulin era o único ser que se locomovia na Terra que podia suportá-la, dando moradia a ela.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Sei. Bem, essa Agnes é fresquinha, hein? Só porque aqui é um pouco sujo? E não quero ir ao Tchê. Não dá mais pra fumar lá, e você sabe que sinuca e rock sem cigarro não rola. Maldito José Serra e essa lei anti-fumo. Aguarde a lei anti-sexo, man. Aguarde! – Nelson levemente embriagado sempre deixava aflorar seu lado esquerdista.<br />- Ei, ei! Não vai começar com essas porras de discursos! E então? Vem pra cá?<br />- Tá certo. Deixa eu me recuperar dessa dorzinha de cabeça e já saio daqui. Inté.<br />- Inté.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;"> Nelson foi até a cozinha para comer algo e olhou para as caixas de cerveja. Pensou que teria que levá-las na mão. Praguejou um pouco e cortou um pedaço da peça de queijo que estava na geladeira. Abriu um pão francês e ao passar manteiga nele, pensou que deveria ter colocado o queijo dentro. Bocejou e comeu o pão com um pouco de café velho esquentado no micro-ondas. Após a pequena refeição, trocou de calça e colocou uma camisa xadrez. Amarrou o cadarço do tênis e foi até a cozinha para pegar as caixas de cerveja. Flagrou uma barata perto do fogão e pulou em cima dela, fazendo o sangue branco e viscoso do inseto se espalhar por um longo raio de alcance. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Deus eterno! Maldita barata desgraçada! – praguejou Nelson enquanto pegava um pano de chão, sujo e deplorável para variar. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Nelson limpou a carnificina e jogou o pano no lixo. Lavou as mãos e colocou as caixas de cerveja a frente do elevador. Trancou a porta e desceu até o térreo.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">--------------------------------------------------------------------</span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Eu não reclamo dessa vida que tenho. Eu simplesmente trabalho para pagar esses momentos. Não vejo beleza nenhuma na vida de família. Convidar outros casais e seus filhos para um churrasco em minha casa. Eu não consigo me colocar no lugar desses homens. Eu não me imagino com um filho sequer, tendo que educá-lo para a vida. Provavelmente um filho meu se transformaria em um tipo de maníaco, um bandido, um cafajeste odiado pelas mulheres. A Bárbara não queria ter filhos, era isso que eu gostava nela. Mas após alguns meses de relacionamento, tenho certeza de que, se despertasse nela um sentimento materno, com certeza eu não seria o eleito para plantar espermatozóides alucinados por um óvulo dela. Eu lhes digo: ela terminou o namoro com uma repulsa tão grande em relação a mim, que tudo o que eu fazia despertava ódio nela. O meu jeito de andar, o meu jeito de fumar um cigarro, o meu jeito de contar piadas. Ela me desprezou e com certeza vai me esquecer em um par de semanas. Malditas mulheres. Se aquele lance de Adão e Eva fosse verdade, as desgraçadas então deveriam ser amaldiçoadas. Era pra serem nossas auxiliares e agora querem tomar nosso lugar de líderes. Olha, pra ser sincero eu gosto muito das mulheres, mas acho que tenho um sério problema com elas. Acho que elas pedem muito e eu tenho pouco a oferecer. Os amigos são diferentes. Eles querem beber com alguém, falar sobre a vida com alguém, eles querem debochar de alguém e essas coisas eu tenho de sobra a oferecer. Agora se me pedirem dinheiro, será o mesmo que pedir alguma esmola para um mendigo. Simplesmente não faz sentido pedir dinheiro para mim. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Malditas caixas de cerveja, o plástico que as envolve está rasgando, vou ter que empilhá-las, só que preciso de uma mão livre para fumar.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Acho legal o apartamento do Maulin. Tem uma pequena sacada para fumar e olhar para o céu. E o Maulin é um cara esperto pra caralho. Mas o trabalho de gerente comercial está deixando ele de cabelos em pé. Está muito estressado, se queixando muito de tudo, e ainda tem a Agnes para tirá-lo do sério. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Eu não entendo o porquê daquele miserável dar abrigo a ela. A mulher é um furacão de problemas. Nos anos noventa ela era uma porraloca que vivia de bar em bar, de balada em balada causando problemas, perturbando as pessoas com sua voz fina e levemente fanha. Sua presença sempre causava transtornos, mas como na vida nada é unanimidade, sempre existiam pessoas que andavam com ela, se drogavam com ela e bebiam com ela. Ela esteve presa algumas vezes, esteve em clínicas de reabilitação também, enfim, era a palavra problema encarnada. Ela finalmente saiu dessa vida porque envelheceu. Um dia acordou e sentiu que brincar de ser jovem era ridículo. Quando olhou ao seu redor e só viu amigos de vinte e poucos anos para conversar, Agnes sentiu falta de pessoas experientes, pessoas com conteúdo. À medida que você envelhece, é natural perceber a falta de malandragem nas pessoas mais novas. E ela abandonou seus círculos juvenis de amizade e falhou miseravelmente em ingressar em grupos mais maduros de amigos. Ela era uma eterna garota de vinte-e-poucos-anos e sendo dessa forma, vivia criando intrigas infantis com adultos de cabeça feita. Hoje em dia, ela rejeita seus amiguinhos e é rejeitada por seus amigões. Maulin é o único homem maduro que de alguma forma misteriosa suporta seu jeito. Eu tenho quase certeza de que Agnes tem uma queda fodida por ele, mas ainda careço de provas mais concretas.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">--------------------------------------------------------------------</span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Nelson chegou à porta do prédio e falou com o porteiro através do interfone. Após a confirmação com Maulin, a porta se abriu. Nelson o cumprimentou mas o velho porteiro nem virou o rosto. Ele sabia que a noite seria de perturbação e reclamações dos apartamentos ao redor de Maulin. Subiu o elevador e chegou à porta do apartamento. O prédio tinha quatro apartamentos por andar e era muito bem situado, ficando em Perdizes. Tocou a campainha.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Entra aê, porra! – era Maulin gritando da cozinha. Ele preparava alguns frios para serem petiscados.<br />- Maulin, seu bosta, a porta está trancada!<br />- Agnes, porra, você trancou a porta! Que mania do caralho! Vai lá abrir!<br />- Já vou! – Agnes enrolava uma toalha em seus cabelos molhados. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Depois de três minutos, Nelson já havia aberto uma lata de cerveja quente e havia acendido um cigarro. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Olá Nelson! – Agnes simulava uma voz aparentemente despretensiosa e esnobe, com um ar de leve superioridade e pouco entusiasmo, como se tivesse mil coisas a fazer.<br />- Opa, como vão as coisas? – Nelson deu um rápido beijo no rosto dela e seguiu direto pela cozinha.<br />- E esse cigarro aceso aí, Nelson? Velho, vão reclamar logo, logo, por fumar no corredor – Maulin despejava orégano nos cubos de queijo cortados.<br />- Se demorasse mais dois minutos, eu cagava na sua porta, seu lixo! – Nelson deu um abraço no amigo – Vou colocar as latas no congelador.<br />- Deixe na geladeira, hoje ta frio pra caramba.<br />- Você parece um australiano, man. Beber cerveja na temperatura ambiente? Eu vou deixar algumas latinhas no freezer, só pra garantir. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Maulin tinha um computador na sala, ligado ao seu aparelho de som e um jazz no mínimo alegre tocava freneticamente. Nelson se acomodou no sofá e acendeu outro cigarro. Reclamou da demora de Maulin e perguntou a Agnes se estava viva. Não recebeu resposta. De repente aquele jazz alegre se transformou em uma forma psicodélica e progressiva de tocar instrumentos. A bateria era tribal, experimental, era atraente como uma chama. Nelson ficou paralisado durante quatorze minutos, que era a duração da música. Após retumbantes batidas, insinuantes toques de saxofone e até ensandecidas dedadas em harpas, ele pulou do sofá e despertou de seu transe.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Maulin! Que som é esse, pelo amor de Deus?!<br />- Art Blakey! – gritou Maulin com a boca cheia de salame.<br />- E ele toca exatamente o que?<br />- A bateria. A banda chama The Jazz Messengers.<br />- Puta que pariu! Isso que é som! – Nelson já havia se levantado e se postado junto à porta da cozinha.<br />- Esse cara é sensacional mesmo. Muitos bateristas do rock têm ele como referência. O cara é foda.<br />- Depois me lembre de te mostrar um músico etíope que achei. O cara é demais, de verdade. Música bem feita, sem frescura. Chama-se Mulatu Astatke.<br />- Caralho, onde você encontra essas coisas?<br />- Nesse caso foi num filme.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Os dois se juntaram na sala e começaram a discutir sobre música. À medida que as bebidas eram consumidas, as conversas começavam a descambar para um lado mais pessoal. Agnes se assentou no tapete da sala e ficou cutucando a unha do dedão do pé. A presença dela não os inibiu e eles continuaram falando mal de mulheres e citando suas bocetas, bundas e peitos. Ela apenas sorria, em silêncio, concentrada em suas unhas.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Velho, a Clara era muito gorda! Como você conseguiu meter naquela bunda? – Maulin dava risadas, exibindo dentes cheios de casca de amendoim.<br />- Meter na bunda era fácil, o foda era meter naquela boceta velha. Mas sabe aquele papo de que as gordinhas têm mais tesão? Pura verdade. A garota era insaciável. E chupa muito bem por sinal.<br />- Olha, ela pode até me prometer orgasmos múltiplos com uma boa chupada, mas eu passo essa! Ela é muito gorda!<br />- Agora você me sentir mal – Nelson olhou pra baixo fazendo cara de menor abandonado.<br />- Cara, que Deus tenha misericórdia do teu pau, porque você não tem! Hahaha!<br />- Já chega desse papo. Ou quer que eu te lembre da Miss Jibóia?<br />- Do que você ta falando, Nelson. Você já comeu traveco, porra – Maulin abocanhou mais alguns amendoins.<br />- Mas eu não escondo isso de ninguém. Agora você estava se gabando de ter pego a melhor da balada, parecia uma miss Brasil e acabou sendo enrabado! Hahahaha!<br />- Ela não me enrabou porra nenhuma, Nelson! Corta essa! Ela tentou, mas não conseguiu – Maulin falava enquanto se levantava para buscar mais uma cerveja.<br />- Sei, sei. Miss Jibóia! Hahaha!<br />- Deixa ele, Nelson – Agnes se intrometeu.<br />- Você fica na sua, coração – e apontou o dedo para ela com ar de reprovação.<br />- Seu grosso, comedor de gordas – sussurrou com sorriso sarcástico.<br />- É melhor você ficar quietinha se não você vai começar a me chamar de comedor de loucas também.<br />- Você tem pau pequeno, Nelson. Por isso que come traveco.<br />- E o que tem a ver o cu com as calças?<br />- Você não me engana, seu pica mole.<br />- Mais uma palavra e além de comer gordas e travecos, vou comer seu cuzinho. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Agnes hesitou um pouco e considerou por alguns segundos o fato de Nelson poder cumprir sua ameaça. Ele estava bêbado e poderia fazer qualquer loucura. Ela também estava bêbada e começou a rir. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Vai tomar no olho do seu cu, seu cuzão.<br />- Agora você vai ver!<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Nelson se jogou em Agnes e enfiou a mão em sua calça de lycra. Ela dava pequenas risadinhas até quando ele conseguiu dar uma dedada no cu dela. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Chega, chega! Eu fico calada! Hahahaha!<br />- Esse é um aviso, coração! Da próxima vez eu chupo seu rabo e meto nele – o tom de Nelson foi sensual e o seu olhar, maligno.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Maulin estava cagando enquanto essa pequena putaria acontecia. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- E a Bárbara, cadê ela? – Maulin perguntou enquanto enxugava suas mãos na camiseta.<br />- É, a Bárbara já era. Terminamos ontem. Ela é uma puta ingrata! – Nelson estava claramente alterado pelas cervejas.<br />- Bem, sei lá, é a vida, amigão. Elas sempre nos dão uma punhalada pelas costas – Maulin se juntava ao time dos bêbados e deixava a boca falar por si só.<br />- Vocês dois são uns desgraçados! A Bárbara só queria uma vida normal, ela não pode ser culpada por querer isso! – Agnes novamente se intrometia na conversa.<br />- Maulin, diz pra ela que eu vou comer o cu dela, diz! Diz pra ela, porra!<br />- Calma Nelson, calma Agnes. Vocês dois são mesmo uns putos, derrubaram a cerveja no tapete! – Maulin se levantou e rumou até a cozinha.<br />- Sua vaca, hoje eu vou gozar no seu rabo, pode escrever o que to dizendo - Nelson falava quase sem som.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Agnes apenas olhava para Nelson com um olhar levemente vesgo, um sorriso de canto e fazendo sinal positivo com a cabeça. Maulin tentou absorver o máximo de cerveja com o pano e voltou para a lavanderia. Agnes levantou-se e foi até o computador para trocar de música. ‘Evil Woman’ do Black Sabbath começou a rolar e Nelson captando a mensagem que Agnes tentou passar pra ele, a juntou nos braços.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Você não ta mais pra crazy woman do que evil woman, sua puta. Hoje eu vou te possuir, ta me ouvindo?<br />- Vai comer ela, Nelson? – Maulin novamente chegou secando as mãos úmidas em sua camiseta.<br />- Se ela não sossegar o facho dela, vou dar surra de pau mole nela - dizendo isso, Nelson soltou Agnes e a empurrou rumo ao sofá.<br />- Só pode ser de pau mole mesmo, seu comedor de baleias! Hahaha!<br />- Sai daqui, sua vaca! – Nelson apontou para a porta, a expulsando do apartamento.<br />- Ei Nelson, aqui não é sua casa! Se quiser, você saia fora! – Maulin se exaltou lembrando da noite anterior quando foi enxotado bêbado do apartamento do amigo.<br />- Eu ficarei, pelo bem da nação! – respondeu Nelson com a mão erguida, apontando para cima, como se estivesse declarando a independência de algum país.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Os ânimos se acalmaram e eles voltaram a conversar civilizadamente. Maulin acendeu um charuto pra ele e pra Nelson e disse para Agnes que aquilo é coisa pra homem. Agnes contrariada foi trocar de música.<br /><br />- Porra Agnes! Não dá pra ouvir uma música por inteiro? Tem que ficar trocando, trocando? Cacete! – Nelson reclamou com o charuto deslizando por sua boca.<br />- Juro que é a última que coloco, sério!<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Ela clicou na música e correu para a cozinha. ‘Ballade de Melody Nelson’ começou com a voz de Serge Gainsbourg, o grande ídolo de Nelson. O ritmo cheio de suingue da guitarra o fez rir. Prontamente ele se pôs em pé e foi até Agnes. Na cozinha, ela já o esperava com o mesmo sorriso diabólico e sedutor que ela tanto utilizara em seus trinta e tantos anos de vida. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Você é foda, mulher. Vem aqui – Nelson a pegou pelo cabelo e lhe deu um beijo na boca.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">A língua de Agnes parecia uma serpente enlouquecida, longa, lisa e intensa. Nelson sentia dificuldade em acompanhar os movimentos da língua dela e para tentar quebrar o gelo, enfio a mão novamente dentro de sua calça apertada. Desta vez foi pela frente, e se ela era frenética com a língua, ele iria mostrar sua destreza com os dedos. Maulin dava risada com ‘En Melody’, a canção que se iniciava. Nela gemidos e risadas femininas serpenteavam pelas ondas sonoras. Até o momento que a mulher, na metade da música, dá uma risada longa e fanha.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Ah, que putaria de som... – Maulin balbuciava com o charuto todo babado em sua boca. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">A atmosfera que se formou com o som de Gainsbourg apenas atiçou o desejo do casal na cozinha. Soltaram todos os seus demônios, como todo humano faz quando está bêbado. Nelson a virou para a pia e abaixou sua calça. Quando puxou a calcinha, ela rosnou.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- O Maulin não vai gostar disso!<br />- Corta essa, sua vaca! Agora você vai dar gostoso pra mim. Você ta gostando, olha como ta molhadinha – Nelson esfregava seu dedo médio no clitóris dela.<br />- Não, Nelson, não! Pára de esfregar esse pau na minha bunda!<br />- Filha de uma puta! – Nelson guardou seu pau e levantou a calça jeans surrada.<br />- Ei, você vai pra onde?<br />- Vou cagar e talvez bater uma punheta pra que meus bagos não fiquem doendo, sua vaca – respondeu enquanto acendia um cigarro e se dirigia ao banheiro.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">--------------------------------------------------------------------</span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Maldita vaca. Maldita seja. Agora meu pau ta todo melado e nem consegui gozar. Eu detesto beber por isso, sempre acontece! Acabo comendo qualquer lixo que apareça, enfio em qualquer buraco. Vaca do caralho! Onde eu que eu tava com a cabeça? Eu nem sei onde essa boceta passou. A Agnes parece uma farofa de churrasco, todo mundo passa a linguiça, e eu metendo nela sem camisinha... Nelson seu cabaço do caralho! Deixa eu lavar essa merda.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">--------------------------------------------------------------------</span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Nelson saiu do banheiro sem cagar e sem bater punheta. Ficou intrigado demais com as palavras AIDS, Cazuza, Freddie Mercury, gonorréia, sífilis, cancro mole e duro. Lavou seu pau três vezes, esfregando com afinco. Chegou na sala e viu Maulin adormecido no chão, encostado no sofá. Agnes estava só de calcinha e de bruços, apagada em cima do mesmo sofá. Nelson mandou eles para o inferno e tirou os sapatos e rumou para o quarto de Maulin. Avistou o mimo de seu amigo, uma pequena adega eletrônica cheia de garrafas caras de vinho. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Um dia eu quebro essa merda, Maulin, e bebo tudo – Nelson desmoronou na cama confortável do amigo. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Quando Nelson adormeceu, era quatro da manhã. Quando acordou, já era sete e meia, mais ou menos. Foi mijar, se dirigindo ao banheiro com passos lentos, apertando sua cabeça devido à ressaca assombrosa. Ao sacar seu membro, verificou uma textura diferente. Era a única palavra que ele não lembrou na hora em que tentara cagar há horas atrás. Verrugas. Eram três pequenas verrugas que nasceram bem distribuídas pela extensão de seu pau. Ele suou frio e esqueceu de mijar. Ficou tentando arrancá-las num ato de extremo desespero. Foi em vão, elas permaneciam firmes e nojentas. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Caralho, mas nasceram tão rápido! Saiam suas malditas! – Nelson riscava as anomalias com força.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Ele lembrou de que ia mijar. Manteve a calma, respirou fundo e mijou uma urina clara e abundante. Tocou a descarga porém não levantou sua calça, nem a cueca. Caminhou friamente até a sala e se assentou ao lado de Agnes que continuava apagada, agora dormindo de lado. Maulin havia despencado e dormia em posição fetal, aquecido e completamente entregue ao sono. Era sábado, não havia preocupação com o trabalho. Nelson iniciou uma masturbação descontraída, relaxante. Pensava em Bárbara, sua ex-namorada, uma descendente de italianos, de cabelos vermelhos e ondulados, seios fartos, bunda arredondada e sem excessos. Ela tinha um rosto com traços fortes, exatamente como as mulheres daquele canto da Europa. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Ah Bárbara, só bastou você sair da minha vida para eu começar a fazer merda... – resmungou enquanto pensava na cena que mais o marcou no curto relacionamento, quando Bárbara cavalgava em seu pau, gritando como uma louca. <o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Nelson aumentou a intensidade de seus movimentos e começou a sentir o esperma chegar. A cabeça de seu pau estava roxa, tamanha era a força com que Nelson o apertava. Ele soltava pequenos gemidos e de repente levantou se inclinou sobre Agnes, levando seu pau até o rosto dela. Gozou fartamente, toda a porra acumulada da foda empatada da madrugada. Sêmen jorrava incessantemente entre o cabelo e o ouvido de Agnes. Ela não se mexeu, não manifestou um sinal de vida sequer. Maulin permanecia como um feto morto num útero quente. Nelson estendeu sua ejaculação através de boa parte do cabelo dela. Agnes sonhava com campos verdejantes, com vacas, com leite. E não se mexeu nem um pouco.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">- Sua vadia suja. Se eu peguei AIDS, eu te mato... – Nelson sussurrou lentamente no ouvido melado de Agnes.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="line-height:115%;Trebuchet MS","sans-serif"font-family:";"><span class="Apple-style-span" style="font-size:medium;">Limpou seu pau na calça de lycra dela, que jazia em cima de uma cadeira. Levantou sua cueca, sua calça e a abotoou. Sacou um Lucky Strike e o acendeu. Parou para pensar um pouco, na sacada do apartamento. Terminou seu cigarro e amassou a gimba no cinzeiro. Pegou o cinzeiro e o virou em cima da cabeça de Agnes, despejando muita cinza e gimbas amassadas. Nelson apenas deu uma risada, balançando a cabeça lentamente e negativamente. Pegou sua caixa de cigarro, seu celular e deixou o apartamento. O porteiro o olhou com reprovação novamente, mas estava feliz porque seu turno estava por terminar. Nelson apenas ganhou a rua do bairro de Perdizes. Seus olhos se fecharam pois o sol estava livre e bem vivo no céu, porém arremessava raios fracos naquela manhã fria. Ele sorriu porém logo fechou o seu semblante.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span class="Apple-style-span" style=" line-height: 20px; font-size:medium;">-------------------------------------------------------------------</span></p><p class="MsoNormal"><span class="Apple-style-span" style=" line-height: 20px; font-size:medium;">Preciso urgentemente fazer uns exames. Todos os que forem precisos. Deus do céu, um dia meu pau vai cair, com tanta cagada que faço. Como sou estúpido! Espero que o Maulin não fique chateado com o novo visual daquela vadia. E se ele ficar magoado, pau no rabo dele. Preciso de um croissant de presunto e queijo e um café espresso, daqueles bem fortes. E preciso comprar mais cigarro. Puta que pariu, onde acho uma padaria nessa merda de lugar?</span></p><p></p></span><p></p>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-85378233883105624372010-05-24T21:55:00.002-03:002010-05-24T22:01:30.335-03:00A Calcinha de Emily Dickinson<p class="MsoNormal"><span><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- Emily Dickinson!<br />- O que tem a Emily Dickinson? – perguntei esfregando na mesa meu copo cheio de cerveja.<br />- Imagine a calcinha de Emily Dickinson! – gritou Homero, com pequenas porções de saliva lubrificando seu lábio inferior.<br />- Pelo amor de Deus, Homero, cale essa maldita boca! É sério, estou comendo esse queijo todo, não me faça imaginar isso!<br />- Por que não, meu chapa? O que tem de mais imaginar a doce calcinha de Emily Dickinson?<br />- O que tem de mais? Você só pode estar brincando, campeão! – dei um gole curto na cerveja – Eu lhe digo o que há de errado em imaginar isso.<br />- Se atreva, Nelson... – Homero se ergueu de sua cadeira.<br />- Como assim? Atrever-me? Eu falo o que quiser!<br />- E daí? E quem está te impedindo? – Homero me fitou confuso. </span></span></p><p class="MsoNormal"><span><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Ignorei suas perguntas.</span></span></p> <p class="MsoNormal"><span class="Apple-style-span"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">- A mulher vivia no século dezoito...<br />- Dezenove! – fui interrompido.<br />- Ta, ta... Dezenove! Então, a desgraçada era reclusa, morava provavelmente numa caverna...<br />- Na casa dos pais! – novamente interrompido.<br />- Pelos deuses! É só um modo de falar, seu idiota! Pare de me interromper! Se você me atrapalhar novamente, que Deus me ajude, eu vou acabar com sua raça! – não pude me conter – Posso continuar?<br />- Você é um palhaço mesmo – retrucou Homero com voz sóbria e claramente contrariada.<br />- Pois bem, a mulher vivia isolada, revoltada e cuidando dos pais. Morava em Massachusetts, naquele frio todo, com toda aquela roupa. Você já imaginou a calcinha dela? Imaginou o fedor? Ela não tomava banho todos os dias, por todos os diabos!<br />- Fedor, fedor... Tudo é fedor para você, Nelson! Deus fede, as ruas fedem, a merda fede...<br />- E a merda não fede? – foi minha vez de interromper.<br />- É uma forma de dizer que tudo fede pra você!<br />- Então você deveria citar algo que realmente não feda!<br />- Você me enoja, Nelson! </span></span></p><p class="MsoNormal"><span><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Ergui minha garrafa de cerveja e servi mais um copo. Bebia lentamente enquanto observava a feição sofrida de Homero. Ele era apenas um garoto mimado, que conheceu gente errada na escola estadual para a qual foi transferido. Não conseguiu resistir à tentação de ser um moleque folgado e começou a fumar aos quatorze anos, roubava aos quinze e pegava sua primeira DST aos dezesseis. Uma ascensão incrível. Mas por ser magro, sempre andava com uma faca para se garantir. Nunca foi um bom lutador, mãos pequenas e leves, as pessoas sempre amassavam seus dedos durante os apertos de mãos, era um desastre concentrado. Sua face sofrida era esfolada por anos e anos de espinhas. Sua auto-estima atual foi totalmente minada pelas acnes de outrora. Seu nariz desengonçado era um pouco mais aberto que o convencional (cacete, o que é um nariz convencional?). Sua boca parecia que havia apodrecido. Seu lábio inferior era caído demais, e o superior grande demais, mas tinha uma coloração escurecida. Seu queixo pequeno demais, dava forma arredondada ao seu rosto. O cabelo grande amenizava a forma oval de seu rosto, porém ele definitivamente não nascera para ser um sucesso entre as garotas. Mas os seus olhos continham um brilho raramente visto, que se acentuava à medida que bebia. Talvez aquele fosse o grande trunfo de sua aparência bagunçada. Feio desse jeito se envolveu aos vinte e dois anos num acidente de carro. Era uma fuga veloz e não fugia da polícia. Fugia de traficantes que queriam sua cabeça por algumas mancadas que havia dado, envolvendo um pequeno estoque de maconha que ela simplesmente dera sumiço. Seu carro capotou diversas vezes e o corpo finalmente arremessado para fora. Seu estado era tão deplorável que os traficantes ao cercarem o corpo de Homero semimorto, preferiram deixar ao cargo de Deus a finalização da obra. Mas ele não morreu. Ficou em coma induzido e por dois meses internado no Hospital São Paulo. Saiu com muletas e novos conceitos. Mais firmes que essas muletas que sustentavam seus passos. Com incentivo dos pais terminou, em um supletivo, o segundo grau e fez o vestibular para o curso de jornalismo. Passou tranquilamente, impressionando toda sua família e alguns gatos pingados que se consideravam amigos. Parecia que havia nascido para escrever, para ler, para interpretar todas aquelas letras em conjunto. Nascera para se comunicar. Conseguiu um bom estágio, com um salário razoável, podendo sustentar-se e ainda conseguindo adquirir algumas regalias. Foi efetivado e passou a ganhar bem mais dinheiro. Passou a morar numa rua da Vila Mariana e finalmente poderia dizer que tinha uma vida normal (cacete, o que é uma vida normal?). Adorava conversar sobre literatura, principalmente comigo que embora não tivesse me formado em nada, tinha uma bagagem cultural bem pesada. Eu aceitava as ladainhas dele, aquelas conversas para ele eram discussões acadêmicas. Para mim um passatempo engraçado e na maioria de suas vezes, estressantes.<br /><br />- Você é quem me enoja, Homero! Eu estou comendo queijo, e você vem comentar sobre as roupas de baixo de uma poetisa morta?<br /><br />O queijo Ementhal cortado em cubos estava suave e se despedaçava fácil a cada mordida. Espetei mais um com o palito e voltei a mastigar.<br /><br />- Eu ainda não entendi a conexão entre a calcinha de Emely Dickinson e um pedaço inocente de queijo.<br />- Após o acidente você ficou retardado? Você já chupou uma garota?<br />- Já, já chupei sim.<br />- Você já pegou muitas doenças venéreas, não?<br />- Já, já peguei – dessa vez Homero respondeu com olhar direcionado ao chão, mostrando um pouco de constrangimento.<br />- Já comeu gorgonzola? Ricota? – perguntei erguendo o palito com um queijo espetado.<br />- Já, e isso não é gorgonzola, muito menos ricota – respondeu apontando para o queijo que eu levantei.<br />- Ta certo, eu sei que não é! Então, vai viu uma garota feder lá embaixo na boceta?<br />- Claro, muitas delas fedem!<br />- E já olhou lá dentro para ver o que tinha de errado?<br />- Não, nunca fiz isso, por que faria? – agora Homero que espetava um cubo grande de queijo e o colocava lentamente na boca.<br />- Primeiro, pare de colocar o queijo na boca como se estivesse chupando uma pica. Segundo, a aparência de uma boceta mal lavada é parecida com um ralo de pia cheio de ricota ou gorgonzola. Escuro e com rastros brancos.<br /><br />Homero travou. Tentou regurgitar o queijo tragado, porém foi </span><st1:personname productid="em v ̄o. Correu" st="on"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">em vão. Correu</span></st1:personname><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> para o banheiro, em vão de novo. Vomitou no caminho.<br /><br />- O que foi Homero?! Nunca ouviu falar nisso? Pelo amor de Deus! Você é um cabaço mesmo! – eu dava risadas altas e batia o pé em plena euforia.<br />- Você é um desgraçado! – ouvi apenas a voz abafada de Homero percorrer o corredor do apartamento – Eu devia lhe obrigar a limpar isso tudo!<br />- Tente! Apenas tente! – eu já preparava os jabs e ganchos, praticando contra o ar.</span></span></p><p class="MsoNormal"><span><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Homero chegou com uma toalha e um copo de coca-cola na mão. Sentou lentamente no sofá e suspirou, como se estivesse cansado de viver. Apenas estava cansado de ouvir tanta baboseira. Fez sinal negativo com a cabeça e vagarosamente dispensou a toalha em sua nuca. Parecia abatido.<br /><br />- Começamos falando de literatura e terminamos no vômito. Belo feito, hein senhor Nelson? – ao finalizar a frase, arrotou.<br />- Eu diria que foi um nocaute ideológico. Você é uma gazelinha, Homero. Perdeu suas bolas naquele acidente. Como pode um homem vomitar por esse motivo? Pelo amor de Deus... – cocei a cabeça fazendo um ruído perturbador.<br />- A literatura, Nelson, começamos com a literatura. E você sempre descamba para a sujeira.<br />- Sim, literatura. E A CALCINHA DE EMILY DICKINSON </span><st1:personname productid="EM ALGUM DIA FOI" st="on"><st1:personname productid="EM ALGUM DIA" st="on"><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">EM ALGUM DIA</span></st1:personname><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> FOI</span></st1:personname><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> CITADA NA LITERATURA?<br />- Não! Nunca foi, mas foi um comentário à parte, a mesma coisa de citar as bolas de Jorge Amado.<br />- O que você quer? Que eu vomite também? É isso? Está revidando?<br />- Não, estou apenas fazendo uma colocação, apenas isso – olhou com indiferença para os meus olhos. Seus olhos pareciam vazios. O brilho se fora com o vômito. </span></span></p><p class="MsoNormal"><span><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Levantei-me e busquei meu casaco. Vasculhei meu maço de cigarros e não achei nenhum. “Pros diabos, compro um na padaria”, pensei. Fui até a cozinha e abri a geladeira. Não havia sobrado nenhuma garrafa, porém encontrei uma latinha esquecida no compartimento de verduras. Peguei-a e dei uma bela golada. Soltei um arroto e voltei para a sala. Estendi a mão para cumprimentar aquela mão pequena e ossuda, porém não tive retorno. Ele apenas olhava para a janela dando curtos goles em sua coca-cola.<br /><br />- Tem um cigarro aí, Homero?<br />- Na gaveta da cozinha. Tem um maço de L&M lá.<br /><br />Voltei para a cozinha, porém no caminho, senti uma pancada na cabeça. Vi um clarão, como fogos de ano novo. Tentei me segurar em algum lugar, mas me senti caindo num abismo sem fundo. Quando finalmente caí, recobrei a consciência e olhei para o meu redor. Tudo normal. Um cinzeiro jazia ao meu lado, pesado, feito de puro ferro. Lembrei da cacetada que havia levado na cabeça e procurei por sangue. Nenhuma gota. O desgraçado havia jogado o cinzeiro em mim, maldito bêbado. Procurei por cortes no corpo e nada também. Lembrei do papo sobre as bolas de Jorge Amado e prontamente abaixei minhas calças procurando alguma violação no meu rabo e, graças ao bom Deus, nada. Aparentemente tudo estava em ordem, o apartamento estava arrumado, as garrafas estavam na lata de lixo, exceto pelo carpete da sala que estava imundo e cheio de pó. Mas até o cinzeiro que acertou minha cabeça não continha cinzas.<o:p></o:p></span></span></p> <p class="MsoNormal"><span><o:p><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"> Lembrei do que Homero havia dito, sobre os cigarros na gaveta da cozinha. Ao procurá-los, encontrei um papel com meu nome. “Vamos ver o que esse merda preparou pra mim”, sussurrei enquanto abria o papel. </span></o:p></span></p><p class="MsoNormal"><span><i><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;">Nelson,<br /><br />fui acertar umas contas antigas. Embora você seja meu grande amigo, infelizmente não pude contar muitas coisas para você. Me perdoe. Em breve lhe deixarei informado.</span></i><span class="Apple-style-span" style="font-size: small;"><br /><br />Dei um murro no armário da cozinha e o xinguei mentalmente. Tomei posse do maço de L&M vermelho e saí do apartamento, trancando a porta e despejando a chave dentro do compartimento da mangueira de incêndio que ficava no corredor do andar. Desci o elevador olhando para o chão, aguardando a chegada no térreo. Passei pela recepção suntuosa e bem decorada e cumprimentei o sr. Antônio, porteiro sofrido, com o bigode amarelado e quase desdentado. Ganhei a rua Bartolomeu de Gusmão e me dirigi à estação Vila Mariana.<br /><br />Boa sorte, Homero, seu puto.</span><o:p></o:p></span></p>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-72963476566163236112010-05-16T22:44:00.000-03:002010-05-16T22:45:44.253-03:00Nelson<p class="MsoNormal">Até hoje sou assombrado pelas escolhas que fiz durante minha curta vida. Nunca vendi minha alma ao diabo num pacto, mas cada ato, cada decisão que tomo, faz o tinhoso ter certeza que quero uma cadeira cativa no inferno. Não ouço vozes, sou apenas um andarilho, uma alma perdida fazendo o que qualquer ser humano faz durante o dia. Acordo com dores, cuspindo grossas camadas de catarro e entro no banheiro. Como um zumbi controlado por uma força sádica, tomo meu banho e me olho no espelho: meus olhos são vazios e sinto que o dia que se levantou não tem sentido em existir. Qual é o motivo do sol nascer e ordenar ao mundo que trabalhe? Eu não formei uma família, nunca fiz uma mulher feliz, não sei se os meus amigos me dariam suporte se eu caísse num hospital à beira da morte. Meus cabelos estão caindo, meus dentes amarelando e não vejo vida daqui uma semana. Apenas vou levando, apenas me arrastando. Coloco minha velha calça surrada, alguma camiseta e o meu tênis que está cada dia mais deplorável. Verifico o celular, verifica o maço de cigarros e o isqueiro. Deparo-me com a cozinha e procuro algo para comer. Pão de forma, manteiga e café. Mastigo com preguiça sem entender o porquê estou me alimentando. Como havia dito apenas um zumbi sem noção de seus atos, rastejando por um chão irregular, abraçado ao cotidiano, à rotina.</p> <p class="MsoNormal">Abro a porta do apartamento e chamo o elevador. Sei que algum vizinho irá entrar no elevador e me desejar um bom dia. Sou um pensador por natureza e quanto respondo a saudação matutina de um vizinho, olho para os botões do elevador e penso: por que desejamos bom dia para alguém que não conhecemos? Queremos mesmo que esse alguém tenha um bom dia? E se ele espancou sua mulher? E se ele coleciona pedofilia em seu computador? Ele merece ter um bom dia? Acho que não. Saio do elevador e ganho a rua olhando para os lados e verificando se algum carro está por perto. Atravesso e me direciono ao ponto de ônibus. São as mesmas pessoas de sempre. Com a mesma cara de sempre. Algumas com ambição demais, outras sofrendo o mesmo dilema que eu: por que se locomover a um lugar para encher o bolso de um patrão filho da puta? Entro no ônibus e vejo que o motorista não é o mesmo de ontem. O cobrador também não, mas por incrível que pareça quase todos os passageiros de ontem estão lá de novo. Eles me olham com a mesma reação de sempre. As mulheres que sentem algum tipo de atração por mim, acompanham meus movimentos até eu achar um banco para sentar. Ou ficam me acompanhando enquanto fico em pé, vislumbrando a paisagem urbana de cada dia. As mulheres que não suportam meu estilo olham para mim e quando olho para elas, desviam o olhar e voltam sua atenção para um livro, algum best seller que a Veja indicou em sua lista semanal de livros mais vendidos. Alguns homens me dão atenção com os olhos, porém eu reajo com tanta repulsa que eles desistem de observar a estampa da minha camisa ou estado do meu tênis. Mas o que fode a minha manhã é caminhar através da rua do meu trabalho. São dezenas de marionetes de cabeça baixa, desanimadas, estressadas e nervosas. Eu sou uma delas. Ao colocar os pés na empresa, sinto calafrios e ao olhar o relógio que marca a entrada dos funcionários, vejo que estamos numa prisão onde o relógio é o carcereiro, e diz quem é bom e quem é incompetente, apenas usando os atrasos como provas. Olhos para as pessoas em suas mesas e aceno com as mãos e com a cabeça. Ligo o computador e a perturbação começa. Preciso acessar e-mails, sistemas, Windows, programas, todos com meu nome e com minha senha. Tudo é restrito, tudo é informação de extremo valor. Coloco minha mão na cabeça e prendo meus dedos aos fios de cabelo. Lentamente deslizo para baixo e quando olho na mesa, vários fios de cabelo estão lá. Alguém pergunta se estou bem e eu respondo que sim, digo que estou indisposto, desmotivado e sempre recebo uma cara de compaixão de volta. Por algumas horas, tenho paz e tento adiantar meu trabalho, sempre atrasado. Quando meu chefe chega, o ódio adormecido em meu coração desperta. Penso em algum plano catastrófico como uma bomba ligada a um dispositivo de detonação que é acionado por qualquer peso colocado em cima da cadeira do meu chefe. Eu apenas diria que iria comprar um pão de café no bar da esquina e enquanto fecho a porta da empresa, ouço a explosão. Mágico! Porém acordo do meu delírio assassino e fito meu patrão. Rico mas não esbanja. Roupas gastas, carro popular e sede de sangue. Chega à empresa e desfere um “bom dia” tão irônico que me causa náuseas. Vou até a máquina de café e aperto no botão do café longo. Despejo um pouco de açúcar e fico uns cinco minutos apreciando o sabor forte do expresso. Alguns colegas de trabalho encostam-se à máquina e começam a bater papo. Eu querendo morrer, querendo matar o chefe e eles falando de futebol, fórmula um e mulheres. De mulheres eu entendo, mas não sou tão alucinado como eles. Mulheres para eles são um bando de bucetas, enquanto eu as vejo como um tipo de diversão, seres que eu canso com minha existência sem o mínimo resquício de ambição. Pra mim as mulheres querem, sem exceção, formar família, morar na mesma casa, apresentar o homem pra família e cumprir o script dos bons modos. Eu não consigo, eu simplesmente não consigo. </p> <p class="MsoNormal">A hora do almoço é um bom momento. O sol está quente e a fome consegue chamar minha atenção. Passo do estado soturno para o estado de desespero e me abrigo em algum restaurante bagunçado que sirva um bom prato feito. Lembro da comida da minha mãe e também me lembro do tempo que estou sem comer um bom rango materno. Faz tempo que não a vejo. Não sei onde ela está. Devoro meu prato e vou para a rua fumar alguns cigarros. Preciso compensar a manhã inteira, quando não puder dar uma tragada sequer. Vou a banca de jornal e compro um jornal barato, apenas para me interar dos fatos. A mulher que trabalha na banca sempre me oferece o jornal e um sorriso amigável. Sinto tesão por ela, mas o marido dela trabalha lá também. Encosto na parede da empresa onde trabalho e verifico sempre as notícias em meio à nuvem de fumaça que despejo pelo ar. Volto sempre alguns minutos antes, pois não tenho saco para suportar o calor por muito tempo, nem o marasmo da rua onde trabalho.</p> <p class="MsoNormal">Volto para minha mesa fedendo a cigarro. Alguém sempre faz algum tipo de piada quanto a isso, mas eu sempre respondo com um ‘arram’ desanimado e um sorriso de lado. Não procuro me isolar das pessoas, apenas vejo que não são iguais a mim. </p> <p class="MsoNormal">Alfredo é um cara que trabalha comigo e parece muito comigo, gosta das mesmas músicas que gosto e já leu os livros que cultuo. Nossos horários de almoço são diferentes, mas sempre nos encontramos na máquina de café durante o turno da tarde. Trocamos poucas palavras, porém proveitosas. Ensaio algumas risadas e ele também. Pra ele, Bob Dylan é o grande gênio da música, pra mim é Serge Gainsbourg. Ele gosta de letras e eu gosto de atitude, embora Gainsbourg tenha escrito muita coisa boa. Não discutimos muito, até porque são estilos diferentes. E Bob Dylan é consagrado por toda a mídia musical enquanto muita gente na mesma mídia nunca ouviu uma canção do álbum Histoire de Melody Nelson. Aliás, meu pai meu nome vem desse disco: Nelson. Enfim, as pessoas acham que Gainsbourg é apenas música de hotel com Je T’aime Moi non Plus e a deliciosa voz da Brigitte Bardot cortando a música. Mas Gainsbourg era foda, cigarro em uma mão e em outra mão, sempre estava o coração de alguma mulher sensacional. Enfim, nunca fui a um happy hour com os funcionários da empresa. Mas as sextas, Alfredo e eu bebemos até cair em algum bar do centro. </p> <p class="MsoNormal"><span style="mso-spacerun:yes"> </span>Após trabalhar despretensiosamente durante a tarde, sigo até o ponto de ônibus fumando um cigarro atrás do outro. Pego um ônibus lotado e chego em casa rapidamente. Eu não posso reclamar de passar horas no trânsito. Os corredores de ônibus que a Marta Suplicy implantou são sensacionais. Chego em meu apartamento, pequeno mas confortável e me livro das roupas. Coloco um short qualquer e acendo um cigarro. Ligo a televisão e a deixo ligada enquanto esquento alguma comida, enquanto sirvo uma dose de uísque para relaxar. Termino o drinque e verifico a comida, Deus é sempre a mesma coisa, porém durante a noite existe um conforto, a sensação de que algo novo pode ser feito. A manhã é uma calamidade regida por uma ordem natural da sociedade. A noite é misteriosa, quando podemos extrapolar as horas e desferir uma bica bem servida no rabo do relógio e deixar que o outro dia sirva de purgatório para os excessos cometidos. </p> <p class="MsoNormal">Às vezes recebo a visita de amigos beberrões. Cantamos canções antigas e fazemos muito barulho. Os vizinhos reclamam, mas nunca cessamos as reuniões sazonais que realizamos. Quando mulheres estão entre os convidados, dou completo sentido ao que descrevi linhas acima: extrapolar as horas e deixar que o outro dia sirva de purgatório. Quando as discussões descambam para o lado da religião, me levanto bêbado e começo a dispersar os falastrões. Sempre trôpego, despejo os mais inflamados. Não tenho religião. Não tenho Deus nem deuses. Não existe sentido em divindades. Somos apenas o resultado de uma série inconsciente de acontecimentos físicos e químicos e cá estamos: um monte de cus, pintos e bocetas perambulando pelo solo árido desse planeta cheio de vida. Todos querendo comer uns aos outros, enquanto algumas pessoas, como eu, estão pouco se lixando se são manipuladas, se são escravizadas. Pessoas querem mandar enquanto eu quero viver com algum tipo de respeito, nem que seja pra conquistá-lo na porrada. E onde podemos encaixar um deus bondoso nisso tudo? A bondade humana é fruto da diferenciação entre homo sapiens e as demais espécies. Não existe nada de mágico ou sobrenatural no amor. O amor é fruto do maior dom do humano: o dom de pensar. Desenvolvemos a comunicação, desenvolvemos filosofias e códigos de conduta, leis e sistemas de esgoto. O ser humano fez tudo isso. Deus definitivamente não se encaixa nisso tudo. </p> <p class="MsoNormal">Diabos! Quero mais é que tudo vá para o inferno. </p> <p class="MsoNormal">Eu sou um homem amargo por tudo que fiz na vida. Colho diariamente as jurubebas que brotam em minha horta. Amargas e rejeitáveis, assim como sou para a sociedade. Minha canção é assombrosa e ninguém quer ouvi-la. Minha solidão não pode ser sanada e meus crimes não têm solução. Eu tenho um acordo verbal com o fracasso, uma espécie de pacto de não-agressão com o pecado. </p> <p class="MsoNormal">Preciso dormir, anseio pela canção de ninar entoada pelos fantasmas do meu passado. Um último cigarro e cama. <span style="mso-spacerun:yes"> </span></p>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-16903467545186772512009-12-08T14:35:00.003-02:002009-12-08T14:38:05.948-02:00A Última Donzela e a Cartola<p class="NormalTrebuchetMS">O cigarro de Fernando havia se consumido, chegando ao filtro branco adornado por uma linha prateada e pelo símbolo simétrico do Lucky Strike. Mas ele não imaginava este pequeno fato isolado no universo de fatos que orbitavam pelo bar. Risadas, gargalhadas histéricas, pequenos murmúrios e falácias, muita falácias entravam em simbiose no denso e escurecido ar do recinto. Catarina embriagada, vez em outra se achegava a Fernando e o abraçava, beijando-o no pescoço. Era um pequeno mimo que significava sua intenção em ficar com ele naquela noite. E Fernando sabia do costume de sua amiga, afinal, foram meses a fio beijando aqueles lábios, porém sem nunca fazerem sexo. Catarina era magra, no significado exato da magreza, mas mantinha um charme incrível e uma inconseqüência que atraía Fernando aos seus braços. Era uma inveterada fã do rock, e ele também, o que os fazia atravessarem horas em conversas sobre o assunto. Os dois sempre que possível andavam juntos, vestidos de maneira perecida, ostentando bandas de seus gostos em suas camisetas. As pessoas achavam que eram namorados, e não era só pelo fato de costumarem ficar um com o outro, mas também pela incrível compatibilidade de suas almas.<br /><br />- Vamos lá, porra! Mais vinho! – gritou Fernando em tom alcoolizado.<br />- Vamos fazer vaquinha, todo mundo dá um real, dois reais e tá feito! – alguém agilizava a contribuição.</p> <p class="NormalTrebuchetMS">As mãos de algum pobre diabo disposto a arrecadar dinheiro, se formavam em concha e abordava um a um, procurando captar o máximo de recursos. O fim das doações havia chegado ao fim e a mixaria de quatro reais e quarenta e cinco centavos havia sido contada. Isso dava para duas garrafas de vinho, um vinho tão ruim que se aproximava do vinagre. Um verdadeiro suicídio, lento e devastador. Aquela era a sexta vez que o grupo entrava no mercado para comprar vinho. Novamente duas garrafas. Todas as vezes que o grupo entrou para comprar a bebida, sempre levavam ao caixa duas garrafas de um litro. Só que dessa vez o grupo cambaleava em meios às gôndolas da seção gelada de frios. Entraram à direita na seção de enlatados que lhes dava a distância de vinte passos da seção de bebidas. Parecia pouco, mas os passos eram calculados e lentos, para que não houvesse uma queda coletiva e constrangedora. Finalmente chegaram à seção cheia de garrafas, ataviada com as mais belas bebidas que o mundo pode comportar. Fernando e Catarina andavam de braços dados, rindo e procurando em meio aos giros da visão, as garrafas da perdição. E a perdição estava escassa, afinal, sobraram exatamente duas garrafas. Surrupiaram rapidamente as garrafas e continuaram a longa jornada até o caixa rápido. O casal já havia passado por porres bem piores que esse, e administravam a alegria gerada com generosidade, irradiando sorrisos, acenos, gritos eufóricos. Eles encantavam a todos no lugar e todos encantavam aos dois. Após o grupo beber de forma ensandecida cada gota do vinho amargo, cada um começou a decidir seu destino na noite.<br /><br />- Ah! Hoje eu vou ao pagode! – alguém cheio de entusiasmo exibia sua pretensão.<br />- Credo! Pagode! Aff! – outro alguém protestava<br />- Fernando, vâmo pra Augusta! – sugeriu Catarina com sorriso devasso.<br />- Ah! Não sei, o que acha Marlon? – Fernando questionou olhando para seu amigo.<br />- Vâmo, porra! Tá afim? Então vâmo, porra! – gritou Marlon esfregando uma mão na outra.<br />- Cecília, você acompanha o Marlon? – perguntou Catarina.<br />- Claro! Vamos pra lá... – aceitou a amiga do casal.</p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Marlon conhecia Fernando há quase um ano, e o pouco tempo não os impediu de cultivarem uma amizade baseada em confissões secretas, bebedeiras após o expediente e extensas conversas em meio ao trabalho. Cecília era amiga de Catarina, um tanto conservadora (virgem) e estava tendo algo com Marlon. Provavelmente alguns beijos acalorados.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>O grupo se dispersou em breve despedida. Em poucos minutos o quarteto estava num ônibus rumo à região da avenida Paulista. Pode parecer que estavam conversando amistosamente, mas o álcool havia subido com maior intensidade. Marlon começou seu repertório de baixarias em público ao cantar o hino do Grêmio de Porto Alegre em meio a trabalhadores cansados da jornada pesada das obras e fábricas. Alguns olhavam de forma irritada, porém a maioria ignorava os versos berrados do tricolor gaúcho. Os trabalhadores apenas queriam um descanso, e a fadiga era tanta que o vidro da janela servia como confortável travesseiro no sono que aliviava a longa viagem até suas casas. Alguns roncavam, embaçando os vidros com seus bafos enquanto outros permaneciam com suas cabeças apoiadas no encosto duro dos assentos. O ônibus balançava e Fernando, em pé, já duvidava de sua capacidade em permanecer ereto e firme. Catarina ria muito enquanto Cecília observava seus amigos com um sorriso de quem estava perfeitamente consciente de tudo que ocorria. Finalmente o ônibus chegou ao ponto e os quatro desceram aos trancos e barrancos, sem a mínima noção do que estavam fazendo. E o álcool permanecia implacável na missão de entorpecê-los cada vez mais. A vista girava cada vez mais rápida e exceto Cecília, todos se arrastavam na subida até a avenida Paulista. Um verdadeiro sacrifício em meio às arvores que balançavam sob a força dos ventos que se intensificavam a cada minuto. Catarina compreendeu que Fernando já não tinha mais controle sobre suas pernas, o que a fez reunir suas últimas percepções e reflexos sóbrios e guiar o amigo até o bar na Augusta. O céu flertava com uma chuva rápida, mas tudo ficou na ameaça. Os quatros envolveram seus braços nos ombros de quem estava ao lado e caminharam como quatro camaradas bêbados, porém sabendo que daquele jeito era difícil cair. Caminharam pela maldita entrada do Parque Trianon e atravessaram até o MASP. Prosseguiram em meio a risadas e pequenas brincadeiras até chegarem à esquina com a rua Augusta. Marlon e Cecília conseguiram dobrar à direita tranquilamente, mas Fernando havia perdido o controle do lado direito do corpo e andava apenas para a esquerda, em direção à rua movimentada.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Fernando! Porra, o que você está fazendo?! – gritou Catarina enquanto segurava o amigo pelo cotovelo.<br />- Eu não sei... massss não consigo virar para a direita...<span style="mso-spacerun:yes"> </span>– respondeu Fernando totalmente alterado e com voz arrastada.<br />- Puta merda, era só o que faltava!<br />- Me puxa, Catarina! Sério!<br />- Caralho! Caralho!</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p> Catarina empurrou Fernando para a calçada e continuou descendo a Augusta guiando o companheiro pelos ombros. Marlon acompanhava a cena às risadas junto de Cecília que contemplava o desastre com olhos de criança, ou seja, abismada. Com muitas dificuldades, os quatro chegaram ao bar Vitrine. Encontraram uma mesa vazia e repousaram por alguns minutos.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Marlon, vem comigo no banheiro! – disse Fernando se levantando bruscamente e se dirigindo ao banheiro, tropeçando nas cadeiras.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Fernando chegou com velocidade descontrolada ao banheiro e se dirigiu à cabine vazia. Pôs-se de pé, diante da privada e com dificuldade abriu o zíper de sua calça. Enquanto o mijo descia, ele vacilava em sua posição e ria ao ver o reflexo de seu pau no botão metálico da descarga. Logo que terminou o mijo, correu para a pia e vomitou rios de vinho. O vômito era de uma roxo vivo, e inundava uma das pias e o chão do banheiro. Um francês se aproximou de Fernando abordando-o com sotaque:</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Vai maconha aí, amigo?<br />- Vai se foderrrr... – cuspiu algumas ofensas e se afastou.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Marlon encarava o francês com olhar fulminante de raiva e ao mesmo tempo guiava seu sofrido amigo à mesa. Catarina preocupada ensaiou um cafuné no cabelo liso de Fernando, mas logo se levantou e, chamando Cecília, foi ao banheiro. Marlon acendeu um cigarro e permaneceu em sentinela, vigiando o amigo nocauteado pelo vinho. </o:p></p><p class="NormalTrebuchetMS">- Puta que o pariu, hein Fernando?! Hoje você bebeu! – Marlon reclamou em tom irônico.<br />- É, pode crer, mano. To foddddido...</p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>As garotas chegaram à mesa e ficaram fumando e conversando alguns assuntos sem sentido, enquanto Marlon alternava seu olhar entre o amigo e o ambiente. Fernando permanecia com a cabeça reclinada na mesa, tentando sem sucesso falar alguma coisa, tentando demonstrar alguma dignidade. Alguns marmanjos tentavam se aproximar de Catarina.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Ei! Vem sentar aqui com a gente, seu namorado abandonou você! – algum rapaz disse.<br />- Ele não é meu namorado, é meu amigo. Jamais deixaria ele aqui. – disse Catarina virando as costas para os rapazes.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>O rock tocava incessantemente e não havia idéias. Fernando geralmente proporia algo, mas lá estava ele, inerte aos estímulos da noite. </o:p></p><p class="NormalTrebuchetMS">- A gente podia ir pra casa da Cecília e dormir lá! O que acha? – sugeriu Catarina.<br />- Pode ser! Mas como vamos chegar lá com o Fernando desse jeito? – questionou Marlon.<br />- A gente pega um táxi! Vamos fechar um preço com ele e vamos pra lá! – Catarina solucionava o impasse.<br />- Onde diabos fica sua casa, Cecília? – perguntou Fernando com a cabeça na mesa.<br />- Em Pinheiros, perto do largo.</p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Marlon e Catarina saíram do bar a fim de pegar um táxi. Ao combinarem o preço, correram ao bar para chamar Cecília e Fernando. Ele se levantou com dificuldade e foi em passos lentos até o táxi. Sentou no banco de passageiro, pois segundo Marlon, “se ele quisesse vomitar, ficava mais fácil de colocar a cara para fora”. E ele tinha razão: Fernando vomitou por muitas vezes durante o trajeto até Pinheiros. Após sucessivos vômitos, Fernando já estava mais lúcido e conversava sem problemas com o motorista. Mas ele nem imaginava o motivo de estarem dentro do táxi e muito menos imaginava quem iria pagar pela corrida.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Chegaram ao prédio de Cecília, pagaram o táxi e se dirigiram vagarosamente à porta. O prédio embora fosse antigo, era confortável, com um lobby bem espaçoso. Ao chegarem no apartamento, Fernando foi ao banheiro, abriu os botões da camisa e se contemplou no espelho. Deu um sorriso de malícia e se abaixou para cagar.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Que se foda se é casa dos outros. Vou cagar. – pensou Fernando.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Marlon e Cecília se aconchegavam em um colchão que ficava ao lado de um vaso que exibia uma vívida planta de maconha, que devia ter pelo menos um metro e vinte de altura. Era realmente engraçado ver a maconha em seu estado bruto. Marlon e Fernando se sentaram ao lado do vaso e ficaram tocando nas plantas, rindo. Fernando arrancou uma folha e colocou no bolso da camisa.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Vem logo, Fê! – Catarina chamou com voz manhosa.<br />- Peraê, peraê!</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Após o encanto da maconha ter acabado, os machos se aninharam com suas fêmeas. A luz apagada era o sinal de que havia liberdade para tudo naquela noite. Marlon havia abaixado as calças de Cecília e enfiado a mão dentro de sua calcinha. Ele brincava euforicamente com os dedos dentro de sua boceta enquanto alguns suspiros saíam de sua boca. Fernando ouvia a ação do casal ao lado e dava risadas, enquanto se concentrava em chupar caprichosamente os mamilos de Catarina. Decidiu avançar na ousadia e enfiou os dedos na boceta da amiga, cutucando seu clitóris. O pau estava duro como rocha, pois sua companheira gemia em seu ouvido sem parar, provocando-lhe arrepios generalizados pelo corpo. A bebedeira não havia surtido efeito negativo e a libido estava a todo vapor. Fernando pincelava o pau na boceta de Catarina que se derretia em longos suspiros. Ele conseguia sentir que algumas gotas de porra já ensaiavam a saída. Ao mesmo tempo, alguns gemidos eram ouvidos por parte de Cecília, que desfalecia como gelo no calor dos toques de Marlon. Em alguns momentos, os dois amigos se entreolhavam sob a luz da lua que cortava a sala e riam um do outro. Porém Fernando não estava totalmente são e como de costume, ficou romântico.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Catarina, eu te amo. Eu tenho certeza que vamos namorar um dia! Eu amo você, eu amo ficar com você, amo tudo em você! – Fernando sussurrava com sentimentos exaltados.<br />- Ai... Ah! Não pára! Não pára! – Catarina estava surda para as declarações inebriantes do amigo e só se concentrava no prazer.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Marlon ria do estilo cafajeste com o qual Fernando se dirigia à amiga. Marlon enfim sacou sua pica e enfiou profundamente dentro de Cecília, que enfim experimentou a textura de um membro masculino arrancar sem piedade sua pureza. A última donzela caía naquele colchão ao lado de um vaso de maconha. Ela dava pequenos gritos enquanto o olhar de Marlon era pernicioso, destilando luxúria que se misturava ao suor dos dois corpos. Enquanto um momento marcante surgia para Cecília, Catarina estava de quatro chupando com fervor o pau de Fernando e ele continuava com sua ladainha romântica dizendo “eu te amo”, “quero você pra sempre” e todas aquelas promessas baseadas em gozo de boceta. E quando Catarina estava sentada no pau de seu companheiro, o mesmo gozou em frenético coito, tanto foi o prazer que Fernando mordia o ombro da amiga, até que caiu para trás, sem reação, entregue ao relaxamento muscular. Marlon terminava seu trabalho, montado em Cecília, puxando seus cabelos. A ex-virgem mostrava-se empolgada com a nova experiência. Marlon caiu mórbido, com a camisinha envolta em seu pau, cheia de porra, cheia de desejo. As garotas foram ao banheiro se lavar e confabular sobre aquilo que já sabiam. Fernando e Marlon se livraram dos preservativos e permaneceram nus, deitados esperando suas garotas.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>Após minutos de conversa, o cansaço se apoderou de suas mentes, e não havia mais espaço para vida inteligente naquela sala. Dormiram até as nove da manhã. Fernando acordou com uma dor de cabeça monumental, pensando se tratar de um derrame cerebral, mas logo lembrou que o vinho era uma porcaria e que sempre depois disso, a ressaca chegava. Marlon acordou com a mesma dor de cabeça e logo levantou para se vestir. Os dois se despediram de suas sonolentas mulheres e ganharam a rua que terminava no largo de Pinheiros. Compraram um maço de cigarros e tomaram um café sentados num bar, cada um com olhar fixo <st1:personname productid="em algo. As" st="on">em algo. As</st1:personname> lembranças chegavam aos poucos e risadas eram lançadas na xícara de um café fraco e adoçado. Marlon não parava de cheirar o seu dedo médio.</o:p></p><p class="NormalTrebuchetMS">- Fernando, cheira aqui! – levou seu dedo ao nariz do amigo.<br />- PUTA QUE PARIU, Marlon! Vai se foder! – Fernando constatou que era cheiro de boceta seca, que havia permanecido no dedo que bolinara a vagina de Cecília.<br /><br />Logo depois, se dirigiram ao ponto de ônibus na avenida Rebouças, sob uma fina garoa. Ficaram por uma hora esperando os ônibus esvaziarem, mas foi em vão. </p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p>- Vamos subir a pé. Que se foda! – sugeriu Fernando.<br />- Vai, vâmo logo.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p> À medida que subiam, deliravam em assuntos triviais e de pouca importância. Falavam apenas para ficarem animados o suficiente para terminarem o trajeto até a avenida Paulista. Era uma boa caminhada.</o:p></p> <p class="NormalTrebuchetMS"><o:p> - Sabe Fernando, quando eu for rico, quero andar de bengala, e com aquelas cartolas grandes, sabe?<br />- Hahaha! Sei sim, seria demais. Olhar esnobe, com aquela cartola. Puta, seria foda!</o:p></p>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-26286393591363083432009-11-06T12:12:00.003-02:002009-12-10T11:21:53.642-02:00A Vingança Romana<div><p class="MsoNormal" style="margin-bottom:0cm;margin-bottom:.0001pt;line-height: 13.5pt"><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">E lá estava ele de novo. Antonio Durval Correia. Católico apostólico romano, vezes dez. Papa Bento XVI é um alvo a ser alcançado. "Que homem!" ele pensava ao lembrar do líder máximo da fé católica (não era pra ser Jesus? Deus?). Que o Antonio não me ouça ou ele começaria uma discussão. Mas lá estava ele, como de costume, na espreita, encostado no muro da igreja de Nossa Senhora da Saúde. A avenida Domingos de Morais estava fervilhando. Pessoas com rostos padrões, cinzas, azulados, sem forma alguma se apinhavam na calçada, esperando o sinal vermelho para os carros. Antonio observava tudo com decepção moldando sua expressão. Diferente das pessoas que transitavam pela avenida, Antonio tinha um rosto colorido, nariz vermelho, olhos verdes, bochechas rosadas. Todas as cores do passado, das consequências impiedosas que um ex-alcoólatra sofre. Mas lá estava o guerreiro católico, ex-alcoólatra, vigiando as pessoas, como se pudesse detectar suas auras, detectar seus anjos e demônios.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Marco, são poucos. São pouquíssimos! - Antonio cabisbaixo falava ao telefone, num orelhão da rua Santa Cruz.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Poucos o quê? Do que você está falando?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Eu vi tudo, na frente da igreja. É de partir o coração.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas o que você viu?, pelo amor de Deus!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- As pessoas, esqueceram de Deus.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas isso todo mundo sabe! Conte-me algo novo! Puta que pariu!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Me faça um favor: não fale palavrões, certo? Estou querendo desabafar com alguém e você me ofende?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas eu não te ofendi, foi expressão apenas, pelo amor de Deus! E você não está desabafando, você está me deixando curioso e com raiva!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Sinal da cruz, Marco. Ninguém mais faz o sinal da cruz ao passar pela igreja.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Oras, e se forem evangélicos? Eles estão crescendo a todo vapor. Você tem que considerar isso.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Que nada, acho que eles são trinta por cento da população, ou seja, de cada dez pessoas que passam pela igreja, sete deveriam reverenciar a fé católica.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Você sabe que a vida não é assim. Estatísticas não passam de baboseiras. Sempre tem uma margem de erro. Se fosse algo exato, não teria margem pra erro.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- A matemática é exata, Marco.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas as pessoas não. A cada minuto, católicos viram evangélicos, filhos viram pais, homens viram viados.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas homossexualismo é um desvio de caráter, existe cura - retrucou Antonio, coçando o nariz.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Bem, foda-se, não é...</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Olha o palavrão, Marco...</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Olha Antonio, você me liga pra dizer que quase ninguém faz sinal da cruz. Depois entra num assunto que não faz sentido e ainda pede pra eu maneirar nos palavrões? Vai tomar no seu cu, seu puxa-saco do papa! Enfia um crucifixo no seu rabo e reza três ave-marias pra ver se você sara desse fanatismo boçal!</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Olha, eu vou desligar. Você está descontrolado, não espere que eu desça ao seu nível - respondeu Antonio, assim como Jesus responderia.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Marco desligou.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Maldito o dia que eu fui aos Alcoólicos Anônimos e conheci esse babaca! - vociferou Marco contra o teto.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">O encontro de alcoólicos anônimos não havia rendido nenhum fruto bom para Marco. Ele continuava bebendo, sem esperança alguma, vivendo a libertinagem que sempre sonhou. Putas, travestis e mulheres aleatórias. O único fruto na verdade foi ter conhecido Antonio que não passava de uma figura deplorável, sem motivação alguma e que tentava de todas as formas se redimir consigo mesmo. Depois inclui Deus na lista de pessoas com quem devia se desculpar. Mas o fato é que Antonio parou de beber, se agarrou com unhas e dentes à igreja Católica e a Deus. Comprou uma imagem de Santo Onofre, protetor dos alcoólatras anônimos e sossegou o rabo. Passa o dia inteiro meditando na palavra de Deus, visitando igrejas, fazendo trabalhos voluntários. O padre da paróquia vizinha a sua casa garantia uma cesta básica a ele, frequentadores da mesma paróquia faziam contribuições para pagar as contas do bangalô de Antonio. Todos sabiam que ele não batia bem das ideias, e por isso era considerado pelas pessoas como inapto para se sustentar. Antonio se casou com Deus, com Maria (ainda virgem) e com todos os santos. Parecia um homem feliz.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Nossa Senhora de Aparecida, por que o mundo está assim? Por que o mundo virou as costas para a igreja? Por que o mundo esqueceu-se de reverenciar sua fé católica? Rogo a ti, que rogues ao teu filho Jesus para que os puna! Para que vejam que dar as costas para a fé é a mesma coisa que a morte! Confio nos teus bondosos braços, no teu olhar maternal, eu te amo, minha santa!</span><span style="font-size: 10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Fez o sinal da cruz lentamente e se ergueu do chão, onde estava ajoelhado. Quando se direcionava a bíblia enorme que permanecia na sala, uma voz gritou em seu ouvido, em sua mente:</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- MATE-OS!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Deixou o terço cair de suas mãos. Logo após o terço, Antonio caiu também.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- VINGUE-SE PELA IGREJA!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Uma voz feminina, poderosa - como se fosse o mar batendo contra as rochas - gritava em sua mente.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Minha santa? É a senhora? - perguntou Antonio, trêmulo, com palpitação e suor intenso.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Ele não ouviu mais nada. Nenhum assovio divino, nem uma tosse celestial. Silêncio. Antonio se ergueu, pegou o terço e o deixou na bíblia. Colocou suas sandálias surradas e correu até a paróquia.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Chegando às portas da paróquia, procurava atentamente pelo padre.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Padre Afonso! Padre Afonso! PADRE AFOOOONSO!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Silêncio. Ninguém respondia. Os santos parados no altar olhavam para ele com compaixão. Outros olhavam para cima. Jesus na cruz olhava para ele com frieza. Uma voz se revelou.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- VINGUE-SE POR MIM! PELA IGREJA! PELO SUCESSOR DE PEDRO!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Você quis dizer SÃO PEDRO, não?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- TANTO FAZ! VINGUE-SE POR TODOS NÓS!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas quem seria a senhora? - Antonio sentia suas pernas cada vez mais vacilantes. Apoiou-se em um dos bancos.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Eu sou a mãe de todos os seres, a mãe de Deus, a mãe da humanidade!</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- NOSSA SENHORA! - gritou e se prostrou, suando em bicas.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- LEVANTE-SE E VINGUE-SE POR NÓS!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">A voz se dissipou e Antonio já estava praticamente deitado de bruços, se retorcendo. Começou a balbuciar palavras sem sentindo, em uma língua estranha. O padre Adolfo se aproximou em alta velocidade e se abaixou para socorrer o pobre fiel.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Em nome de Cristo, o que você tem?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Padre, eu ouvi a santa!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Qual delas?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- A maior de todas! SANTA MARIA MÃE DE DEUS!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Quando? Como? Onde?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Agora! Ela começou a falar! Na minha casa e aqui também! - gritava exaltado, com espumas de saliva nos cantos da boca.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Antonio, vamos beber água. Descanse um pouco e fale um pouco mais sobre isso.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Não padre! Não tenho tempo a perder. Eu recebi ordens divinas! Sou um servo obediente!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Que ordens?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Divinas! Ordens divinas!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Meu Deus eterno! QUAIS ORDENS?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Antonio se ergueu se desvencilhou das mãos do padre que o sacudia enquanto fazia as perguntas, e correu para fora da paróquia. O padre olhou para a estátua de Maria e esboçou um sorriso forçado.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Tem gente que não tem conserto - pensou o Padre, limpando os resquícios de saliva que Antonio deixara no chão.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">O céu estava limpo, o sol convidativo, os pássaros voavam em círculos e algumas nuvens desfilavam secas, isoladas. Antonio chegou em sua casa e sem pensar muito, correu até a cozinha. Abriu a gaveta e puxou uma faca de cortar carne. A faca devia ter vinte centímetros, afiada e com o cabo desgastado. Trocou sua camisa, bebeu um copo d'água, rezou um pai nosso e uma ave-maria e correu para a porta. Fez um sinal da cruz ao sair e foi até o ponto de ônibus. Aguardou pacientemente a chegada de seu ônibus. Paciência que só pessoas que sabem o que fazer na vida, têm. Antonio sabia o que fazer. Ele era um mártir, um santo maldito, um instrumento desafinado nas mãos de Maria. O terço estava enrolado em sua mão direita e a cada conta que desfilava pelos seus dedos, ele rezava um pai-nosso, uma ave-maria e um credo dos apóstolos.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">No ônibus, assuntos triviais permeavam o ar. Fofocas, mentiras, verdades. A humanidade se entrelaçava em verbos e substantivos. Eu faço, tu fazes, eles fazem. Primeira pessoas, segunda e terceira. Pessoa pra dar e vender. Mulheres com axilas mal raspadas, axilas cinzas. Braços gordos, cabelos mal penteados. O motor do ônibus tentava dialogar na mesma intensidade das pessoas. Decibéis e mais decibéis circulavam o ambiente. Janelas fechadas, janelas abertas. Espirros e tosses. Era o mundo em seu nível mais subterrâneo. A periferia tinha vida. A vida que Deus não desejou para seus filhos. Mas quem se importava?</span><span style="font-size: 10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Antonio parecia alheio a tudo.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome...</span></i><i><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span></i><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco...</span></i><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Creio em Deus Pai, todo-poderoso...</span></i><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">A linha chegava ao fim. Terminal Santa Cruz. Desceu lentamente e se dirigiu ao shopping. Atravessou a avenida e rumou para a igreja de Nossa Senhora da Saúde. Eram cinco horas da tarde e Antonio preferiu aguardar até o anoitecer. Ficou parado com sua faca parada entre a cintura e a calça. Continuou rezando e observando as pessoas, apressadas, cabisbaixas, passarem pela igreja e não prestarem reverência alguma com o sinal da cruz.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome...</span></i><i><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span></i><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco...</span></i><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Creio em Deus Pai, todo-poderoso...</span></i><i><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span></i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Após uma hora de espera, foi até o orelhão.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Marco? Está mais calmo?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Só me faltava essa! Só me faltava essa! - Marco berrava ao telefone.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- O que? O que lhe falta?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Nada, Antonio. Esqueça! O que você quer?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Marco, eu tive uma revelação. Maria, nossa querida mãe, falou comigo!</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas que diabos! Como assim "nossa querida mãe"? Você tá louco?</span><span style="font-size: 10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- A virgem santíssima!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Você diz a Maria, nossa senhora e tal?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Isso! Ela falou comigo! Ela falou comigo! - repetia o acontecido enquanto apontava para o céu.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Hahahaha! Você está levando isso muito a sério, Antonio! Vamos num psicólogo, é sério...</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Ai de você que não acredita em mim! Ela falou comigo, ela é real! Ela pediu vingança!</span><span style="font-size: 10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Meu Deus do céu! Antonio, onde você está? - Marco captou a situação.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Aqui na Santa Cruz.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Espere aí! Espere aí, ouviu? Espere!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Marco desligou o telefone e se arrumou prontamente. Pegou seu celular e discou para o 190.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Polícia Militar de São Paulo, em que posso ajudá-lo? - uma voz fanhosa escorria do telefone.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Por favor, envie uma viatura para a igreja Nossa Senhora da Saúde! O mais rápido possível. Algo terrível está para acontecer! Sejam rápidos!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas do que se trata a ocorrência? Pode me detalhar? - a voz parecia se derreter.</span><span style="font-size: 10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Um lunático está para matar muita gente... coisa religiosa! - Marco corria até o metrô, enquanto falava de forma ofegante a atendente.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Qual seria o endereço?</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Avenida Domingos de Moraes! É ao lado do shopping!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Entendido. Uma viatura está indo até lá.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Mas tem que ser rápido! Obrigado!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Marco correu por mais alguns metros e alcançou a estação do Tucuruvi. Puxou o bilhete único e mirou a catraca que separava a área comum da área de embarque. Porém algumas notas de dois reais caíram no chão. Velha mania de pegar o troco da padaria e não se dar ao trabalho de puxar a carteira, abri-la e depositar o dinheiro lá. O troco sempre ficava pra fora da carteira.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- Com todos os diabos! - exclamou enquanto se prostrava para apanhar as notas fugitivas.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">As pessoas ziguezagueavam pelas escadas e Marco descia como um deslizamento de terra. Chegou ao embarque do trem, sentido Jabaquara (só existia esse sentido mesmo, afinal, o Tucuruvi é o outro extremo da linha azul do metro paulistano) e se dirigiu a uma das pontas da plataforma, porém não havia sinal de trem chegando. Agachou-se e pôs-se a respirar fundo. Uma frustração contaminou seu peito e a impaciência se refletia nos movimentos frenéticos de seus pés.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">------------------------------------------------------------------</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Na Santa Cruz, Antonio continuava sua observação. A revolta de sua mente se confundia com seus pensamentos. Explosões de confusão irradiavam toda sua cabeça.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome...</span></i><i><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span></i><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco...</span></i><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /><br /></span><i><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Creio em Deus Pai, todo-poderoso...</span></i><i><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /></span></i><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Pessoas riam e se encaravam. Animais em sua caça sexual, bancando idiotas para se exibirem, tentando mostrar suas penas de pavão, numa conquista artificial, com aquele fundo que fede a sexo e libertinagem. O carrinho do acarajé estava rodeado de pessoas que faziam seus pedidos, com dinheiro à mão, exigindo mais camarão, menos caruru, um capricho benevolente no vatapá. A Bahia e sua culinária se concentravam naquele metro quadrado a frente da igreja e ninguém dava bola para as imagens de pedra, imponentes à frente da igreja. Os portões de ferro estavam abertos, mas ninguém arriscava entrar. Ninguém seria um exagero. Algumas senhoras rastejavam suas carcaças velhas pela escadaria desgastada rumo ao templo.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">Antonio puxou sua faca e observou um homem, nos seus quarenta anos, passando pela igreja. Dirigiu-se a ele, decidido no intuito da vingança divina. Porém teve que recuar. O homem colocou sua pasta na mão onde tinha algumas sacolas e, olhando para a igreja, fez o sinal da cruz. Antonio sorriu. Porém aquilo não salvaria o dia. Virou seu olhar para a direita e acompanhou os passos de uma adolescente solitária, loira, vestindo uma saia média e all-star branco, tomando um sorvete de casquinha. Ela cuidava para que a massa do sorvete não derretesse e passou reto pela igreja, como se não houvesse nada por ali. Ele correu até a jovem e parou. Sincronizou seus passos ao da moça e esperou pelo seu trajeto. Virou na rua Santa Cruz. Antonio sorrateiro se apressou e puxou a faca. Um corte profundo se projetou nas costas da menina. Ela deu um passo largo para frente e tornou para ver quem a atingira. O cheiro perfumado de seus cabelos se alastrou pelo ar. Gritou. Porém Antonio não se abalou e em questão de milésimos, enfiou a ponta da faca em sua garganta. Jatos de sangue ganhavam o ar sujando a calçada. Sua casquinha caiu e se misturou ao sangue. Pessoas que viram a barbárie gritavam do outro lado da rua. Carros passavam às dezenas e não deixavam ninguém atravessar. Quem estava na mesma calçada de Antonio se deu ao trabalho de fugir do louco. Um homem pegou um cabo de vassoura abandonado num poste junto a uns sacos de lixo e correu em direção de Antonio. Parecia o fim da linha. Girou sobre seus calcanhares e correu novamente até a entrada da igreja. O homem com o cabo da vassoura se deteve ao passar pela garota ferida, que se contorcia no chão. Parou para socorrê-la aos gritos.</span><span style="font-size:10.0pt; font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">- ASSASSINO! PEGUEM O ASSASSINO!</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">O guerreiro católico com a faca exposta parou enfrente à barraca de acarajé e percebeu que os carros continuavam a transitar intensamente. Algumas pessoas do outro lado da rua gritavam desesperadamente. Antonio viu ali mais uma oportunidade de vingança. Um homem gordo, olhos vazios, calvo e cabisbaixo, caminhava com a classe de um andarilho maldito. Passou pela igreja, porém apenas vasculhou seu bolso direito. Não achou nada. Também não fez o sinal da cruz. Como um raio, a faca de Antonio trespassou a nuca do homem. Ele apenas ergueu suas mãos, não tão alto, e caiu de joelhos, logo em seguida, se esparramou pelo chão, como se estivesse num transe. Expirou.</span><span style="font-size:10.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><br /><br /></span><span style="font-size:10.0pt;mso-bidi-font-size:11.0pt;font-family: "Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR">----------------------------------------------------------------</span><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif";mso-fareast-font-family: "Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language:PT-BR"><o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal" style="margin-bottom:0cm;margin-bottom:.0001pt;line-height: 13.5pt"><span style="font-size:10.0pt;font-family:"Trebuchet MS","sans-serif"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";color:#333333;mso-fareast-language: PT-BR"><br />- ESTAÇÃO SANTA CRUZ - a voz feminina saía chiada do alto-falante do trem.<br />- Cacete de trem maldito, vai logo, desgraça! - Marco rosnava junto a porta do trem.<br /><br />As portas se abriram e o cheiro de fast-food do shopping anexado à estação tomou conta do ambiente. Marco cortou aglomerações de pessoas e escolheu a escada convencional. Pulava de três em três degraus e em segundos chegou às catracas. Avançou pela saída da Avenida Domingos de Morais e ganhou a calçada. Jovens e mais jovens conversavam e gritavam, dando largos sorrisos e pequenos abraços uns nos outros. Marco não pôde observar toda a humanidade que seguia pela região. Ele precisava salvar essa humanidade, ou melhor, um pouco dela. Pessoas corriam por todos os lados. Gritos histéricos de mulheres permeavam a atmosfera do lugar, carros paravam curiosos e motoristas na altura da rua Loefgreen buzinavam sem parar. Marco encontrou o caos e ficou decepcionado, pois nenhuma viatura podia ser vista, nenhuma autoridade, apenas desespero. Correu erguendo sua vista, atrás de Antonio, dando pequenos saltos com o pescoço erguido, a fim de ver alguém que fosse o centro das atenções, o motivo de todo o alvoroço urbano que se instalara. De repente uma sirene se juntou a gritaria, cantadas de pneus e um cheiro de borracha queimada. Marco aliviou sua expressão, baixando as sobrancelhas, tirando a tensão de sua testa. Enfiou-se no meio da massa, procurando por Antonio, empurrando alguns curiosos, trombando em outros desesperados.<br /><br />- Ele está armado! Ele está armado! - alguém gritou se descabelando.<br /><br />Pessoas ficavam à espreita ao lado da banca de jornal, outras acendiam seus cigarros e observavam de longe, perto do ponto de ônibus. No meio da balbúrdia, Antonio estava eufórico, babando, girando a faca para o alto.<br /><br />- Virgem Maria! Rogai por nós pecadores! Despertai católicos! Despertai!<br />- Antonio, seu desgraçado, o que você fez?! O que você fez?! - Marco juntos as mãos à frente de sua boca, incrédulo diante do homem esfaqueado na nuca.<br />- Marco! Eu disse que me vingaria!<br />- Vingaria o quê, seu maluco? - um popular questionou com ódio banhando cada palavra.<br />- A igreja! A igreja católica apostólica romana!<br />- Pela cruz de Cristo! Largue essa faca agora! - um cabo da polícia militar ordenou apontando sua arma - Eu vou atirar, largue essa faca!<br />- Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco... - Antonio começou a rezar novamente, ignorando a intimação do policial.<br />- Senhor policial! Eu conheço esse lunático. Deixe-me tentar negociar com ele! - Marco se antecipou a qualquer movimento da polícia.<br />- Qual é o seu nome?<br />- Marco Antônio Alves Nazário.<br />- Tente alguma coisa com esse doido. Mas vá logo!<br /><br />Carros das emissoras de televisão já disputavam espaço nas calçadas da região. Links ao vivo congestionavam a programação. Repórteres conversavam com cidadãos comuns que davam seus depoimentos, segundo o que haviam visto.<br /><br />- Antonio, pelo amor de Deus, pare com isso. Largue essa merda agora, por tudo o que é sagrado!<br />- Pelo o que é sagrado! Exatamente isso! Pelo o que é sagrado!<br />- Cala essa boca e largue essa faca! Eles vão te matar se você fizer algum movimento idiota! Desista disso! Você já matou todo mundo que queria! Se entregue!<br />- Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador... - começou a mesma ladainha.<br />- Tenha paciência! - Marco se virou e mirou o policial - Matem esse porra, pelo amor de Deus, ele é louco!<br /><br />Marco se afastou da multidão e sacou um cigarro. Acendeu-o lentamente e soltou um jato de fumaça. De repente uma dezena de repórteres rodeou-o, espetando todas as partes de seu corpo com seus microfones. Luzes fortes queimavam seu rosto e faziam seus olhos arder. Infinitas perguntas entravam por seu ouvido, deixando-o confuso. Um repórter da RedeTV esbarrou em seu cigarro fazendo-o cair. Outro repórter pisou. Foi a conta.<br /><br />- Saiam daqui, seus bostas! Saiam! Eu vou acabar com vocês, raça de merda! - e saiu esmurrando todo repórter que encontrava.<br /><br />Conseguiu se desvencilhar da horda da imprensa e saiu correndo até a entrada do metrô. A zona sul de São Paulo sofria com o congestionamento causado pela interdição da avenida e as vias ao redor estavam entupidas de carros buzinando, pessoas estressadas. Padarias lotadas com pessoas acompanhando programas sensacionalistas que divulgavam os boletins médicos das vítimas de Antonio, comentários de senhoras com braços cruzados, cachorros mijando em postes. A cidade respirava com dificuldade.<br /><br />- Pela última vez, largue essa arma! - desta vez o negociador da polícia ordenou.<br />- Qual é a necessidade de um negociador? Pelo amor de Deus! - um homem de terno comentou com uma mulher horrorizada - Desce a porrada nesse vagabundo!<br /><br />Inesperadamente, uma pedra cortou o ar e atingiu a cabeça de Antonio. Ele largou a faca e colocou a mão na cabeça. Sangrava muito. Sentiu uma tontura e olhou para baixo, tateando o nada, procurando pela faca. O povo que estava num misto de horror e ódio se amotinou e correu na direção de Antonio. Um chute atingiu sua cabeça, alguém pisou em suas costelas, uma gota de saliva tocou sua fronte. Alguém se apoderou da faca do assassino e cravou a mesma na perna de Antonio. Ele estava liquidado. Um policial atirou pra cima e começou a gritar. A maioria se abrigou atrás dos carros e gritava. Alguns policiais correram para socorrer Antonio e se depararam com um homem quase sem vida. Seus olhos não abriam mais e a tonalidade de seu rosto era roxa. Ossos e mais osso quebrados. Ele não se movia. Mal respirava. Subitamente um sussurro:<br /><br />- Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? - dizendo isso, Antonio expirou.<br /><br />Marco assistiu a cena incrédulo, movendo sua cabeça negativamente, sem parar. Um investigador da polícia tocou no ombro dele.<br /><br />- Você vem com a gente, meu chapa.<br />- Que seja - respondeu Marco olhando por trás do ombro.<br /><br />Foram horas desgastantes, exaustivas, mas Marco finalizara seu depoimento. O investigador o agradeceu e pediu que entrasse em contato com ele caso soubesse de algo que pudesse ajudar na investigação.<br /><br />- Pelo amor de Deus, se eu soubesse diria - disse a si mesmo enquanto saía da delegacia.<br /><br />Com sua frieza calejada de anos, acendeu um cigarro e caminhou lentamente ganhando a calçada. Arqueou a sobrancelha e avistou um bar. Hesitou um pouco e passou reto. Jogou o cartão do investigador em uma caçamba de entulhos e cuspiu catarro numa árvore. Ando pela rua Onze de Julho até virar na Domingos de Morais. Poucas pessoas esperavam ônibus num ponto. Chegou ao metrô Santa Cruz. Uma longa jornada até o Tucuruvi, zona norte de São Paulo. Apenas ele estava no vagão quando o trem chegou ao destino final. Enquanto andava pela rua Ausônia, acendeu mais um cigarro e permaneceu ligado. Virou na avenida Mazzei e se arrastou por poucos metros até seu prédio. Sem porteiro com condomínio baixo. Subiu as escadas até o terceiro andar e abria a porta. O cheiro de cigarro já havia sido anexado ao ambiente e as paredes pareciam cada vez piores. O taco no chão estava descolado e vez em outra, Marco tropeçava em um. Foi até à geladeira e não encontrou cerveja alguma. Foi novamente à sala e abriu um pequeno armário onde achou um terço de garrafa de uísque. Serviu um copo arredondado e colocou três pedras grandes de gelo. Pensativo, sentou na velha poltrona empoeirada, vencida pelo tempo, e pegou o telefone.<br /><br />- Alice, você viu no que deu toda a brincadeira? - em seguida tomou um gole do drink.<br />- Eu vi, eu vi. Estou aterrorizada! E se me descobrirem? Eu tô fodida! - sussurrou de forma exaltada a amiga de Marco.<br />- Cala essa boca, por Deus! O investigador se convenceu da história que os contei. Alguns conhecidos de Antônio, inclusive o padre da paróquia dele alegaram que ele tinha distúrbios mentais. E ninguém vai imaginar que a voz na casa dele e na igreja era sua. Fique tranquila - Marco girava o gelo no copo - executamos um plano perfeito!<br />- Plano perfeito? Não era para ele morrer! Só ser preso, só isso!<br />- E eu tenho culpa se a polícia demorou pra chegar? Se tivessem chegado, teriam prendido o Antonio com a faca na mão. Mas é um bando de incompetentes! Recebem uma denúncia, mas preferem ficar comendo coxinha. É foda, viu!<br />- Tá, tá bom. Pelo menos você está livre dele. Assim, nem de um sanatório ele liga. Ele já era.<br />- Sim, Alice. Vamos esquecer essa merda toda, ok? - Marco tentava finalizar o assunto enquanto tomava o último gole da bebida.<br />- Claro. Mas me diga uma coisa: não era mais fácil você se mudar daí? Ou trocar o número do telefone? - Alice enrolava o fio do telefone com seu dedo indicador.<br />- Você tá louca, Alice? Sabe o trabalho que é encontrar alguém que alugue apartamento sem seguro-fiança? Sem fiador? Quase impossível! Morou num apê legal, numa região legal, perto do metrô. O Antonio não servia pra nada mesmo, foda-se! Ele iria morrer de uma forma ou outra. Que se foda o Antonio!<br />- Calma, calma! Só estava curiosa! Mas eu entendo seu ponto de vista. Bem, eu passo aí amanhã, pra gente meter um pouco, aliviar a tensão... - sua voz já se esparramava em desejo.<br />- Vem agora. Te pego no metrô. Na catraca. Aproveito e passo no posto de gasolina pra comprar mais cerveja. Topa?<br />- Tô lá em quarenta minutos. Beijo.<o:p></o:p></span></p></div>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-84415336091997500552009-11-04T18:01:00.004-02:002009-11-04T18:15:16.608-02:00Enxada, Regadores e Sacos de Estercodo que adianta o canário fugir da gaiola<br />se ele não sabe voar?<br />do que adianta almejar as nuvens<br />se ele não pode enxergar contra o sol?<br /><br />a vida é engraçada<br />fazemos o mal, mesmo sabendo o caminho a seguir<br />mesmo sabendo que a chuva que alaga cidades<br />também é a chuva justa<br />que garante as coisas nos seus devidos lugares<br /><br />tem gente que ri de Deus<br />e diz que o ama<br />tem gente que desafia a natureza<br />o fluxo natural da vida<br />tem gente que acha que uma semente não germina<br />e não teme uma colheita maldita<br /><br />tem gente que sabe plantar<br />mas não quer colher<br />mas quem é você, humano<br />pra pensar que pode agir<br />no crescimento de uma roseira?<br />pode alguém evitar que nasça com espinhos?<br /><br />somos todos agricultores<br />da felicidade ou da solidão<br />mãos calejadas pela enxada, regadores<br />e sacos de esterco<br /><br />você pode ignorar, mas isso nunca irá mudar<br />a vida prega peças<br />como um palhaço justo e impiedoso<br />nesse circo previsível<br /><br />você lembra daquele dia quando lhe confrontei?<br />"você pode mentir pra mim, mas olhe no espelho.<br />tente mentir pra ele"<br /><br />aliás, quando você se olha no espelho<br />VOCÊ VÊ ALGO?Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-14278189276101822312009-10-28T10:59:00.003-02:002009-10-28T11:04:57.674-02:00É Melhor um Temor na Mão que Dois Relógios Contandoa vista dos apartamentos muda<br />a vida não<br />agora vejo casinhas bonitas rodeadas<br />por prédios cada vez mais numerosos<br /><br />a vida é o que vejo<br />é o que sinto<br />é o vento que bate no meu rosto<br />um dia frio, outro dia quente<br /><br />a vida não é o futuro<br />você pode pensar nele<br />pode planejar o futuro<br />mas não pode vivê-lo<br /><br />você pode mudar o passado<br />a não ser que tenha uma perna amputada<br />a não ser que tenha matado alguém<br />você pode modificar as consequências do que não é irreversível<br />você pode fazer o futuro<br />hoje você pode<br />mas não pode viver o futuro<br /><br />agora é presente, opa agora já é o futuro<br />peraê, o segundo que passou já é passsado<br />opa! o segundo que vem é o futuro!<br />alguém pode jogar o meu relógio no lixo?<br /><br />esqueça seu relógio<br />viva o hoje para hoje<br />viva o hoje para o futuro<br />mude seu passado<br />tema o seu futuro<br /><br />que horas são?Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-44088647654277876232009-10-22T10:39:00.005-02:002009-10-22T10:57:37.210-02:00Uma Ótima Mulher, um Bom Cachorro e um Time de Futebolparece que tudo me foi tirado<div>a música, o dinheiro e o sorriso</div><div>não não, não sou infeliz</div><div>apenas não tenho alguns acessórios</div><div>tenho uma ótima mulher</div><div>um bom cachorro e um time de futebol</div><div>mas tenho dores de cabeça, sinusite<br />e a leve impressão de que o tempo passa<br />agressivo, sorrateiro, traidor<br />e eu não tenho dinheiro nem pra comer um pastel<br /><br />as pessoas passam, carros, cachorros<br />tartarugas nos esgotos<br />peças de carnes em caminhões<br />folhas secas aqui na janela<br />do décimo quinto andar<br />como voam alto!<br />eu as invejo<br /><br />queria me livrar, me secar<br />planar e sentir o vento me guiar<br />soa como música, como poema barato<br />de mente baratas que não valem um puto sequer<br />mas é a verdade, simples e romântica<br />miserável e ensurdecedora<br />que me atordoa de manhã durante o café<br />enquanto o pão esquenta na frigideira<br />enquanto o apresentador dá risadas no rádio<br /><br />eu sou uma cópia barata dos meus medos de infância<br />barata porém fiel ao original<br />eu sou o vômito dos meus nervos<br />eu sou o suor do meu cagaço<br />EU SOU, me ajude!<br />pareço abandonado por EU SOU<br />parece que o ouvi dizer: TU ÉS<br />um fracasso<br />um lixo<br />um medroso<br /><br />enquanto eu não for (alguma coisa)<br />EU SOU será nada<br />porque ninguém pode pedir e não ir atrás<br />ninguém pode confiar em muletas e se conformar com elas<br /><br />eu quero andar, Deus, como eu quero!<br />mas parece que a cada passo, uma pedra me derruba<br />uma fraqueza me abala,<br />um terror noturno me aflige<br />uma seta que voa de dia me atinge<br />uma peste que anda na escuridão me amedronta<br />e temo a mortandade que assola ao meio-dia<br /><br />quando pequeno, ouvia vozes lúgubres ditarem salmos e mais salmos<br />eu gostava do cento e trinta e nove<br />me sentia em paz ao saber que Ele me cercava por todos os lados<br />me sentia calmo ao saber que não poderia me esconder dEle<br />por que faria isso?<br />mas hoje tento me esconder por vergonha<br />e me sinto perturbado ao saber que Ele pode ver tudo<br />inclusive meu frágil coração<br /><br />chora, poeta, chora<br />chora enquanto existem lágrimas<br />quando elas secarem e você olhar para trás pela milésima vez<br />ENTÃO ELE SE LEMBRARÁ DE LHE TRANFORMAR<br />EM UMA ESTÁTUA DE SAL<br /><br />escutem o que eu lhes digo: olhem para frente, PARA FRENTE!</div><div><br /></div><div>e agradeçam por ter uma ótima mulher</div><div>um bom cachorro<br />e um time de futebol<br /><br />eu te amo por tudo que fazes por mim<br />NÃO, ESSE NÃO É O SEU POEMA<br />mas você é a palavra que sai da minha boca<br />é o açucar que corre escasso pelas minhas veias<br />que me faz olhar pra frente<br />e não me deixa morrer inerte<br />esculpido nos meus temores<br /><br />você é, e pra sempre será<br />o meu amor.</div>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-53429516484999293152009-06-15T16:29:00.002-03:002009-06-15T16:59:32.392-03:00Seja Bem-Vindo, Eunem a minha mãe acredita<br />nem ninguém acredita na mudança<br />quando tudo o que fazemos<br />é mudar pra melhor<div>o bem não convence, o mal é aceitável<br /><br />quando as coisas são tão perceptíveis<div>tão tangíveis<br />existe a maldade e sua catarata<br />escurecendo a visão<br /><br />mas sei quem enxerga</div><div>sei quem dá de costas </div><div>para o pó da sujeira do passado</div><div>eu vivo por isso<br />eu vivo pra ELA</div><div><br /></div><div>eu mudei de verdade<br />não existe ânimo, nem motivação<br />para errar novamente<br />eu sou um novo homem<br />com novos sonhos, novas aspirações<br />um novo amor</div><div>e pra mim já basta<br /><br />o brilho nos meus olhos<br />a largura do meu sorriso</div><div>a força do meu abraço<br />e o tamanho dos meus passos<br />tudo evidencia o retorno<br />a volta do antigo homem que fui<br />sempre fez falta sê-lo<br />agora que o sou, também sou feliz<br /><br />sou feliz por amar novamente<br />com intensidade<br />e com paixão<br /><br />seja bem-vindo, eu. você fez muita falta.<br /></div></div>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-15930558504427014072009-05-13T12:53:00.003-03:002009-05-13T13:38:27.731-03:00XXX Teaser XXX<p class="western" style="margin-bottom: 0cm">(...)<br />- Tudo bem, querido. Aos diabos! – Claudia deu sorriso e puxou um cigarro.<br />- E você está morando onde, coração?<br />- Estou na casa de uma amiga travesti, lá na Santa Cecília.<br />- Em nome de Deus! Hahaha!<br />- O que foi? – perguntou contrariada, soltando fumaça pelo nariz, enqaunto guardava o maço na bolsa.<br />- Calma, meu bem. Acho os travestis engraçados, só isso. Fico imaginando como deve ser morar com um.<br />- É normal, se você quer saber. São gente como qualquer outra. O foda é o preconceito. Mas são gente finíssima.<br />- Não duvido. Só acho curioso – acendi um cigarro também – Pois bem, arrume suas malas e vamos morar comigo. O que acha?<br />- Tem certeza? Assim tão rápido?<br />- Olha, tudo pra te ver todos os dias! Tudo, extremamente tudo! – ergui minha voz assim como ergui meu cigarro.<br />- Que assim seja! – ela também ergueu seu cigarro.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Não havia achado meu whisky nem o resto das compras. Que se dane.<br /></p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Rumamos para a Santa Cecília num ônibus lotado. Ficamos em pé durante todo o trajeto e me pus atrás de Claudia, encoxando sua bundinha redonda. Eu não me agüentava de alegria. Às vezes me beliscava, me ria, me tudo. Mordia sua nuca sem o mínimo pudor e ela dava um gemidinho sem se preocupar com o olhar dos outros passageiros. Eu estava a ponto de uma erupção de tesão, erupção de lava aquecida com paixão, amor e desejo. Eu era um vulcão ambulante, pronto para explodir com tudo a minha volta. Descemos há cinqüenta metros do prédio onde morava o travesti. Ela perguntou se eu queria subir e eu educadamente me recusei acendendo um cigarro. Fiquei observando o trânsito, as pessoas estranhas que passavam e o tempo passava. E ela não descia. Comecei a imaginar milhões de coisas. Talvez o travesti enfurecido pela saída brusca da amiga tenha feito Claudia como refém, ou dado facadas em seu lindo colo, ou entorpecido ela com éter ou ainda mais: trancado minha mulher num banheiro fedendo à vaselina e cheio de rastros de drogas! Fiz cara de nojo ao ver um travesti passar e cuspi no chão. Comecei a andar de um lado ao outro, acendi outro cigarro e pus as mãos no bolso. Cocei a cabeça e puxei um pouco do meu cabelo. “Cala a boca, cérebro idiota dos infernos”, eu murmurava. Avistei um boteco caindo aos pedaços e sai correndo até lá.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Um conhaque com limão!<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">O atendente me olhou com cara de mosca cagada e pegou a garrafa de Dreher. Cortou o limão lentamente e o espremeu no copo. Um gota de limão voou no olho do infeliz.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Caralho de limão! – gritou o atendente, abrindo a torneira, buscando água para aliviar o incômodo ácido.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Olhei impaciente para o lado de fora e a Claudia ainda não havia descido. “Caralho, cérebro idiota, talvez ela tenha muitas roupas, maquiagens, chapéus, vibradores, discos entre outras coisas pra arrumar”, pensei enquanto voltava ao balcão. O atendente ainda coçava o olho e o meu copo continuava com umas gotas de limão e mais nada. Peguei a garrafa e servi uma dose. Peguei a outra banda do limão e a espremi. O drink estava pronto. Quando levantei o copo, o atendente puxou um pano e o ergueu.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Ei! Ei! O que é isso? Eu sirvo as doses aqui, camarada! – perdigotos voavam a esmo, como uma chuva de granizo em meu rosto. Me irritei.<br />- Eu peço uma dose, e você demora! O que custa eu servir aqui a minha própria dose?<br />- Eu sirvo as doses aqui!<br />- E daí? Não estou falando nada contrário a isso! Estou apenas dizendo que preciso da dose rapidamente e tive que me servir! Tirei um pedaço de você? Você serve a dose de uma forma especial?</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">O atendente parou por alguns segundos e ficou me encarando. De repente, jogou o pano em minha cara. Atitude infantil. Peguei a dose, dei uma gole rápido e joguei o resto na cara dele.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Desgraçado! Desgraçado! – pulava e gritava como um macaco com pimenta no rabo – Meu olho, seu miserável, filho duma puta!<br />- Vai tomar no seu cu! – revidei, aproveitando sua cegueira momentânea e dando o fora daquela pocilga.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Cheguei perto do prédio do travesti e fiquei parado na esquina, observando de longe o movimento dentro do boteco. Nada aconteceu. Nem sinal do mocorongo. Acendi outro cigarro e nada da minha mulher chegar. “Puta que me pariu!”, rosnei enquanto andava em círculos. Senti um toque no meu ombro direito. Não podia ser a mão da Claudia. Era pesada e passava uma sensação de morte iminente. Me virei.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Campeão, ta afim de uma diversão essa noite? Boceta na cara a noite toda! Vinte conto pra entrar, quatro latinhas de Brahma pra beber! É só entrar ali – apontou para um puteiro sujo chamado Gengis Khan American Bar.<br />- Gengis Khan? Hahaha! Puta merda, só me faltava isso mesmo! – exclamei em meio a risadas.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">O gorila que me abordou era um negro imenso, mãos gigantes, como meu ombro já havia sentido, e uma cicatriz na fronte, devia ter sido alguma facada de raspão. Ele me olhou confuso, coçou o queixo e franziu a testa.<br /></p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- O que tem o nome do lugar, campeão? – me questionou ainda com a mão no queixo.<br />- Nada, cara, nada. Só achei engraçado.<br />- Bem, se quiser, entra lá. Diversão garantida, falou?<br />- Falou, mas eu passo. Já tenho mulher. Agradeço de verdade.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Ele deu de ombros e voltou para a entrada do puteiro. Respirei fundo e me deparei com o que havia dito segundo atrás: “já tenho mulher”. Meu Deus, há poucas horas eu não me imaginava mais feliz. Me via em alguns meses como um mendigo, igual os que queria chutar e botar fogo. E agora tenho minha mulher. A vida era cheia de surpresas e eu, um moleque me esbaldando com o presente numa manhã de natal.<br /></p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm"><br />Tive uma idéia. Corri para a entrada do prédio e nada. Apertei todos os botões de interfone, de todos os apartamentos. Em alguns segundos, várias vozes começaram a responder.</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Sou eu! – gritei com a mão na boca, abafando minha voz.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Algumas pessoas perguntavam “eu quem?”, porém alguém que devia estar a esperar por um cara de voz embargada, abriu a porta do prédio sem a mínima cerimônia. Dei uma risada e pensei no que fiz: “sou um gênio!”. Fui de porta em porta tocando as campainhas. Peguei um papelzinho que estava no bolso de minha camisa e fingi ser uma referência de endereço.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Pois não? – era uma mulher descabelada, de roupão de banho, que havia atendido a porta.<br />- É aqui que mora a Claudia? – perguntei olhando para o papelzinho.<br />- Claudia? Não, você tocou no apartamento errado – respondeu me olhando com desconfiança. Ela só não desconfiou que um de seus seios saltou do roupão. </p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Tentei olhar nos olhos dela, mas não resisti e mirei minha vista nos seus mamilos. Ela percebeu a investida dos meus olhos e percebeu sua nudez. Bateu a porta na minha cara. Pude ouvir ela praguejando contra tudo e todos lá dentro. Dei uma risada e fui para a porta ao lado. </p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">A abordagem era sempre a mesma, e nada da Claudia. Eu desanimava toda vez que uma mulher ou homem atendia. Eu queria que um travesti atendesse, para dar um murro na cara dele, ameaçá-lo de morte caso chegasse perto de minha mulher de novo. Resgatar a pobre Claudia do cárcere do banheiro e voltar triunfante para o meu apartamento, trazendo minha donzela em segurança. Já estava no quarto andar e nada de travesti, nada de Claudia, nem cárcere privado e socos na cara. O que me tranqüilizava é que o prédio não tinha elevador, o que faria eu ver a Claudia descendo pelas escadas. No quinto andar, no segundo apartamento, toquei a campainha impaciente.<br /></p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm"><br />- Já vai! – gritou uma voz de mulher.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">A porta se abriu e pra minha frustração, outra mulher. Como mandava o script, fiz a pergunta sobre a Claudia. Quando me preparava para dar as costas me desculpando pelo incômodo, a mulher pediu para eu entrar. Interrompi meu movimento de saída e olhei para dentro do apartamento. Claudia estava com uma toalha enrolada na cabeça, e outra enrolada em seu corpo.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Querido! Me desculpe a demora! Fui tomar um banho enquanto a Gisele arrumava minhas coisas. Ela estava dobrando minhas roupas. Pensei que não ia demorar tanto, e acabei atrasando. Entre!<br />- Tudo bem, coração. Licença – limpei meus pés no capacho de entrada e adentrei o apartamento.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Cumprimentei Gisele com um beijo e sentei no sofá. “Que bom, o traveco não está aqui”, pensei. O mulherão entrou na cozinha e ouvi barulho de copos. <br /></p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- O quê você bebe, Evandro? – perguntou Gisele, aos gritos.<br />- O que temos aí? – e me direcionei para a cozinha.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Gisele era uma mulher atraente, com seios fartos, pernas fortes, e um rabo redondo, perfeito. “Que a Claudia me perdoe, mas que mulher gostosa!”, pensei enquanto olhava para as pernas da moça. Ela tinha vodka no congelador e umas latas de cerveja.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- As cervejas ainda estão gelando. A vodka está geladinha! Gosta de caipiroska? – me perguntou com voz suave e sedutora.<br />- Eu amo caipiroska. Você sabe fazer? Qualquer coisa, eu faço. Não se incomode!<br />- Não, não. Você está no meu apartamento e vai beber a minha caipiroska.<br />- Tudo bem, tudo bem.</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm"><br />Voltei à sala e perguntei à Gisele se podia fumar no apartamento. Ela consentiu e eu saquei um cigarro. Acendi e relaxei no sofá. O amor da minha vida se arrumando lá no quarto e uma gostosa na cozinha fazendo um drink pra mim. A vida não podia ser melhor. Minutos depois, o cigarro chegava na reta final e a gostosona chegava com o drink.</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm"><br />- Caramba, você caprichou! Com canudinho e tudo mais! – me levantei olhando com afinco para os seios da moça. E por olhar somente para os seios, errei na hora de pegar o copo, tocando em sua mão.<br />- Opa! Hahahaha! Aqui está o copo, xuxu!<br />- Me desculpe, me desculpe. Eu sou um distraído! – dei uma risada tímida e uma bicada na bebida – Deliciosa! Docinha? Como você faz isso?<br />- É só tirar uma parte branquinha do limão, aqui é o que deixa amargo. É rapidinho e a caipiroska fica doce.<br />- Vou anotar esse truque!</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm"><br />A Claudia demorava para se arrumar. Eu ouvia o barulho do secador no quarto trancado e me conformava. Gisele foi ao quarto onde estava Claudia e trocou algumas palavras com ela. A moça era uma ótima anfitriã. Além de uma ótima conversa, ela cruzava e descruzava as pernas sem parar e isso foi me atiçando. Cruzei minhas pernas quando senti a ereção chegar. Fiquei sem graça e mantive as pernas cruzadas. Seus seios imploravam por uma bata, algo mais espaçoso. Naquela blusinha não respiravam. Me impressionei com as pernas fortes e torneadas da moça e comecei a sentir um calor danado. Tentei apreciar o apartamento, a decoração de bom-gosto, a televisão maravilhosa de LCD. Uma bandeirinha do São Paulo Futebol Clube. Nada tirava minha atenção dela. Eu queria levantar, mas meu pau estava duro como uma pedreira inteira, prestes a desmoronar. Ela continuava firme à minha frente. Quando ela olhos para um lado, derrubei um pouco de caipirinha no chão. Ela teria que ir para a cozinha buscar um pano.</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm"><br />- O pano fica na pia da área de serviço. Ele está torcido – me instruiu apontando para a cozinha.<br />- Pega lá, meu bem. Não sei nem onde fica a área – tentei negociar.<br />- Deixa de ser bobo, essa apartamento é um ovo. Você sabe onde fica a área de serviço.</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Bufei. Blasfemei em pensamento. Ela começou a dar risadas. A desgraçada já havia percebido. Dei um profundo suspiro e pensei em minha avó, gorda, cheia de varizes, com um biquíni extremamente pequeno, dançando algum hit da Bahia. Não funcionou como de costume. Talvez eu não tenha me concentrado direito na cena bizarra. Pensei em todas as ereções que ocorriam naquele momento, em todo o mundo. Do quarto de motel mais vagabundo ao palácio mais suntuoso. A minha ereção era a mais vulgar, a mais desnecessária, a mais estúpida. Levantei de lado e virei rapidamente as costas para ela. Fiquei de frente com a parede e com o sofá. Enfim um quadro pra me salvar.</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm"><br />- Belo quadro, Gisele – o quadro era horrível. Parecia que o pintor havia dado o cu e logo em seguida pintado aquele lixo.</p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Meu tio. Um grande artista. Me deu quando eu era moleque.<br /><br />“Moleque?!”, pensei erguendo as sobrancelhas. Lembrei que tinha um travesti naquela história. Ele não estava ausente! Gisele era na verdade um Antônio, ou José ou Valdir! E eu impressionado com todo aquele corpo anormal, e nem percebi que a amiga da Claudia era um travesti asqueroso. Malditos transexuais! Senti vergonha de mim mesmo, e quando percebi, meu pau estava novamente em stand-by. Virei com todo orgulho para Gisele.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Vou até lá pegar o pano e limpar essa porcalhada que fiz! – anunciei alegre e satisfeito com minha condição sexual restabelecida.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Caminhei até a cozinha, meio enojado, meio aliviado e alcancei o pano de chão. Quando virei as costas, Gisele estava à minha frente. Com um semblante tendencioso, olhou diretamente nos meus olhos e piscou um olho. Eu girei o pano transformando-o em um chicote improvisado, como fazem os atletas em vestiários, e me coloquei em posição de ataque. Se ela desse um passo em falso, eu a chicotearia com o pano enrolado. Mirei aquela reserva de silicone que ficava em seu busto e estava decidido a deformá-los à base de chicotadas.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Vai com calma, querido... Você sentiu tesão, não? Por que não me toca? Vai ver o que é uma mulher durinha!<br />- Pela cruz de Cristo! Você não é mulher, porra! Se tentar algo, vai levar uma chicotada!<br />- Por que o medo? Só porque eu tenho isso? – Gisele abriu a braguilha da calça e libertou uma enguia gigantesca. Pelos meus cálculos, tinha um metro de comprimento. Mole.<br />- Guarda essa merda, seu veado! Guarda essa merda!<br />- Ou então? Vai chupar essa merda? – enquanto falava, manipulava aquele pedaço de cipó gigante.<br />- Cara, fica na sua com essa merda. É sério, eu to de boa aqui na minha. Essa cozinha é muito pequena pra nós dois! É o último aviso, ou você recua ou pico esse pano na sua rola. Você não vai ter ereção por anos!<br />- Vem aqui, vem! – e partiu pra cima de mim com aquela lança medieval em riste.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Se tocasse em mim, me furaria a barriga. Lancei o pano com violência, que ricocheteou na virilha dela. Ela deu um grito e virou seu membro pra cima de mim. Eu me esquivei batendo a cabeça num dos armários da cozinha. A manjuba dela tocou no meu braço. Eu gritei e ela gritava também. Peguei uma vassoura que estava parada num vão entre a parede e a geladeira e a ameacei. Ela recuou um pouco e segurou o seu pau. Eu gritei pela Claudia, que prontamente saiu do quarto, correndo e rindo. Eu já estava no corredor do prédio.<br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">- Do quê você está rindo, por Deus?<br />- Hahaha! Nada, querido. Nada.<br />- Tem caroço nesse angu! Claudia, me explique essa porra!<br />- Calma, Vandinho. Era só uma brincadeira! Queria ver qual era sua reação se ela desse em cima de você! Quando ela foi ao quarto enquanto eu secava meu cabelo, propus a brincadeira. Queria ver qual seria a sua reação caso você levasse uma cantada dela... – Claudia explicava enquanto se aproximava lentamente.<br />- Cantada, coração? Cantada?! Ela colocou aquela jibóia pra fora! Isso não é cantada, pelo amor de Deus! Foi quase um estupro!<br />- Hahahaha! – Gisele gargalhava com o pau na mão.<br />- Pela alma de São José, do que você está rindo, seu veado? E que merda é essa? Guarda isso aí! Nem sei como cabe numa calça tão apertada!<br />- Calma, Vandinho. Já terminei de me arrumar. Leve essas malas pra baixo, por favor – ela me pedia, linda como nunca esteve antes.</p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm">Peguei as malas sem lembrar que não havia elevador no prédio. Estava encantado com a sua beleza e ao mesmo intrigado com o traveco que permanecia balançando aquela terceira perna, sem nenhum pudor ou respeito. Filho da puta. Uma maleta estava debaixo do meu braço direito e as outras duas, em cada mão. Fui com uma certa dificuldade me equilibrando nos degraus da escada. <br />(...)</p>Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-20072492.post-71324623632458133662009-04-01T14:29:00.002-03:002009-04-01T14:58:08.742-03:00Presenteso presente é um presente de grego<br />um cavalo de tróia<br />uma armadilha barata<br />e não dou confiança pra ela<br /><br />tudo que eu tinha que fazer<br />é pensar nele<br />pois é ele que está presente<br />mas prefiro olhar para o futuro<br />igual minha teimosia em olhar<br />para aquela que não mer quer<br />do jeito que quero que me queira<br /><br />aí olho para trás e remexo velhos baús<br />rasgo velhas feridas<br />desejo a velha máquina<br />que me faria corrigir velhos erros <br />fantasio com traças e me atenho à ferrugem<br />me esbaldando com tesouro que some<br />assim como somem pessoas<br />assim como some o sentido das coisas<br /><br />eu queria abrir o presente e me satisfazer<br />mas sou insensato<br />não abro o presente, guardo-o<br />como um monumento ao meu desespero<br />como uma homenagem morta ao medo<br />medo de que os sonhos morram<br />e os planos esfarelem<br /><br />se Deus alimenta os pássaros e veste os lírios<br />só peço a Ele que me faça esquecer <br />o ontem e o amanhã<br /><br />engraçado, há poucos anos eu amava presentes<br />e amanhã, será que voltarei?<br />(tá vendo? já tô olhando pro futuro de novo)Felipe Munizhttp://www.blogger.com/profile/15288406112699188743noreply@blogger.com4