domingo, dezembro 19, 2010

Desalmado

Eu acho que eram as contas, às vezes penso que era o meu momento conturbado com a Elisa. Enfim, eu andava nervoso naquela época e tudo me irritava. Eu era um animal acuado e inseguro. A falta de dinheiro e de amor me deixam extremamente assombrado e toda essa ausência de elementos de conforto me fazem ouvir jazz melancólico. Eu geralmente me fecho num mundo de tom esverdeado como lodo, como um pântano, um brejo amaldiçoado. Me alimento de sombras e fugas, de tristeza auto-induzida, de lágrimas saborosas. Quem não gosta de sofrer quieto num canto, curtir a sarjeta e se rastejar nos espinhos de uma depressão? O homem precisa disso, todos precisam. Mas santo Deus, estou me perdendo com toda essa divagação.

Eu lembro que eu ouvia Charlie Parker no meu iPod, tentando acalmar todo o turbilhão de pensamentos violentos que apareciam em série na minha mente. Eu andava tão preocupado e carente que existiam duas linhas de pensamentos: as violentas e as indecentes. Ou eu estava com raiva de algum cidadão sofrido que trafegava à minha frente tentando um lugar na lotada escada rolante da plataforma do trem que ia para a Julio Prestes, na Barra Funda ou estava babando em algum rabo. Seria melhor dizer ‘qualquer’ rabo. Eu me flagrava falando em voz baixa: preciso de uma boceta. Eu me envergonhava disso. Eu me auto-julgava, eu me auto-condenava e eu me auto-castigava. E toda aquela situação começava a me irritar porque eu - logo eu - um cara tão simpático e popular, estava impaciente para conversas junto às pessoas mais próximas. Eu não tinha saco para pequenos papos, estava cansado da humanidade. Olhar todos trafegando, entrando no trabalho, sabendo que fariam a mesma coisa de sempre, com o olhar conformado ou o sorriso de pobre estúpido, com todos os diabos, como isso me cansava.

Caminhei até a frente do meu trabalho e finalizei o meu cigarro. Meu pulmão estava pedindo arrego e eu, teimoso que sou, continuei a fumar, no pior clima seco e calorento que a cidade nos oferecia. Eu precisava daquela merda de vício. Puxei me crachá e me identifiquei no portão. Abaixei minha cabeça como um bom operário dos anos 20 faria, e me arrastei pelas estreitas ruas da empresa. Avistei a porta do meu setor e suspirei.

- Mais um dia, puta que pariu... – deixei escapar um breve murmúrio.
- É, mais um dia, amigão! – era Lopes, um paspalho pelego que sempre portava um sorriso pronto para os seus superiores na hierarquia da corporação.
- Hum... – olhei para o lado e ao avistá-lo tentando repousar sua mão em meu ombro direito, me desvencilhei e o desprezei.

Ele permanecia com um sorriso brilhante enquanto eu me afastava rapidamente de suas mãos sujas. Subi a escada e praguejei levemente, amaldiçoando os cigarros que raptaram e esquartejaram minha saúde. Malditos cigarros. Bati o cartão e percebi que estava dentro da tolerância de atraso. Pisquei os olhos lentamente, sentindo que minhas pálpebras pesavam toneladas. Bebi três copinhos de água e alguma garota de má-fama se dirigiu a mim.

- Que bela ressaca, Nelson! A noite foi foda, hein? – era Creusa, uma mulher horrorosa, mal penteada, mal organizada, mal compilada, enfim, mal feita. Deus não foi o responsável por ela. Não o Criador do Universo. Não teria feito tamanha presepada.
- Foda? Faz tempo que não fodo, coração. E não bebi ontem. Tô sem dinheiro. E se tivesse dinheiro, não beberia porque só beberia se não tivesse dinheiro...
- Você está confuso, isso sim.

Esbocei uma réplica à constatação da lambisgóia, mas preferia me reservar. Apenas fuzilei-a com meu olhar de homem vencido e me retirei do recinto. Cheguei em minha mesa e dei outro suspiro. Um peido sacana ameaçou abandonar meu corpo, mas o aprisionei com uma apertada no cu. De mim ele só sairia no banheiro. Chega de constrangimentos. Já vivo constrangido por viver, porra. Me acomodei na cadeira e iniciei minhas operações.

- Bom dia, Nelson! – Diogo me cumprimentava sem pretensão alguma.
- Bom dia – fui seco na resposta, mas ele entenderia, eu estava focado no trabalho.

E dentro do foco, eu passei boa parte do dia, sem olhar para o relógio, sem trocar uma bendita palavra com alguém, a não ser com os clientes que vez em outra insistiam em complicar minha bela vida. Mas eu estava lá, sentado como um velho negro sábio às margens do rio Mississippi, fumando um bom cachimbo e conversando com os pássaros. Eu era o senhor do meu trabalho. Eu era bom naquilo. Enquanto viajava, pensando em New Orleans, com toda aquela música e comida, fui interrompido pelo Diogo.

- Estou com dores, cara. Dor na nuca, sabe?
- Sei sim, tem um ambulatório lá embaixo, passa lá – eu não desviava o olhar da tela de meu computador.
- Putz, não sei se vou chegar até lá. Tô com uma dormência, um formigamento no rosto! O que pode ser? – Diogo estava angustiado, perdido em seus sintomas.
- Bom Deus, man. Deve ser dor de cabeça.
- Meu Deus, minha cabeça parece que vai explodir! Minha nuca, Pai Eterno, o que é isso?! – Diogo exaltou de vez a sua voz e se ergueu.

Como um raio partindo minha mente, parei para pensar: “ele está sofrendo um AVC!”. Levantei de minha cadeira e fui beber mais alguns copinhos d’água. Observei a feição do rosto de Diogo e era de dar dó. Ele estava atordoado, e sentia que ele tentava reagir, mas não conseguia se levantar. Eu realmente estava amargo naqueles dias. Fiquei ao lado do bebedouro, avistando de longe o pobre diabo. Estava esperando ele empacotar de vez para voltar ao meu lugar. Eu não sentia compaixão. Nenhuma boa atitude me atraía, eu queria paz, e paz significava silêncio e distância de qualquer confusão. E o Diogo era a tradução de uma boa confusão. Se ele morre ao meu lado, ou tem um derrame ou sabe Deus o quê, todos cairiam em cima de mim, com perguntas, fofocas do tipo: “ele não socorreu porque não quis” , “ele tinha inveja do Diogo e o deixou morrer” ou “o Nelson é um covarde e desalmado”. Pelo amor do que é mais sagrado, eu quero quilômetros de distância dessas picuinhas.

Diogo permanecia com um mão na cabeça e outra na nuca. Ninguém teve o trabalho de o notar. Nenhuma alma sequer parou para auxiliá-lo, para ouvir seus gemidos de dor. Um pingo de remorso se apoderou de mim, mas logo o sequei e voltei ao meu estado de sentinela. Eu esperava pelo desmaio do Diogo para voltar ao meu assento e continuar meu bom trabalho. Eu estava numa verdadeira tocaia sacana, bebendo litros e mais litros de água. O café chegou na hora certa e lentamente despejei uma boa quantidade do liquido negro no copinho de plástico. Fiquei assoprando e bebendo aos poucos, sempre de olho no desgraçado do Diogo que não cedia à pressão alta. Comecei a ficar impaciente e fui até o restaurante da empresa. Perguntei qual seria o cardápio do dia e quando a senhora que servia o almoço foi conferir as panelas, peguei um saleiro e o enfiei no bolso.

- Carne de panela, arroz, feijão e salada – a mulher me anunciou a lista de atrações do almoço.
- Ah ta, ta certo. Bem, até mais – me despedi com passos apressados. Minha produtividade no trabalho estava comprometida por um homem doente que me assolava com seus pedidos de ajuda.

Voltei ao bebedouro e alcancei um outro copinho de plástico. Abri lentamente a tampa do saleiro e despejei o equivalente a uma colher de sopa de sal. Preenchi o resto com água e misturei com o dedo indicador. “Agora ele morre de vez”, pensei, guardando o saleiro novamente no bolso. Não posso deixar de repetir, eu estava muito amargo naqueles dias. Pelo amor de Deus.

Quando me dirigia para a mesa dele, para oferecer meu elixir da morte, o desgraçado apareceu como uma visão infernal, correndo em minha direção, gritando e praguejando.

- Nelson, me ajude! Nelson! Minha cabeça vai explodir! Maldição! – dizendo isso, trombou comigo, me fazendo cair de bunda, derramando toda a água com sal.
- Vai se foder, Diogo! Que ideia idiota é essa? Sai de cima, desgraçado! - ele caiu como um dejeto por cima de minha barriga.

Ao virar seu corpo, seu rosto estava ensanguentado. Muito sangue saía de seu nariz e seus olhos estavam fechados. Ainda o ameacei, mais pela raiva que por qualquer outra coisa. Mas ele estava imóvel. Pessoas correram ao nosso encontro até que alguém gritou “chamem um ambulância!”. Me livrei do peso de Diogo e o larguei no chão. Um enfermeiro do ambulatório chegou com pressa e mandou as pessoas se afastarem.

- Porra, o que aconteceu com ele? Alguém sabe se ele estava se queixando de algo? Algum sintoma? – o enfermeiro tinha voz firme e inquiria a multidão enquanto segurava a cabeça do Diogo com seu braço direito.

Todos ficaram calados, inclusive eu. Eu não queria ser estrela naquela palhaçada. “Foda-se”, pensei. Mantive silêncio sepulcral.

- Alguém pode me ajudar a carregar o coitado lá pra baixo? – o enfermeiro deixava vazar um pouco de pânico em sua voz. As pessoas estavam paradas, atônitas e inutilizadas pela curiosidade.

Eu prontamente me afastei e fui para a minha mesa. E voltei a trabalhar. Aos poucos as pessoas se dispersaram e em alguns minutos aquela pausa coletiva havia acabado. Claro que o clima era outro. Pessoas tagarelavam sobre a boa pessoa que Diogo era, outras especulavam o que poderia ter acontecido. Eu olhei finalmente para o relógio e vi que faltava ainda um bom tempo para o fim do expediente.

- O Diogo não disse nada para você, Nelson? – minha supervisora era asquerosa com seus quarenta e tantos anos. Dentes apodrecidos e fantasia por homens de fio dental.
- Não me disse nada. Conversávamos sobre um pedido absurdo que presenciamos. Estávamos questionando algumas atitudes do setor de entregas. Só isso. Quando fui beber água, ele começou a sentir os sintomas.
- Que desgraça. Temos que esperar pelo diagnóstico do hospital.
- Vamos esperar. Tomara que dê tudo certo – voltei meu olhar para o monitor.
- Que Deus o abençoe... – ela estava transtornada, com olhar de piedade digno de santa da igreja católica.
- Amém – respondi sem ânimo, tentando fazer com que ela percebesse que estava sendo inconveniente naquele momento.
- Vou te deixar trabalhar agora.

Não respondi, apenas a chamei de galinha grávida em meu pensamento e permaneci hipnotizado pelas luzes de meu monitor.

As horas enfim passaram. Às dezessete horas, a supervisora chegou com a cara inchada, cheia de lágrimas besuntando suas bochechas flácidas e avermelhadas. Ela abraçava um analista enquanto uma outra mulher apertava sua mão.

- Foi um derrame! Ele está entre a vida e a morte! Meu Deus, ajude ele! Por favor, meu Deus! –
ela clamava no meio de todo o setor. As pessoas se sensibilizaram e foram até a triste mulher para consolá-la.
- Vamos rezar por ele, minha querida... – a faxineira ensaiou um abraço tímido.
- Vamos fazer uma corrente de oração. Vai dar tudo certo! – outra boa alma se pronunciou.
- O foda é que esses derrames em pessoas novas são como um enfarto, muito difíceis de se recuperar, acho que ele vai ficar com sequelas – resolvi quebrar meu silêncio.
- Como você é desalmado, Nelson! Agora é hora de pensamento positivo! – uma colega de meu setor, negra como um tição, vociferou como se convocasse um tipo de greve.
- Vá pro inferno, porra. Estou dando meu parecer – eu mantinha uma frieza impressionante.
- Tá certo, Nelson. Vá trabalhar que é melhor – minha supervisora me orientou em meio aos soluços.
- Que Deus tenha misericórdia do Diogo – fui sarcástico e dramático. As pessoas aceitaram minha invocação por misericórdia e se acalmaram.

O expediente chegava ao fim. Pessoas fofocavam à todo vapor. Pessoas se apinhavam ao redor do relógio para bater seus pontos. O Diogo era o assunto da vez. Mensagens de solidariedade invadiram nossas caixas internas de e-mail. Uma mulher, em seus quarenta e dois anos convocava pessoas para uma oração pelo Diogo.

- Você vai visitá-lo, Nelson? – um homem pálido como um doente de lepra se aproximou de mim, expelindo um bafo que misturava merda, cigarro e café.
- Deus de amor, Arnaldo, o que você andou comendo? Seu bafo está horrível, e é sério!

Arnaldo fechou sua mão direita em concha, levou-a até seu nariz e baforou um pouco de hálito na palma da mão.

- Caralho, ainda bem que você me avisou! – dizendo isso, puxou um Trident de canela e começou a mastigá-lo.
- Isso só vai piorar. Vá lavar a boca, escovar os dentes, sei lá.
- Será que é o estômago?
- Pode ser uma úlcera, sei lá. Vai saber, né?
- Deus me livre! E então? Vai visitar o Diogo? – o hálito estava repulsivo.
- Primeiro, vire a cara pra falar comigo. Segundo, não, eu não vou visitar. Deixe a família se encarregar disso – acendi meu primeiro cigarro em horas.
- Olha, primeiro é que quem tem cara é cavalo. E segundo, você é um desalmado, Nelson.
- Eu já cansei de ser chamado de desalmado. E se você não tem cara de cavalo, pelo menos bafo de cavalo pangaré você tem, meu camarada.
- Eu te mostro quem tem bafo de cavalo – Arnaldo se lançou contra mim, irritado com todas as ofensas gratuitas.

Me esquivei do primeiro soco, mas a joelhada veio logo em seguida. Consegui colocar uma mão nos meus bagos para protegê-los. Mas o choque entre o osso do joelho dele com a minha frágil mão de pianista classudo, foi doloroso. Ele deu uma derrapada e se recuperou, porém não esperava que eu me aproveitaria de seu descuido, afinal, ele ficou de costas para mim. Chutei seu traseiro, na parte entre as bolas e o cu. Ele gemeu e deu um leve salto com o impacto do peito de meu pé em seu rabo. Logo em seguida chutei o seu tornozelo direito, o que o fez iniciar uma corrida de fuga desengonçada. Segui o miserável por vinte metros, porém meu pulmão me limitou. Ergui meu punho direito, tremulando-o e gritando.

- Corra, cavalo filho da puta! Corra!

Pessoas estavam paradas, observando a curta briga que ocorreu, todas paradas na calçada do outro lado da rua. Peguei meu cigarro que havia caído no chão e o coloquei de volta em minha boca. Arrumei minha camiseta e sacudi o cabelo. Estava tudo em ordem. Atravessei a rua e percebi que todos os espectadores da luta apertavam seus passos, constrangidos com minha presença. Enquanto caminhava rumo à estação de trem de Presidente Altino, pensava em como eu estava estressado. Aquilo não estava certo, mas acabei misturando esses pensamentos com a vontade de ter um revolver na cinta, para sair atirando à esmo, para cima, para baixo, nas pessoas, nos cachorros, na polícia, enfim, trocando em miúdos, virar um maníaco ensandecido.

Verifiquei meu maço de cigarros e haviam apenas dois restantes. Parei na padaria e comprei mais um. Aproveitei e levei uma garrafinha de cerveja para me refrescar. Matei toda a bebida em poucos goles e me senti muito bem. Enfim eu estava em meu caminho de volta para casa e eu sentia uma sensação de alívio maravilhosa. Cheguei à catraca da estação, passei meu bilhete único e escutei o clássico barulho do trem atacando os trilhos em sua velocidade cambaleante. Ensaiei uma arrancada, mas minha corrida era preguiçosa e precavida, afinal, qualquer esforço a mais e eu poderia apagar, acordando em algum hospital fodido, sem minha carteira, iPod e outros pertences. Mas consegui chegar com tranquilidade, e ainda achei um assento vazio. Ao sentar, suspirei e me senti velho. Dei uma leve checada nas pessoas e todas pareciam gelatinas cinzas, tremulando com o movimento irregular do trem. Em meu iPod - que já estava bem ultrapassado – passeei pelos nomes que constavam em minha lista de artistas e resolvi escolher o bom e velho Cat Stevens, ou para quem gosta de atualizações, Yossuf Islam. Fui direto em minha música preferida dele, “Morning Has Broken”, e quando a voz serena dele começou a reverberar por minha mente, pensei: “puta merda, como sou brega”. Mas algo na voz dele me acalmava, talvez fosse o instrumental, eu realmente não sei, mas tudo o que ele canta me soa nostálgico, e no meu caso, isso é bom.

Os trens da CPTM – especificamente naquela linha – são muito lentos, mas são de uma lentidão pirracenta. O governo anda reformando todas as estações, está uma beleza, toda a modernidade, mas e as porras dos trens? O que importa no final das contas são os trens! Mas o óbvio da população não é óbvio para os governantes. Talvez eles sejam avançados demais. Por isso que estão lá, mandando e roubando, sem impedimentos. Esse pensamento invadiu minha mente e comecei a ficar irritado, ainda levando em consideração que eu suava em bicas, molhando meus finos cabelos, dando ao meu penteado um aspecto esculachado, largado. Comecei a mexer minha perna direita, exibindo clara ansiedade e o trem nem havia chegado à estação seguinte, que era relativamente próxima. De repente o trem finalmente fez o que parecia tencionar, parou e permaneceu assim por um bom tempo. Muitos trabalhadores impacientes começaram a se lamentar, alguns ironizavam o serviço de transporte público. Mas o que mais faziam era rir. Era melhor rir que chorar, eu concordo, mas será que será sempre assim? Rindo pra não chorar? E se o povo chorasse um pouco? Eu pareço um comunista pensando na solução para os problemas. Chega de crítica política e social, pelo amor de Deus, chega.

Em meio ao fuzuê que se instalou, um erro da natureza, assentado à minha frente, com sua boca semi-aberta, óculos de aro fino e cabelo duro mas cuidadosamente penteado, olhava para mim. Reuni todos os traumas da minha vida, lembrei de todos os valentões que assolaram minha vida, as pessoas que me ameaçaram de morte, bêbados que me perturbavam em baladas e nem todos eles unidos, não conseguiram me irritar tanto quanto aquela figura bizarra que permanecia imóvel, me encarando. O olhar dele era extremamente desafiador e um pouco disperso. Não sei como diabos isso seria possível, mas era assim que ele me olhava. Às vezes levantava o queixo me encarando por cima de seu nariz. Às vezes de forma sombria, inclinava sua cabeça para baixo e me olhava com ar suspeito. Eu não estava gostando e estava de saco cheio. O trem se arrastava lentamente saindo de sua paralisação e o Cat Stevens cantava “Into White” e essa canção é muito parada. Peguei meu iPod como se ele portasse alguma culpa pela irritação e troquei para “Prayer to God” do Shellac. A pior música que eu poderia ouvir naquela hora. O vocalista da banda vomita tanto ódio entre os versos, que eu não pude evitar de me contaminar. Todo aquele papo de “MATEI-OS, JÁ MATEI-OS!”, começou a compactar a minha paciência e finalmente meus braços fervilhavam. Eu já não os sentia. Era o sinal de que eu iria entrar numa briga, sempre foi assim. E o panaca permanecia olhando, arrumando a posição de seu óculos, como se quisesse focar uma imagem. Sua cabeça mexia, mas seus olhos me perseguiam. Ele deu um sorriso e isso foi a maldita gota d’água. Me levantei tirando os fones de ouvido e me dirigi a ele. Ele sorriu e não demonstrou surpresa alguma. Ele queria briga, só podia ser.

- Tá olhando o que? Eu posso saber? – tentei moderar ao máximo o volume de minha voz.
Ele continuava me observando, como se eu fosse algum objeto de estudo, uma espécie de macaco em extinção.
- Ei, fale comigo, filho de uma puta! – apontei o dedo para ele e em seguida dei um tapa em seus óculos.

Os óculos caíram no chão e os chutei. Ele permanecia em estado de observação, sem aparentar cautela ou medo. Minha cabeça estava latejando de raiva e resolvi descer um bom tapa em sua cara. Ele soltou um som, que parecia o sopro de um flauta e isso me impressionou. “Que porra de homem é esse?”, pensei. Ao redor, as pessoas começaram a reclamar, e eu podia ouvir cochichos.

- Porra, deixa o cara em paz! Eu trabalhei o dia inteiro, cacete! – um homem de farto bigode gritou do meio do vagão.

Eu mostrei meu dedo do meio para ele e voltei minha atenção para o maluco. Ele não falava nada, apenas olhava. Ele tinha um deboche instalado nas curvas de sua expressão facial, um sarcasmo tão ostensivo, que comecei a recear. Mas o que me tirou do sério foi um sinal de positivo com o dedo polegar direito que ele fez, para mim. Ele caçoava da minha força, devia achar meu tapa uma piada. Fechei minha mão direita e com destreza desloquei perfeitamente meu ombro para trás, e joguei meu braço com toda força do mundo ao encontro do rosto dele. Aquilo que era um murro bem encaixado. A massa de dedos fechados sofreu o impacto na fronteira entre a narina direita e os lábios superiores. Ao me concentrar no soco, perdi estabilidade com o movimento e pra variar, o trem tremeu. Cai em cima de uma senhora. Um homem moreno, com barba por fazer e cabelos grisalhos se ergueu e me puxou pela gola da camiseta, me lançando contra a barra de alumínio que ficava ao lado da porta do vagão. Me ergui rapidamente e me posicionei para a briga. O homem era forte, mãos calejadas e os braços com circunferência duas vezes maior que a dos meus. Mas eu ainda estava com muito ódio e meu orgulho me impulsionava para a confusão. Eu estava liquidado, todos estavam incomodados com o brigão e em breve eu estaria numa delegacia ou algo do gênero.

- Meu Deus do céu! O que aconteceu com ele? Meu Jesus! – a senhora, em quem caí, gritava horrorizada.
- Aquele homem bateu nele! – era o grisalho me denunciando.
- MAS POR QUE VOCÊ BATEU NELE? ELE É AUTISTA!
- Puta que pariu... – eu falei com voz trêmula.
- A senhora disse que ele é autista? – novamente o grisalho se intrometia no assunto.
- Sim, ele tem problemas mentais, meu senhor! Por que ele bateu no rapaz? – a senhora perguntava com os nervos à flor da pele.
- ESSE HOMEM É LOUCO! – um homem loiro, bem apanhado, de cabelos arrepiados e muito bem perfumado, se aproximou de mim.
- O que você tem a ver com isso, seu merda?! – gritei tentando intimidá-lo.
- Você bateu num deficiente, seu bosta! – uma negra com uma bunda enorme e calça extremamente apertada vociferou por trás de mim, batendo com sua sombrinha em minha nuca.
- Mas que ideia é essa, sua preta desgraçada?! – me virei para ela, colocando as mãos na nuca.
- Você é um maníaco e ainda é racista? Vamos pegar ele de porrada! – o grisalho de novo estava no centro das atenções.

E o pau comeu solto. Senti uma braçada em meu ombro esquerdo. Um ponta pé na lateral de meu joelho. O trem chegou na estação Domingos de Moraes e as pessoas na plataforma, ao ver o linchamento, evitaram entrar .
- Deus, me ajude! – gritei embaixo da saraivada de mãos que caia sobre mim.

Mas Deus, se estivesse em carne e osso por ali, também me daria uma boa coça. Uma pessoa entrou no trem, um adolescente com uma tatuagem de estrela no ante-braço, e sem perguntar o motivo, começou a largar o pé pra cima de minhas costelas. Eu entrei em pânico, erguendo minhas pernas e tentando acertar alguém, mas foi em vão. Alguém segurou meu pé direito e o torceu. Tentei aliviar a dor, fazendo meu corpo seguir para o lado da torcida, mas alguém travou meu corpo com murros no peito. As portas do trem fecharam e seguiram para a Lapa. A senhora que cuidava do maldito autista, bateu sua bolsa em minha cabeça. Eu estava apagando e ouvi um estalar de ossos. “Merda, quebrou”, pensei. Avistei minha camiseta encharcada de sangue e pensei na quantidade de litros de sangue que um homem precisa perder para morrer. Meu tênis havia sido retirado e deram um jeito de sumir com minha carteira e iPod. Meu celular, ainda estava no bolso direito, mas eu me conformei com a ideia de nunca mais vê-lo. O estranho de tudo foi que eu não pensava na morte. Pensava em meus bens sendo roubados. Eu era um miserável.

As pessoas, de uma hora pra outra cansaram de me espancar. Ficaram entediadas e fizeram uma roda ao meu redor. Eu ouvia algumas vozes, algumas especulações. Sugestões sobre os motivos do espancamento. Eu ainda me mexia, vagarosamente, como se quisesse alertá-los de que ainda estava vivo. Mas o que eu não esperava aconteceu: eles me ergueram e quando chegamos à Lapa, fui retirado do trem nos braços de todos os meus molestadores, como um Cristo prestes à ser crucificado, rumo ao seu calvário. “O mundo está cheio de ódio”, pensei. E nos braços do povo, fui exibido para tudo e todos, o homem cansado, uma verdadeira vítima da vida moderna, com todos os relacionamentos frios, trabalhos abusivos e transportes públicos precários. Um mártir da correria do dia-a-dia, sendo removido do trem e lançado na plataforma. Meu corpo rolou até a parede da estação, cheia de lindos grafites coloridos. E ali jazi por alguns minutos. Meus espancadores voltaram correndo para o trem e ficaram com expressão de alarde. Mais pessoas presenciaram a desgraça, ao meu redor, é claro. Pensei em quantas rodas de pessoas são formadas no mundo, apenas para presenciar coletivamente uma desgraça.

Por incrível que pareça, sentia o fim cada vez mais distante. Sorri um sorriso vermelho, vermelho vivo. Eu estava em frangalhos, mas naquele dia me libertei. A Elisa e sua frieza não valiam a pena. O trabalho e o dinheiro não valiam tudo aquilo. Finalmente eu vi a luz no fim do túnel. Custou uma boa quantidade de sangue, alguns dentes e a integridade de uns pares de ossos, mas finalmente eu, Nelson, mais conhecido como o homem cansado e estressado, estava livre.

4 comentários:

O Maldito Escritor disse...

Putz, senti muita simpatia pelo Nelson. Ele tá certo, o ser humano não vale bosta nenhuma.
Excelente seu conto; timing perfeito e detalhado pra caramba; detalhado sem ser chato. E corajoso.
Depois volto aqui pra mais leituras.
É uma vergonha que ninguém tenha comentado nesse até agora.
Aliás, vergonha não, das pessoas, era de se esperar...

Abraço, man.

Bruno Ribeiro disse...

Incrivel, cara! Sou fã do Nelson, haha. Parabéns mesmo, qualquer coisa, passa no meu blog: quebrandoogenio.wordpress.com
Abraços!

Putinha Psicótica disse...

É, cara. Retiro o que eu disse há uns 7 minutos no Esquina. Cê sabe bem o que faz. Ducacete.

Le.Grand.Francois. disse...

Muniz, eu ri e xinguei durante a minha leitura desse excelente conto. O Nelson leva a filhaputaria ao nível de tornar-se uma arte; desejando a morte do companheiro para poder trabalhar em paz; o mundo mais ou menos virou isso, e em certos momentos podemos observar esse fato por nos mesmos. Lembra no Goiais como aqueles malucos dirigiam depois do Carnaval, pondo a vida dos outros em jogo? Mais ou menos isso. 'Fodam-se os outros' devem pensar. No caso do Nelson parece ser mais uma tangente do egoismo profissional mas são da mesma família; primos de segundo grau. Enfim, vou ler o resto dos seus contos. Gostei desse pra valer. O Nelson sabe xingar, hein?