- Eu sou honesto, rapaz! Sou evangélico, jamais faria isso! – gritou Aristeu
- Eu to pouco me fodendo pra sua religião – tentei menosprezar – só quero saber onde diabos você colocou a merda da conta que eu paguei agora à tarde!
- Pelo amor de Deus, Fernando! Você está possesso!
Eu estava de costas para ele, e ao ouvir sua constatação em relação à minha condição, me virei repentinamente:
- Ah! Não vem com essa! Você não é santinho! Aliás, sei de muita coisa que faria sua igreja entrar num vômito coletivo de tanta sujeira e pecado! Se liga, hein? Agora, cadê a joça da conta?
- Você é igual ao diabo! Só sabe acusar! O acusador dos filhos de Deus! Eu sou carne como você, eu peco como qualquer um!
- Corta essa, Aristeu! Vai se foder! E que se foda sua condição humana, só não venha bancar o santo comigo, certo? Até parece que só porque entrou na igreja, tá tudo perdoado, tudo limpo... se liga, porra! Passa a conta que eu paguei, vai!
- Olha só, eu sou sujeito aos mesmos erros que qualquer um, só que a diferença é que eu não vivo pecando como você! Eu posso pecar, mas Jesus limpou meu coração e hoje minha essência não é pecaminosa!
Eu sabia que ia começar a mesma discussão. Qualquer desentendimento toma esse rumo, o religioso. Acendi um cigarro rapidamente, puxei a fumaça e soltei rapidamente, fazendo barulho de sopro.
- Caralho! Do quê você está falando? Pára com essa porra de essência pecaminosa! Você se acha livre, né? “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”! Mas a verdade é que quem lê a bíblia, se torna prisioneiro da concepção do pecado, afinal, tudo é pecado e quando você nota, está preso dentro da mentalidade moralista de que tudo está errado e de que você deve evitar tudo que o leva a pecar, logo você se isola do mundo, esquece de todos os pecadores –
que embora pequem – te querem bem! Essa é a liberdade? – questionei com tom irônico – E pára com essa merda de assunto e me dá a conta!
- Olha aqui Fernando, você tem o direito de pensar o que quiser, mas não pode ficar gritando tantos absurdos! Do quê você está falando? Jesus com sua morte nos lavou com seu sangue! Deus foi tão bom que mandou seu único filho para salvar o mundo! Leia na bíblia! Livro de João, capítulo 3, versículo 16! Deus é amor! – Aristeu gritava exaltado, dando tapas em sua bíblia.
- Aristeu, quem disse que Deus é bom? Será que vocês são tão cegos assim? Será que ignoram o velho testamento, quando ele pedia animais para sacrifício? Quando ele matava gente de outros povos só pra favorecer o seu povo? – sinalizei com as mãos fazendo sinal de “entre aspas” – Porra! Ele cria a humanidade inteira e escolhe só um povo pra reinar sobre? Caralho, ele não é o Deus, criador do Universo? – eu já estava aos berros com o filho da puta – e em nome de Deus, me dá a conta que eu paguei!
- Olha só Fernando, você me decepciona com tantas blasfêmias... Quanta ignorância, rapaz! Eu nunca vi alguém falar tanta besteira em tão pouco tempo! Amigo, você precisa de Jesus! Por que você não vai pra igreja, um dia só? Você vai gostar! O louvor é legal, eles tocam guitarra...
- Só porque tocam guitarra significa que é legal? O Calypso toca guitarra e... – tentei interromper mas logo fui interrompido.
- Deixa eu terminar de falar! Então, você devia ir a igreja! Na boa, minha vida melhorou muito depois que fui lá... O pastor é atencioso, os irmãos vão te acolher!
- A gente já combinou que você não me convidaria novamente, lembra? Eu não toco meus pés numa igreja, a não ser que seja pra entrar atirando!
- Meu Deus! Sabe de uma coisa? Vou orar por você! Você não sabe que o meu Deus é o Deus do impossível?
De repente um silêncio se instalou. Olhei com cara de descrença para Aristeu e joguei o cigarro pela janela.
- Impossível é alguém ser tão burro como você, Aristeu. Era impossível há pouco tempo, mas Deus te fez burro! Hahahaha! Agora sim eu creio nesse Deus!
- Pode debochar, rapaz. Mas um dia você vai se livrar do mau! Toda a maldade que vem de Satanás seja repreendida, em nome de Jesus! – vociferou com a mão direita estendida em minha direção, enquanto a mão esquerda mantinha a bíblia pesada junto ao peito dele.
- Maldade! O que é o mau? Você já tentou raciocinar? Depois que você entrou na igreja, você se esforçou pra questionar o que não tem explicação? Siga o raciocínio: Lúcifer era um querubim perfeito, era a tradução da concepção de Deus sobre a perfeição, correto?
- Correto, mas ele se revol...
- Não me interrompa, porra! Vamos lá: Ele era perfeito e não havia maldade no céu, tudo era perfeito. Aí eu pergunto: de onde veio o mau, a inveja que fez Lúcifer se rebelar contra o criador e pretender tomar seu lugar? Já pensou nisso? Quem fez Lúcifer se rebelar? Quem era “o mau” naquele tempo? E porque Deus não destruiu Lúcifer pra cortar o mal pela raiz?
Novamente silêncio. Apliquei-lhe um nocaute moral com esse argumento, mas como um lutador fraco e cego, que não tem noção do perigo, ele se levantou e continuou o embate.
- Amigo... você não sabe o que fala... A sabedoria de Deus é loucura para os homens!
- Então é isso que você me responde?
- É sim. Vocês nunca entenderão.
- E você entende? Você entende sobre as eras passadas e o que ocorreu para que Lúcifer desenvolvesse a maldade que na época era inexistente? Afinal, você deve manjar da sabedoria de Deus, né?
Incrível, mas eu o visualizava colocando uma venda invisível em seus próprios olhos.
- Deixe de ironia, Fernando. Isso não vai me abalar!
- Ah, claro! E cadê a conta que paguei? Incrível como qualquer conversa com você termina em discussão religiosa, vai se foder!
- Pare de me ofender! Estamos em um debate civilizado!
- Debate? Só eu questiono! Você não tem explicação pra nada, apenas diz “a sabedoria de Deus é loucura para os homens”!
- E quer que eu diga o quê?
- Mano, às vezes o silêncio é o melhor discurso.
- Ora, você só sabe questionar minha crença!
- E você só sabe falar de sua crença! E por Deus, cadê a conta?
- Olha aqui Fernando... Eu gosto de você, quero seu bem. Jesus tem propósitos para a sua vida!
- Ah sim! O mesmo propósito que Deus tinha ao criar Adão e Eva, colocá-los pelados num jardim, com a inocência de uma criança e com o diabo malicioso silvando pelas árvores, pronto pra fazê-los pecar! Aí Adão e Eva pecam, e Deus aponta o dedo gordo e divino dele na cara dos dois e diz: pecadores! Depois os expulsa do jardim, amaldiçoando a mulher com a dor do parto e o homem com a dor do trabalho. Aí deixa a merda rolar pelo mundo, com Caim matando Abel, fazendo dele o primeiro assassino e pai de um povo violento e pecador. Aí Deus em toda sua perfeição e propósito perfeito, se arrepende de sua criação e diz que vai afogar todo mundo num dilúvio! Que maravilha! – gritei batendo palmas – Deus tem um propósito! Aí ele se arrepende de se arrepender e salva apenas uma família, a família de Noé. O resto que se foda nas águas, né?
Agora eu visualizava Aristeu furando seus próprios olhos.
- Fernando, tudo que Deus fez foi por amor!
- Aristeu, vai tomar no seu cu! Eu estou aqui há tempos te falando a verdade e você vem dizer que um marginal divino – vulgo Deus – fez tudo isso por amor? O mesmo amor que fez Deus permitir que o diabo pintasse e bordasse com a vida do paciente e cabaço Jó? Só pra provar a fé dele? Isso é amor? Matou a família dele, os empregados, os rebanhos e ainda mandou um monte de doenças pro corpo dele! Aí no final da estória, Deus o restitui com o dobro. Mas e a mulher dele que morreu? Poderia ser substituída? Isso prova que os homens pra Deus não são nada! São todos um bando de peças substituíveis!
- Não há como sondar a mente de Deus. Ele é diferente de todos nós! – Aristeu disse com olhar de superioridade.
- Ele não é diferente, Aristeu! Nós somos a imagem e semelhança dele, não é? Moisés quem criou Deus! Ele criou Deus para manter aquele bando de escravos hebreus dentro de um bando de leis! Aliás, foi Abraão que inventou toda essa putaria e Moisés resgatou toda essa farsa!
- Abraão foi um homem abençoado! Não fale isso!
- Não adianta, né? É tanta cegueira que não adianta! É o mesmo que tentar explicar como é o vermelho para um cego de nascença! Cadê a merda da minha conta? Eu preciso dela pra comprovar o pagamento!
- Fernando, você é um homem inteligente, mas de tanto ler, você se tornou cético, incrédulo! Mas Deus vai operar em sua vida, pode apostar! Eu declaro a benção de Deus sobre sua vida! – novamente o disse com a mão direita estendida em minha direção.
- Aristeu, corta essa! Enfia essa mão direita no seu cu! Quem disse que você pode declarar algo? Quem te deu essa autoridade?
- Jesus! O nome dele tem poder!
- Ta bom, você realmente acha que pode fazer isso?
- Sim, em nome de Jesus podemos fazer tudo!
- Ah sim! E eu declaro que você agora é do diabo! – esbravejei com os dedos fechados, exceto o indicador e o mindinho que ficaram levantados fazendo o sinal do diabo.
- Ta amarrado em nome de Jesus!
- Ta amarrado porra nenhuma, Aristeu! O diabo que te carregue! Hahahaha!
- Incrível. A gente abençoa uma pessoa e recebe uma maldição de volta!
- É assim com seu Deus! Você o adora mas se cometer um pecadinho, está sujeito a queimar o rabo no inferno!
Finalmente visualizava o cérebro dele escorrendo pelos buracos dos olhos.
- Não é assim, Fernando! Não é!
- Ta certo. Cadê a conta?
- Tudo isso é graças a essa internet, toda essa liberdade de expressão, todo mundo escrevendo o que pensa! E você caiu na deles!
- Não Aristeu, eles caíram na minha. Eu sou o maldoso que escreve. Eles lêem.
- Bem que a bíblia estava correta. A marca da besta era simbólica.
- E o que tem a ver isso com a internet? Vai dizer que é o meio de comunicação do anticristo?
- Também. Mas pense: no Apocalipse está escrito que a marca da besta seria colocada na testa ou na mão direita. Na testa é a luz do monitor e na mão direita, o mouse! Eu sabia! O pastor estava certo!- Que diabos...-Tire esse computador da sala e coloque no seu quarto! Não quero a besta reinando nos espaços por onde eu ando! – fui interrompido.
- Oh! – gritei fingindo susto – Se eu colocar a besta dentro do quarto, ela se torna inofensiva?
- Não importa, só não quero vê-la!
- Ta certo, então você vai fazer o quê em relação às imagens católicas que estão pelas ruas? Mandar guardar num quartinho também?
- São casos diferentes!
- Casos diferentes é o caralho! Eu também pago aluguel, o computador fica na sala! E falar em pagar aluguel, dá a minha conta agora!
- Não admire se seu computador estiver com óleo consagrado na igreja! Vou consagrar esse computador para o Senhor!
- Ah sim! Da mesma forma que você consagrou o computador com aquelas punhetas quando te peguei vendo um site de putaria?
- Lá vem o acusador! – Aristeu fez cara de desprezo.
- Não quero te acusar, até porque pra mim isso é normal. Orgia pra mim é normal, heroína com crack pra mim é normal. Quero que tudo se foda, mas não venha com falso moralismo. Como você é cínico!
- Fernando, aquilo é passado. Eu já pedi perdão pra Deus. Ele me perdoou, afinal, ele é fiel e justo para nos perdoar de todo o pecado e nos purificar de toda iniqüidade!
- Crente é tudo a mesma bosta, né? Sempre tem um chavão bíblico pra tentar escapar das merdas! Sua essência é pecaminosa! Você bate punheta aí enfrente ao computador quase todos os dias, aí com a mesma mão que manipulou a pica, você manipulou a bíblia.
- Mentira! Mentira! Ta amarrado o acusador! – gritou com os dedos indicadores tapando os ouvidos.
- Agora você não quer ouvir, né? Puta merda, que raiva! Aristeu, você me cansa com esse papo! Cadê a conta?
- Eu te canso? Vou te cansar até que você vá pra igreja! Já leu a parábola da viúva e o juiz?
- Eu já li a bíblia de cabo a rabo, bem mais vezes que você! Não vem com essa. Sua perseverança não vai adiantar. E cala a boca! Crente chato de merda! CADÊ A CONTA?
- As pessoas sentem falta de você lá no grupo de jovens!
- As pessoas sabem que você bate punheta antes de ir pra igreja?
- Eu fui comprado com o sangue precioso de Jesus!
- Ah sim! Jesus, o filho burro de Deus! - O quê?!- Um dia Deus disse: filho, meu único filho, você pode morrer pelo pecado de todas essas pessoas que criei? Jesus deve ter respondido: pai, por que o senhor não aniquila o mau de vez? Por que tenho que morrer pra absorver todo o pecado do mundo? Deus respondeu: porque eu sou complicado, porque eu quero espetáculo, eu quero emoção! Jesus responde: mas Pai, manda um anjo! Ele poderia morrer pelo pecado de todos! Por que eu? Deus reponde: porque todo mundo dirá: como Deus sofreu ao ter que enviar o único filho pra morrer! Jesus responde: então por que o senhor não desce? E Deus finalmente responde: cale a boca e se prepare pra entrar no bucho de uma virgem!
Aristeu se ajoelhou com olhar complacente e piedoso, e ergueu seu rosto para cima:
- Senhor, não considere o que ele fala neste momento! Perdoa o seu pecado, ele não sabe o que fala!
- Oh! Eu não sei o que falo? Fora da igreja não há inteligência! Oh! – respondi com ironia.
- Fernando, não diga mais nada, para não piorar a situação espiritual.
Em todo esse tempo, nós permanecemos em pé. Até que peguei um copo, enchi dois terços dele com whisky e sentei no sofá. Aristeu permanecia de pé com a bíblia firmemente guardada em seu peito. Eu cruzei as pernas, levantei o copo e brindei:
- Ao amor de Deus! Deus é amor! Paz na Terra! Aleluia! Aleluia, caralho!
- Fernando, Fernando. Deus é misericordioso. Mas não é burro.
- Ah não, claro que não – respondi com sarcasmo estampado em cada palavra.
- Eu vou colocar uma música aqui. Peraê.
- Se colocar essas porras de gospel eu quebro o CD e a sua cara!
- Eu tenho o direito de ouvir o que quiser! Eu pago o aluguel!
- Foda-se, eu tenho o direito, ou melhor, o dever de quebrar sua cara!
- Espírito de violência, eu te repreendo em nome de Jesus!
Dei um gole mais longo até o whisky acabar e joguei o copo na parede. Rajadas de cacos de vidro cortavam o ar.
- Fernando, vou chamar a polícia!
- Oh! O que aconteceu com o nome de Jesus? Porque ele não me impediu de quebrar o copo?
- Não brinque com o nome de Jesus!
- Ah! Pro diabo com o nome de Jesus! Cadê a minha conta?
- Como você fala besteira! Mais uma dessas e chamo a polícia!
Levantei, me apoderei da garrafa de J&B e a levei para beber ali no sofá.
- Sem essa, Aristeu! Como você é chato, que inferno! Eu não sei como ainda moro aqui!
- Eu sou o seu ponto de equilíbrio, Fernando – me respondeu com olhar soturno.
- Papo de veado! Pode parando com essa merda! Você é meu lado burro e cego!
Aristeu se afastou, deixou a bíblia numa cadeira e foi ao banheiro. Após alguns segundos, tocou a descarga e saiu do banheiro.
- Você precisa de mim e precisa parar de beber!
- Não. Não preciso de você, não tenho que parar de beber – respondi acendendo um cigarro e terminando meu segundo copo.
- Já vai beber o terceiro! Você precisa de ajuda! Vamos à igreja, Fernando! É um bem que você faz a si mesmo!
- Pára de me chamar pra ir naquela merda! Caralho de cara chato!
- Eu não vou desistir de você, assim como Jesus nunca desistiu de mim.
- Amigão, Jesus desistiu de mim há anos! Desista! – falei girando o cigarro, fazendo espirais de fumaça.
- Não. Eu te amo – me olhou com olhar sereno.
- Que porra de olhar é esse?
- Eu amo você, Fernando. Amo sua alma. Não quero que ela vá pro inferno. Só não amo seus pecados.
- Já chega! – levantei do sofá – Você ta com veadagem pro meu lado! Uma coisa é ser cristão, outra é ficar de papo bicha pro meu lado. Não preciso do seu amor! Só preciso da outra metade das despesas desse apartamento. Dispenso seu amor, preocupação, pena, piedade e o caralho a quatro!
- Você tem coração de Pedra, Fernando. Coração duro como o de Faraó quando não quis deixar o povo de Deus sair do Egito.
- Seria bom se ele tivesse eliminado todo aquele povo. O mundo seria outro!
- Libertino e pecador, né? Assim seria o mundo!
- Amém!
Peguei a garrafa que apenas continha dois dedos de bebida e a levei pro quarto. Apaguei o cigarro no cinzeiro de motel que um dia roubei e voltei para a sala.
- Cadê a conta, Aristeu?
- Você não quer aceitar Jesus como seu senhor e salvador?
- Não, eu quero a conta.
- Você precisa de Jesus!
- Olha aqui seu filho da puta, eu quero que Jesus vá tomar no cu, me dá a conta – intimei levantando a gola de sua camiseta.
- Me larga! Eu vou chamar a polícia!
- Se você não me der a conta, vou te acusar por extravio de correspondência!
- Faça o que quiser! Mas eu vou chamar a polícia!
Ergui minha mão direita e encaixei um soco na cara dele.
- Fernando! Pare! Me solta!
- Cadê a minha conta! A internet está cortada e preciso do número do protocolo para pedir que eles conectem minha internet de novo!
- Pra quê internet? Pra quê isso?
- Pra entretenimento, comunicação e trabalho. Ah! E pra você bater punheta também!
- Você precisa de libertação! Jesus pode te libertar, sabia?
Encaixei um bom murro em seu fígado. Aristeu deu um salto para trás e desvencilhou do meu domínio. Corri atrás dele e lhe passei uma rasteira por trás. Ele tropeçou e ralou o joelho.
- Me deixe! Pelo amor de Deus! Você está bêbado!
- Aristeu, qual é o problema? Onde você escondeu a conta?
- Jesuuuuuusss! – clamou histericamente.
- Puta que pariu, que crente idiota!
- Isso é preconceito!
- Cala a boca!
Ele ainda estava deitado de barriga para cima e assim acertei a boca dele com um cruzado de direita. Das gengivas brotou sangue.
- Jesus, estou sofrendo pela sua palavra! Me ajude!
- Eu estou te batendo pela conta da internet! Não pela bosta da palavra de Jesus!
- Glória a Deus!
Enquanto ele se vangloriava de seu momento de martírio cristão, acertei dois tabefes em sua cara, deixando-a vermelha como uma manga madura. Ele permanecia em seu estado de júbilo enquanto eu começava a me cansar.
- Olha aqui Aristeu. Seja coerente. Por mais que a internet seja a besta e tudo mais, na bíblia diz que as pessoas adorariam a besta, não é?
- É sim – Aristeu concordou com poucas lágrimas deslizando pelas maçãs de seus rostos.
- Então, deixe que eu adore a besta!
- Não onde eu moro!
- Mas eu também pago! Se eu quiser adorar ao bode satânico eu posso!
- Você não faria isso!
- Faria. Só por pirraça! E ainda beberia o sangue dele! Ou só os crentes podem se banhar com sangue de cordeiro?
- Mas é o cordeiro de Deus!
- Foda-se.
Aristeu olhou para a gaveta da cômoda que fica na sala e fez sinal para que eu a abrisse. Abri prontamente e vislumbrei diversos livros. Apontou para um dos livros. Quando o abri, lá estava a conta da internet, com a autenticação do meu pagamento.
- Obrigado Aristeu. E vá limpar esse sangue.
- Você ainda vai mudar. Tenho certeza. Ah! E da próxima vez que me bater, vou acionar a polícia.
- Não importa. Deixa eu ligar pra central e confirmar o pagamento.
Peguei o telefone e liguei para a central de atendimento. Quinze minutos a internet conectou novamente. Sentei enfrente ao computador e tirei o atraso virtual, respondendo scraps, e-mails e lendo as últimas notícias da música.
- Céus, o Aristeu um dia vai ser internado num manicômio. Que cara louco! Marca da besta... – pensei enquanto um site demorava a carregar.
Ao anoitecer, liguei o som e coloquei o Dark Side of the Moon do Pink Floyd. Acendi mais um cigarro e finalizei os dois dedos de whisky que permaneciam na garrafa. Às duas da manhã, enquanto pegava no sono, ouvi barulho de teclas sendo tocadas. Levantei bruscamente e abri a porta lentamente.
- Porra! – sussurrei com raiva, pois havia batido a canela na quina da cama.
Olhei pela fresta e vi o monitor ligado. Aristeu estava apenas vestido em seu pijama, com postura encurvada e o rosto bem próximo ao monitor. Sua mão esquerda estava dentro da calça, em seu pau e a direita alternava entre o teclado e o mouse. Forcei um pouco a vista e visualizei cenas bizarras de sexo. De tempo em tempo ele olhava para trás e para os lados para se certificar de que eu não estava por perto. Olhei para a mesa da sala, a bíblia estava aberta, ao lado de um copo de água. Desisti da idéia de flagrá-lo e voltei para a cama, passando a mão na canela machucada. Peguei no sono minutos depois – eu estava consideravelmente bêbado – e Aristeu continuava na sala, abafando até os pigarros, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Ao acordar, lá pelas onze da manhã, Aristeu estava dormindo no sofá, devidamente vestido com seu pijama. O cansaço da discussão e da epopéia pornográfica da madrugada o fazia babar muito e roncar de forma moderada. Olhei para a bíblia na mesa e ela estava aberta no livro de Apocalipse, capítulo 21, versículo 8.
"Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte"
No final das contas, o mentiroso terá o mesmo lugar que o homicida.
- Como isso pode ser chamado de justiça? – pensei ao pegar o copo vazio que ele deixou na mesa.
Ao me dirigir para a cozinha, olhei Aristeu em repouso, inofensivo. O sono do perverso, do mentiroso. Até quando?
- Todo homem tem seus segredos. E como já dizia a bíblia, não há segredo que não venha a ser revelado. Pobre Aristeu. Pobres crentes – pensei, abrindo a torneira para lavar a louça.
quinta-feira, janeiro 31, 2008
segunda-feira, janeiro 21, 2008
Amarelo Mostarda
quando o papel se abre, eis o desafio
são poucos os segundos que nos separam
de uma genialidade
ou de uma estupidez
vislumbro a mostarda e queria meus dias
amargos e saborosos como ela
dias amarelo mostarda
quando andava sem camisa em cima de muros
de telhados e sonhos
quando não via futuro, quando tudo era
muito riso e pouco ciso
quando a vara de bambu saiu da bíblia direto para as minhas costas
quando a barata interviu na ceia e parou uma oração
quando jogávamos futebol em campos de cuspe
quando devíamos e não temíamos
dias amarelo mostarda
não voltarão
dias se tornam vermelho sangue
dia após dia
e a trilha se estreita
assim como queria o homem que um dia foi tudo
e hoje nem sei quem é
ando uma trilha estreita
mas não vou morar no céu
na estrada só cabe um pé
mesmo assim
não vou morar no céu
no seu céu sereno
serenatas e cerejeiras
será? será o que?
são poucos os segundos que nos separam
de uma genialidade
ou de uma estupidez
vislumbro a mostarda e queria meus dias
amargos e saborosos como ela
dias amarelo mostarda
quando andava sem camisa em cima de muros
de telhados e sonhos
quando não via futuro, quando tudo era
muito riso e pouco ciso
quando a vara de bambu saiu da bíblia direto para as minhas costas
quando a barata interviu na ceia e parou uma oração
quando jogávamos futebol em campos de cuspe
quando devíamos e não temíamos
dias amarelo mostarda
não voltarão
dias se tornam vermelho sangue
dia após dia
e a trilha se estreita
assim como queria o homem que um dia foi tudo
e hoje nem sei quem é
ando uma trilha estreita
mas não vou morar no céu
na estrada só cabe um pé
mesmo assim
não vou morar no céu
no seu céu sereno
serenatas e cerejeiras
será? será o que?
sexta-feira, janeiro 18, 2008
Luta ou Morte!
os deuses estão loucos
a guerra chegou
e você veio com ela
luta ou morte - um deles disse.
mas eu quero casar!
vocês irão brigar - disse com olhar vago mirando as nuvens.
mas nunca brigamos! - respondi.
mas um dia brigarão.
não aceito isso.
CERTO. então você vai morrer!
como assim?
luta ou morte, oras.
os deuses da guerra estão loucos
imposições voluntárias
de um destino involuntário
malditos deuses!
(vida, minha vida... olha só o que é que eu fiz...)
a guerra chegou
e você veio com ela
luta ou morte - um deles disse.
mas eu quero casar!
vocês irão brigar - disse com olhar vago mirando as nuvens.
mas nunca brigamos! - respondi.
mas um dia brigarão.
não aceito isso.
CERTO. então você vai morrer!
como assim?
luta ou morte, oras.
os deuses da guerra estão loucos
imposições voluntárias
de um destino involuntário
malditos deuses!
(vida, minha vida... olha só o que é que eu fiz...)
Like a Leper Messiah
me abrace mendigo!
toma um cigarro, pobre diabo!
me envolva leprosa!
você cheira como banheiro feminino
em dia de menstruação
e essas pintas brancas em sua pele
será que serão minhas, em minha pele?
lepra no braço
lepra na coxa
sou coxo
deitado no colchão
pensando no coxão
abraçado à colcha
pisando em conchas
pensando em coisas
dessa lepra cerebral
o abraço da leprosa
me fez imundo
por sete anos
não, pela vida toda
lepra cerebral
que caiam um por um
meus pensamentos
sobre o chão empoeirado
dessa Jerusalém de ninguém
até que o messias me diga
"vai-te em paz, estás limpo"
onde está o seu messias?
toma um cigarro, pobre diabo!
me envolva leprosa!
você cheira como banheiro feminino
em dia de menstruação
e essas pintas brancas em sua pele
será que serão minhas, em minha pele?
lepra no braço
lepra na coxa
sou coxo
deitado no colchão
pensando no coxão
abraçado à colcha
pisando em conchas
pensando em coisas
dessa lepra cerebral
o abraço da leprosa
me fez imundo
por sete anos
não, pela vida toda
lepra cerebral
que caiam um por um
meus pensamentos
sobre o chão empoeirado
dessa Jerusalém de ninguém
até que o messias me diga
"vai-te em paz, estás limpo"
onde está o seu messias?
quarta-feira, janeiro 16, 2008
Entranhas Amargas
Acho que morri em algum lugar por aí
Minhas tripas estão em algum lugar por aí
Foi uma morte cruel que não lembro
E finalmente morri
E só fui avisado sobre minha morte
Pelas aves de rapina
Que reclamaram do gosto sofrido e amargo
Das minhas entranhas
- Tem gosto de jurubeba! - diz um abutre.
- Não, ele tem gosto de café torrado! - discorda o urubu com uma ferida no pescoço.
- Sem essa, gente, ele tem gosto de casca de limão! - diz o condor.
- Ô, ô! Calma aê! - eu interrompo - Que putaria é essa?
Olhem onde cheguei
Morto por não-sei-o-quê
E as aves de rapina confabulando sobre meu sabor
Eu não esperava por isso
Não queria que fosse assim
Mas meu corpo ainda mexe
Eu sinto
Mas algo está morto em mim
Eu sinto
Que diabos está acontecendo?
Minhas tripas estão em algum lugar por aí
Foi uma morte cruel que não lembro
E finalmente morri
E só fui avisado sobre minha morte
Pelas aves de rapina
Que reclamaram do gosto sofrido e amargo
Das minhas entranhas
- Tem gosto de jurubeba! - diz um abutre.
- Não, ele tem gosto de café torrado! - discorda o urubu com uma ferida no pescoço.
- Sem essa, gente, ele tem gosto de casca de limão! - diz o condor.
- Ô, ô! Calma aê! - eu interrompo - Que putaria é essa?
Olhem onde cheguei
Morto por não-sei-o-quê
E as aves de rapina confabulando sobre meu sabor
Eu não esperava por isso
Não queria que fosse assim
Mas meu corpo ainda mexe
Eu sinto
Mas algo está morto em mim
Eu sinto
Que diabos está acontecendo?
sábado, janeiro 05, 2008
Jéferson Peninha
A Liberdade é de fato um lugar de liberdade. Enquanto calçadas se esforçam em comportar tantas mesas cheias de cervejas e petiscos, rodeadas de pessoas sorridentes, a palavra liberdade como conhecemos, pula do abstrato para o concreto em segundos. Concreto envelhecido e lascado. Concreto pichado e judiado. Judiado como os vagabundos e loucos que desfilavam por entre as mesas, exibindo uma habilidade incrível de se desviar de obstáculos, garçons, cadeiras e ombros. Mas Jéferson Peninha não mostrou aptidão para desvios bruscos e chocou-se contra meu ombro. Olhei pra trás e olhei para seu rosto. As rugas havia tomado conta de sua face, mas havia uma jovialidade inegável em seu sorriso.
- Desculpa aê - disse Peninha estendendo as mãos para mim, em cumprimento.
- Opa, fica tranqüilo - disse eu, estendendo minha mão aceitando as escusas dele.
- Tô um pouco desorientado, saí há pouco tempo da prisão. Matei um homem ali naquela esquina - disse, apontando para a esquina da rua dos Estudantes com a rua Galvão Bueno - mas hoje não mato mais ninguém, tô velho.
- Por que você matou?
- Dedo-duro tem que morrer.
- Ah sim...
Jéferson Peninha continuou suas narrativas, em pé, com um copo de cerveja nas mãos (que ele conseguiu da nossa mesa após fazer uma mágica incrível), sempre fazendo questão de mostrar um estilete enferrujado que segundo ele, era pra jogar no pescoço de vacilão. Mas na verdade o que vacilava era seu equilíbrio, que vez em outra falhava, fazendo-o balançar um pouco para o lado oposto ao meu. E balançando como um João Bobo, ele apontou para o prédio Regente Feijó:
- Tenho uma filha que mora ali! No quinto andar, pode procurar, ela é "modela". Esteve em Madri... você tem que ver os armários que saem juntos dela! Cheia de guarda-costas!
- Mas você não fala com ela? - perguntou minha amiga, Tálita.
- Ela não quer saber mais de mim! - respondeu fazendo com as mãos um gesto de desprezo.
- O que importa é a saúde - eu disse tentando amenizar a situação.
- Mas eu já fui o maior traficante aqui da região! O Glicério todo era meu! - disse com orgulho estampado no fechar do olhos e com semblante austero.
- Até a polícia pegar né? - Thiago, outro amigo meu. lançou.
- Me deduraram! Eu andava tranqüilo pelas ruas, sempre com um "oitão" na cintura e uma PT na bota! Sempre andava com um sobretudo preto e botas. Eu fazia a polícia dar marcha ré! Aqueles "cascavél", carro preto, vermelho e branco. Eles me olhavam com a mão nos bolsos e recuavam!
- Caralho! - eu exclamava pra passar algum interesse (apenas a Tálita prestava alguma atenção, enquanto o Thiago começava a ceder para o álcool).
- Matei o dedo-duro. Fiquei preso por catorze anos, seis meses e oito dias no Carandiru. Pavilhão 9. Ali só tinha bandido fodido. - contou, mostrando o antebraço riscado por uma cicatriz de estilete - Quase morri lá, algumas brigas. No pavilhão 6 estavam os "estrupadores", menininhas, mocinhas, "mulherzinhas", só os protegidos. Se fosse no meu pavilhão, passava o estilete na barriga! - continuou contando, agora levantando a camiseta e mostrando a barriga cortada por faca, centímetros acima do umbigo.
Continuávamos bebendo a cerveja, enquanto as pessoas de outras mesas nos fitavam, parecendo pensar qual seria o motivo da gente dar tanta trela para um mendigo. E meio às suas histórias, cortavamos as narrações com comentários breves, ou expressões monossilábicas. Às vezes me distraia com o clima fervilhante do bar, que estava lotado de trabalhadores, bandidos e putas. Observei um negro com uma touca branca de lã, que eu jurava ser um muçulmano. Mas logo dispensei minha concepção ao vê-lo esfregar a mão por debaixo da saia de uma puta, rindo com um cigarro repousado ao lado da boca. O Peninha mais tarde me disse que ele é conhecido como Chocolate e é um dos piores bandidos da região. Assim está melhor. Peninha detalhava cada história com uma malandragem que eu havia sacado: quanto mais tempo ele nos tomava, mais cerveja ele tinha pra mendigar da nossa mesa. Ignorei a malandragem amadora dele e continuei observando as pessoas. Em meio à exaltação de risadas despreocupadas de uma sexta-feira, que nem a chuva que caía maliciosamente estragava, uma mulher se destacou como uma chama em meio às cinzas. Não por sua alegria. Não havia sorriso no rosto dela, mas havia uma angústia assombrosa em seu rosto. Rosto que era de uma beleza poucas vezes vista, com incrível harmonia de espaço entre os boca, nariz, olhos, sobrancelhas. Seu cabelo loiro despencava em cachos teimosos, teimavam em ser belos. Ela se estendia na possível altura de um metro e setenta e cinco centímetros, exibindo curvas caprichosamente colocadas numa silhueta inebriante. Anéis adornavam seus dedos longos e elegantes, dedos estes que pegaram o celular que tocava. Ao falar, consegui ver seus dentes perfeitamente alinhados e brancos como nuvens de um dia ensolarado. Sua fisionomia orgulhosa foi substituída por uma que emanava uma mistura de raiva e decepção. Deus, quem a decepcionaria? A beleza dela me enjoou como um doce comido em excesso e logo voltei minha atenção para o Peninha e sua boca sofrida cheia de dentes tortos.
- Já matei muita polícia!
- Mas eram maus, não eram pais de família, né? - perguntou Tálita
- Siiiim, siiim, eram maus, filhos das putas! - respondeu imediatamente
Peninha olhou para o Thiago, apertou seu braço:
- Esse aqui ía lutar bem na cadeia!
- Quê isso... - Thiago disse tímidamente com cabeça baixa e sorriso vago.
- Hahahaha! Ía ser mocinha na cadeia! - Tálita se exaltou
- Não, não! Do meu lado não! Se ele tiver comigo, ninguém mexe nele! - Peninha interrompeu, erguendo o rosto, com ar de proteção.
Jéferson Peninha continuava alcançando memórias dos mais profundos abismos de sua mente. E de repente, com olhar soturno, sugerindo uma lembrança amarga, confessou:
- Existe um crime que me arrependo. Só um! - dizia olhando para baixo - Matei uma menina de 12 anos. Ela me pediu de joelhos para que eu não matasse o pai dela: "Por favor! Não mate meu pai!". Eu peguei a menina e coloquei a arma em sua cabeça. A polícia já estava lá embaixo, com um megafone o coronel gritou: "Peninha, se renda!". Eu atirei na menina e joguei o corpo dela do quinto andar. Negociei com a polícia e entreguei as armas. O coronel pessoalmente colocou o grampo nas minhas mãos e me levou. Paguei a fiança com a grana que tinha do tráfico e o cigano estava solto de novo!
De repente uma discussão sobre crimes afinçáveis se estabeleceu. O Edu que estava na mesa conosco, discordou de algo que o Peninha falou. O nosso amigo das ruas ficava ameaçando lançar a "cigana voadora" no pescoço de Edu. A "cigana voadora" consistia em lançar de forma certeira o estilete enferrujado na garganta do oponente. Tálita comentou em alta voz que se não matasse pelo corte, mataria pelo tétano. Peninha sorriu e apontou para ela:
- Você é inteligente! E bonita! Podia ser "modela"! Se fosse "modela", seria seqüestrada. E eu seria o primeiro a seqüestrar!
Todos caíram na risada. Jéferson Peninha ficou indignado com a cerveja e disse que sairia pra buscar cachaça, porque cerveja não funciona com ele. Aparentemente seriam os últimos momentos dele conosco naquela noite, ainda mais quando nos disse:
- Não entrem no crime. A vida do crime não compensa.
Mas embora ele tenha saído, às vezes voltava pra comentar algo, para dizer quem era quem naquele bar. Pra cerrar nosso cigarro. Pra apontar alguma mulher gostosa que passava pela calçada tumultuada.
- Você viu os peitos daquela morena? Nossa vou chupar eles! - disse Peninha com sorriso excitado.
- DUVIDO! - disse eu para atiçá-lo a fazer a merda, para ver o circo pegar fogo.
- Duvida? Então tá bom! - respondeu se dirigindo à morena.
O que aconteceu depois não deu pra ver, pois ele a seguiu até entrar num bar.
Jéferson Peninha é uma figura odiada por garçons e amada por jovens daquele cenário. Mas perambula como uma alma penada pelas calçadas daquela região, flutuando como uma leve pena, uma peninha de um imundo pombo. Sujo, esquecido e aflito por lembranças que ele não sabia se eram histórias ou estórias. Lembro da última coisa que ele me disse:
- Porra! Fui deitar ali no banco da praça e os "urubu" mandaram eu sair de lá! Barrrrrrbaridade!
- Desculpa aê - disse Peninha estendendo as mãos para mim, em cumprimento.
- Opa, fica tranqüilo - disse eu, estendendo minha mão aceitando as escusas dele.
- Tô um pouco desorientado, saí há pouco tempo da prisão. Matei um homem ali naquela esquina - disse, apontando para a esquina da rua dos Estudantes com a rua Galvão Bueno - mas hoje não mato mais ninguém, tô velho.
- Por que você matou?
- Dedo-duro tem que morrer.
- Ah sim...
Jéferson Peninha continuou suas narrativas, em pé, com um copo de cerveja nas mãos (que ele conseguiu da nossa mesa após fazer uma mágica incrível), sempre fazendo questão de mostrar um estilete enferrujado que segundo ele, era pra jogar no pescoço de vacilão. Mas na verdade o que vacilava era seu equilíbrio, que vez em outra falhava, fazendo-o balançar um pouco para o lado oposto ao meu. E balançando como um João Bobo, ele apontou para o prédio Regente Feijó:
- Tenho uma filha que mora ali! No quinto andar, pode procurar, ela é "modela". Esteve em Madri... você tem que ver os armários que saem juntos dela! Cheia de guarda-costas!
- Mas você não fala com ela? - perguntou minha amiga, Tálita.
- Ela não quer saber mais de mim! - respondeu fazendo com as mãos um gesto de desprezo.
- O que importa é a saúde - eu disse tentando amenizar a situação.
- Mas eu já fui o maior traficante aqui da região! O Glicério todo era meu! - disse com orgulho estampado no fechar do olhos e com semblante austero.
- Até a polícia pegar né? - Thiago, outro amigo meu. lançou.
- Me deduraram! Eu andava tranqüilo pelas ruas, sempre com um "oitão" na cintura e uma PT na bota! Sempre andava com um sobretudo preto e botas. Eu fazia a polícia dar marcha ré! Aqueles "cascavél", carro preto, vermelho e branco. Eles me olhavam com a mão nos bolsos e recuavam!
- Caralho! - eu exclamava pra passar algum interesse (apenas a Tálita prestava alguma atenção, enquanto o Thiago começava a ceder para o álcool).
- Matei o dedo-duro. Fiquei preso por catorze anos, seis meses e oito dias no Carandiru. Pavilhão 9. Ali só tinha bandido fodido. - contou, mostrando o antebraço riscado por uma cicatriz de estilete - Quase morri lá, algumas brigas. No pavilhão 6 estavam os "estrupadores", menininhas, mocinhas, "mulherzinhas", só os protegidos. Se fosse no meu pavilhão, passava o estilete na barriga! - continuou contando, agora levantando a camiseta e mostrando a barriga cortada por faca, centímetros acima do umbigo.
Continuávamos bebendo a cerveja, enquanto as pessoas de outras mesas nos fitavam, parecendo pensar qual seria o motivo da gente dar tanta trela para um mendigo. E meio às suas histórias, cortavamos as narrações com comentários breves, ou expressões monossilábicas. Às vezes me distraia com o clima fervilhante do bar, que estava lotado de trabalhadores, bandidos e putas. Observei um negro com uma touca branca de lã, que eu jurava ser um muçulmano. Mas logo dispensei minha concepção ao vê-lo esfregar a mão por debaixo da saia de uma puta, rindo com um cigarro repousado ao lado da boca. O Peninha mais tarde me disse que ele é conhecido como Chocolate e é um dos piores bandidos da região. Assim está melhor. Peninha detalhava cada história com uma malandragem que eu havia sacado: quanto mais tempo ele nos tomava, mais cerveja ele tinha pra mendigar da nossa mesa. Ignorei a malandragem amadora dele e continuei observando as pessoas. Em meio à exaltação de risadas despreocupadas de uma sexta-feira, que nem a chuva que caía maliciosamente estragava, uma mulher se destacou como uma chama em meio às cinzas. Não por sua alegria. Não havia sorriso no rosto dela, mas havia uma angústia assombrosa em seu rosto. Rosto que era de uma beleza poucas vezes vista, com incrível harmonia de espaço entre os boca, nariz, olhos, sobrancelhas. Seu cabelo loiro despencava em cachos teimosos, teimavam em ser belos. Ela se estendia na possível altura de um metro e setenta e cinco centímetros, exibindo curvas caprichosamente colocadas numa silhueta inebriante. Anéis adornavam seus dedos longos e elegantes, dedos estes que pegaram o celular que tocava. Ao falar, consegui ver seus dentes perfeitamente alinhados e brancos como nuvens de um dia ensolarado. Sua fisionomia orgulhosa foi substituída por uma que emanava uma mistura de raiva e decepção. Deus, quem a decepcionaria? A beleza dela me enjoou como um doce comido em excesso e logo voltei minha atenção para o Peninha e sua boca sofrida cheia de dentes tortos.
- Já matei muita polícia!
- Mas eram maus, não eram pais de família, né? - perguntou Tálita
- Siiiim, siiim, eram maus, filhos das putas! - respondeu imediatamente
Peninha olhou para o Thiago, apertou seu braço:
- Esse aqui ía lutar bem na cadeia!
- Quê isso... - Thiago disse tímidamente com cabeça baixa e sorriso vago.
- Hahahaha! Ía ser mocinha na cadeia! - Tálita se exaltou
- Não, não! Do meu lado não! Se ele tiver comigo, ninguém mexe nele! - Peninha interrompeu, erguendo o rosto, com ar de proteção.
Jéferson Peninha continuava alcançando memórias dos mais profundos abismos de sua mente. E de repente, com olhar soturno, sugerindo uma lembrança amarga, confessou:
- Existe um crime que me arrependo. Só um! - dizia olhando para baixo - Matei uma menina de 12 anos. Ela me pediu de joelhos para que eu não matasse o pai dela: "Por favor! Não mate meu pai!". Eu peguei a menina e coloquei a arma em sua cabeça. A polícia já estava lá embaixo, com um megafone o coronel gritou: "Peninha, se renda!". Eu atirei na menina e joguei o corpo dela do quinto andar. Negociei com a polícia e entreguei as armas. O coronel pessoalmente colocou o grampo nas minhas mãos e me levou. Paguei a fiança com a grana que tinha do tráfico e o cigano estava solto de novo!
De repente uma discussão sobre crimes afinçáveis se estabeleceu. O Edu que estava na mesa conosco, discordou de algo que o Peninha falou. O nosso amigo das ruas ficava ameaçando lançar a "cigana voadora" no pescoço de Edu. A "cigana voadora" consistia em lançar de forma certeira o estilete enferrujado na garganta do oponente. Tálita comentou em alta voz que se não matasse pelo corte, mataria pelo tétano. Peninha sorriu e apontou para ela:
- Você é inteligente! E bonita! Podia ser "modela"! Se fosse "modela", seria seqüestrada. E eu seria o primeiro a seqüestrar!
Todos caíram na risada. Jéferson Peninha ficou indignado com a cerveja e disse que sairia pra buscar cachaça, porque cerveja não funciona com ele. Aparentemente seriam os últimos momentos dele conosco naquela noite, ainda mais quando nos disse:
- Não entrem no crime. A vida do crime não compensa.
Mas embora ele tenha saído, às vezes voltava pra comentar algo, para dizer quem era quem naquele bar. Pra cerrar nosso cigarro. Pra apontar alguma mulher gostosa que passava pela calçada tumultuada.
- Você viu os peitos daquela morena? Nossa vou chupar eles! - disse Peninha com sorriso excitado.
- DUVIDO! - disse eu para atiçá-lo a fazer a merda, para ver o circo pegar fogo.
- Duvida? Então tá bom! - respondeu se dirigindo à morena.
O que aconteceu depois não deu pra ver, pois ele a seguiu até entrar num bar.
Jéferson Peninha é uma figura odiada por garçons e amada por jovens daquele cenário. Mas perambula como uma alma penada pelas calçadas daquela região, flutuando como uma leve pena, uma peninha de um imundo pombo. Sujo, esquecido e aflito por lembranças que ele não sabia se eram histórias ou estórias. Lembro da última coisa que ele me disse:
- Porra! Fui deitar ali no banco da praça e os "urubu" mandaram eu sair de lá! Barrrrrrbaridade!
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