Eu pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: o que eu fiz da minha vida? Quando eu era criança, costumava esperar dos céus. Esperava um sussurro de um espírito celeste. Um sussurro de Cristo. Eu esperava que um anjo aparecesse com um bandeja, austero e viril porém com olhar doce. Esperava que naquela reluzente bandeja a resposta estivesse lá, resplandecente, saída das mãos de Deus. Hoje vejo as silhuetas que a fumaça do cigarro formam nesse ar seco do Planalto Central e me distraio. Talvez seja melhor assumir minha característica mais escancarada: a distração. Talvez se eu não me concentrasse nos cantos, na pia, na casa dos homens onde verti minha vida, talvez seria melhor. Mas no fundo da minha alma eu grito por luz. Sim, eu quero luz. Quando tento me conformar com a dor, quando tento assumir minha limitação, quando simplesmente olho para a perna que não existe mais, arrancada pelas frustrações, caduco, saltito de desespero. No fundo de minha alma eu grito que quero mais. Sim, eu quero mais. Oh vida, o que fiz de você? Ou o que diabos você fez de mim? Acredito que aquela fatia mais doce da vida ficou na mesa de pessoas impiedosas. Que me amaram e me fizeram mal. Eu apenas fui levando, aprendendo aos trancos e barrancos. E não havia um farol sequer na costeira para me lançar sinais. Um sinal que fosse. Apenas olhos de homens, com olhos sombrios. Olhos escuros sem aquele brilho que tanto desejei. Sempre busquei ser guiado por pessoas e nunca prestei atenção que eu guiava. Mas cegos que guiam cegos causam tragédia: um abismo fica cheio deles. Mas acredito que não era cegueira, era distração.
Vida, o que fizemos?
E aí joguei tudo fora, alvoroçado. Desvariei. Perdi a noção da hora. Sonhei e ao sonhar rompi com o mundo. Naveguei em navios por toda a vida, pulando entre eles, alternando entre eles. E de repente os queimei em pleno oceano revoltoso e pulei contra as ondas. Ávido de mar. Amei o amor urgente, salguei minha boca com a maresia, sentindo as costas lanhadas pela tempestade. Nadei até fraquejar, clamei por um grande peixe para me engolir e me vomitar em terra firme. Mas eu sabia que não estava contrariando uma ordem divina. Lamentei. Engoli água, boiei com as algas, arrastei folhas, carreguei flores e me desmanchei. Não olhei nenhum momento para os céus, exceto o momento em que os trovões pararam. Foi ali que encontrei a paz. Mexi minhas pernas como o entrelace de penas numa cama de paixão. Mas não as sentia. Meu coração batia forte, pulsava, pulsava. A correnteza me guiava, mas todos os músculos estavam exaustos. Ergui meus olhos para avistar a terra, mas para minha surpresa, percebi que havia dado meus olhos para alguém. Um rosto sem olhos. Com que cara vou partir? Sem a visão que conforta todo o corpo, que nos aquece nas ilusões da vida, como hei de partir? Com a correnteza misteriosa que nos leva pra cá e pra lá aos caprichos dos ventos retumbantes, pra onde que é que ainda posso ir? E mesmo que chegasse a uma praia, sinto que não resta em mim força, não me resta energia para um piscar de olhos (se ainda os tivesse). Queria apenas amar o amor serenado, das noturnas praias. Aí pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: com que pernas eu devo seguir?
No levitar das águas, no borbulhar das águas salgadas, a noite é eterna. Senti minha mente acalmar, como se me entregasse aos braços dessa misteriosa eternidade. Mas eu não tinha as travessuras dela. Nadei como um peixe ferido por um anzol, recém fugido do pescador. Busquei refúgio nela, aquela que andava nua, ávida de mar e que amava como uma pagã, mas esqueci que o oceano é infinito. Se eu fosse uma gota de sangue, teria errado de veia e me perdido na bagunça do coração dela. Me perdi na ironia da vida ao sentir um destroço de um dos navios que queimei. Não tinha forças para me abraçar a ele. Ele cheirava a queimado.
Aí perguntei aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Não, não perguntei. O silêncio do mar durante a noite é o mesmo silêncio dos céus. E talvez a dor do inferno seja o silêncio.
Cortei o silêncio, mas não o feri com uma canção de glória ou uma santa melodia. Engasgado com água, catatônico, com brilho no rosto que há muito não se via, teimei em balbuciar aquele ingrato mantra das almas condenadas, das almas perdidas e afogadas.
Eu te amo.