Quando ele puxa catarro para escarrar, parece uma cigarra ensandecida numa tarde de primavera. Maldito vizinho e malditas paredes sem isolamento acústico. Ele sempre derruba a escova de dente, o pente e o pote de gel. Eu sei. Dá pra ouvir. Sua mulher é mais cuidadosa com detalhes: não deixa a tampa do vaso despencar em estrondoso barulho, não fica praguejando enquanto mija ou caga (não sei), parece uma monja dos toiletes. Serena enquanto caga, nem deve feder. Cocozinho de anjo.
Vez em quando ela grita algo para o desgraçado do catarrento do companheiro dela, mas é incompreensível. Com certeza ela manda ele colocar a água pra ferver, "bota sal e óleo, hein? não quero macarrão grudado", ela deve gritar, enquanto passa creme nas pernas. Toalha enrolada na cabeça, como se fosse um turbante desengonçado. E as mãos delicadas passam lentamente aquele creme cheiroso em cada poro, milhares de poros de seus pés, canelas, coxas, joelhos. Bunda. Mãos, braços, cotovelos. Aquele cotovelo seco e enrugado. Eu tenho certeza disso.
Mas o que esquenta minha relação com eles é quando, em pleno banho, ouço batidas repetidas. Danados. Ah, seus danados. Eles batem na fina parede que nos separa. Ela geme (aí a monja vira puta mesmo), ele grita, maltrata aquela bunda meia-boca com belas bofetadas. Deve doer, porque eu ouço o chuveiro castiga-los com sua água quente e cá entre nós, aquelas bofetadas lá, doem em mim até. Ele geme e urra, grita enlouquecidamente. Ela começa a piar, como se fosse um bem-te-vi que só fala "bem". Imagine que bizarro. "Bem - bem - bem - bem". Esquece. Era melhor ter usado outra comparação. Do tipo: parece um sabiá sendo esganado. Aliás, isso é uma boa expressão chula pra sexo: "vou esganar o sabiá". Não. Pensando bem, parece mais uma tradução para punheta. Enfim, vou anotar isso para as rodas de bar. Mas voltando ao casal de vizinhos, fiquei ressabiado junto à parede, "juro que se essa parede desmoronar e eles caírem aqui, já engato meu pau na boca dela". Meu território, minhas regras. Não quero saber, não tem papo. Vai tomar pinto na garganta pra apender a parar de piar no banheiro. Falando em pinto, tenho uma comparação melhor: o som que ela emite, é como se fosse uma cambada de pintinhos, sabe? Aquela barulheira, aqueles piados intermináveis. Um absurdo. Mas aquela loucura no banheiro deles, aquele eco, a água se chocando com o chão, a púbis dele se chocando contra a bunda meia-boca dela, sim, púbis e bunda batizados com água de imoralidade, meu santo Cristo, sinto um reboliço. Nhec, nhec, nhec. Tchac, tchac, tchac. Eu começo a passar sabonete na cabeça , na cabeça de cima, diga-se de passagem. Perco a concentração, a noção do tempo, o banho se prolonga e meus dedos ficam enrugados, como se fossem dez mini sacos escrotais nas extremidades de minhas mãos. Mas não arredo o pé. De repente um silêncio. Fico lá, com a orelha na parede fria, meus cabelos lambidos, penteados pelos jatos de água intermináveis. E eu fico lá. Entre o temor e o tremor. Temo que eles me descubram em minha fantasia desagradável. E tremo de tesão quando os gemidos voltam. Tudo bem que parece que ela está sendo sufocada dentro de um copo de vidro, tamanho é o bloqueio que nos separa, mas enfim, não posso reclamar. A parede dá uma tremida repentina e eu dou um passo pra trás. "Opa, se essa merda desmoronar, já tô pronto", penso. Mas não desmorona, de jeito nenhum. E não, eu ainda não estava pronto.
Peguei o sabiá e comecei a mexer no pescoço dele. Passei o dedo suavemente pelo seu frágil pescocinho. Ele reage, cheio de não-me-toques.
Essa vizinha maravilhosa. Aqueles cabelos longos, levemente cacheados. Seus olhos verdes, um engano para os mais inocentes. Pobres meninos punheteiros. Ela é um engano demoníaco. Aquele nariz apertado caprichosamente pelo bom Criador. A boca não tinha um formato muito marcante, não era boca de boneca. Nada de mais. Apenas uma boca feita pra beijar, gemer, piar e gritar ordens do tipo "vá colocar a água pra ferver". Junte essa mistura de simplicidade e engano e coloque num rosto bem desenhado, com curvas ideais, bochechas firmes e na altura certa. Aquelas orelhinhas delicadas, os lóbulos parecendo tecos de pêssego pendurados. Bela, era isso que era, muito bela.
Era assim que eu imaginava minha vizinha. Não, eu nunca a vi. Mas sabe quando você sabe que sabe das coisas? Era o caso. Eu sabia que ela era assim. Igual um cara que imagina a cara de Deus ou de Jesus, por exemplo. Duvido que alguém comece a rezar sem visualizar uma cara. "Ó espectro divino, espírito sem face que tanto adoro", ora bolas, eu não sou idiota. Então, se você acredita em Deus, não me condene. Onde eu estava? Ah, falava da vizinha. Aquela deusa que pia. Aquele espírito com tetas. E que tetas. Eram grandes, volumosas. Exageradas. E aquele catarrento, aquela cigarra-humana estava lá, púbis na bunda, batismo imoral, gemidos e piados, lá estava ele, apertando aquelas montanhas da luxúria. Danados.
O sabiá se mexeu em minha mão, ameaçou piar, mas eu enforquei o bichinho. Tadinho.
E a água caindo. Meus ombros já deviam estar enrugados. Acho que até clareei um pouco, de tanta água que caía em minha pele. Mas estava lá, temendo e tremendo, enforcando o sabiá, com o ouvido na parede. Ploc, ploc, ploc. Os gemidos aumentaram, eu dei uma escorregada e choquei minha cabeça contra a parede. Toc, toc toc. Eles bateram na parede. Mal ele sabia que se a bendita parede caísse, eu estaria pronto para aquela bunda meia-boca da mulher dele. Malditos sejam, devem ter ficado nervosos, achando que eu havia protestado. Mas a verdade é que tudo deu certo para mim, o sem vergonha. Como contra-protesto ao meu não-protesto, eles aumentaram a intensidade. Ele gritava mais alto. Danados pirracentos. Pirraça gostosa. "Se a parede cair, meto a rola nela", pensei de novo. Ela deu uma risada alta, falou algo inteligível e voltou a gemer. O sabiá estava engasgado, roxo, os olhos esbugalhados, doido pra colocar o bico no trombone e eu impiedoso, sem vergonha, maníaco, enrugado, maltratando o sabiázinho. Tadinho. E eles começaram a pirraçar gostoso. Bateram mais forte. O boca de cigarra estava lá, voz grossa e abafada, devia estar vomitando insultos "sua cadela, sua puta, sua vadia" e ela devia estar enlouquecida "seu safado, cachorro maldito, me come". Danados demais. E o sabiá tadinho, doido pra urrar um impropério e nada. Estava roxo, o bichinho. Tadinho.
Mas eles uniram suas vozes, aquele casal danado e afinado. Chegaram no refrão de sua música imoral, chegaram no ápice, notas altas, vibrato, diafragma, "Alberto, cante com o diafragma, porra", lembrei do meu professor de canto gritando comigo. Mas lá estavam eles dois, que refrão! Chegaram lá. Chegamos lá. Eu era o vocal de apoio, o backing vocal, gemi baixinho, só pra servir de tapete para aquelas vozes. O sabiá gritou, urrou enlouquecido, como se contasse uma notícia ruim, uma fofoca daquelas. Parecia uma fofoqueira escandalosa. Que música. Que gritaria. Que pirraça. Eles bateram na parede, e lá estava eu, com o corpo franzino do sabiá em minhas mãos. Cansado, sofrido. Tadinho. E ouvi risadas gostosas no outro lado da parede. Essa parede desgraçada que não desmoronou. Risada embebida de relaxamento. O boca de cigarra catarrenta deu uma gargalhada, como se debochasse de mim, "esse vizinho otário aprendeu o que é uma boa foda", deve ter dito. Mal sabe ele que fizeram um ménage à trois comigo. Tecnicamente o sabiá estava no meio, então foi orgia mesmo.
Danados.
segunda-feira, setembro 29, 2014
terça-feira, julho 29, 2014
O Profeta e a Turba
Um dia descobrirás
Que tudo não passa de ilusão
Mas certamente estranharás
A ausência da iluminação
O desapego me é amigo
A meditação um abrigo
Onde estará a acesa chama?
A libertação, o Nirvana?
Lamentarás ao olhar para trás
No caminho sem esplendor
Em compreensão repentina e sagaz
Notarás ter esquecido o amor
Não há luz nos becos da fuga
Passos de medo emitem mais sons
Tinham razão, o profeta e a turba
O amor é o maior dos dons
Passos de medo emitem mais sons
Tinham razão, o profeta e a turba
O amor é o maior dos dons
quarta-feira, julho 16, 2014
O Sentido das Engrenagens de um Mingau Frio
Será que a vida não passa de um acidente? Afinal, qual é o sentido de ser bom? Qual é o sentido em fazer o bem ao próximo? Será que existe algum sentido em ser mau? Existe sentido em algo? Ou estamos apenas flutuando, girando ao redor de uma estrela entre tantas trilhões que existem por aí?
Eu não sei qual é o sentido das coisas. Você encontra pessoas que mudam sua vida e elas vão embora. Você ouve Canção da América e começar a sentir o coração como se fosse uma uva passa. Enrugado, mínimo e escuro. E que canção. Você para pra pensar que em muitos casos, o tempo passou e as relações, muitas delas, esfriaram assim como é natural um prato de mingau esfriar. No começo comemos pela beirada, na ansiedade da fome, do desejo. E assim é com as amizades. No inícios forçamos tudo, raspamos de forma singela a beirada endurecida daquele simples prato. E assim é com a amizade. É coisa simples, como um prato de mingau de maizena. Quando menos esperamos, o mingau já pode ser devorado pois está morno. E o que sobra? Aqueles freios gelados, resquícios das colheradas que desferiam ruidosos riscos ao prato. E assim é com a amizade. Depois de tudo, você despeja o prato na pia e vai pra sala. Vai ouvir a Canção da América. Que canção. Você acabou de comer um mingau e nem percebeu que de repente comeu o sentido das coisas. Ou a explicação para alguma coisa. Ou um simples paralelo. Rostos passam por sua mente, movidos por uma soturna engrenagem. Quantos amigos não se foram por aí, caminhando por trajetos que nunca imaginei? Quantos amigos eu não imaginei como amigos para toda a vida. E hoje não estão aqui. Não estão nem sequer ali.
"Qualquer dia amigo eu volto a te encontrar".
Aí você se questiona, "mas por que diabos precisamos perder pessoas?", "por que não podemos amar a todos?", "por que a vida é assim, tão transitória?", "por que tudo muda?", "por que queremos que tudo fique do mesmo jeito?". Você se pergunta "por que existe sempre o outro lado da moeda?", "por que apenas não somos pra sempre?", "ou apenas mudamos toda hora?", "por que a estagnação opõe a mudança?" Aí você desliga a música e percebe que teria que questionar o porquê da vida se opor à morte. Ou seria que a morte se opõe à vida?
Não, você não quer mais pensar na vida. Nem eu. E nem queremos pensar no mingau das amizades. Nem na engrenagem que faz tudo girar ou na colher que pode travar tudo que gira. Se tudo travar, morreremos? Ou apenas viveremos sem entender mais nada? Peraê! A engrenagem parou? Qual era o sentido da engrenagem mesmo?
Nada faz sentido por aqui, né? Mas você sabe se algo realmente tem sentido?
Eu não sei qual é o sentido das coisas. Você encontra pessoas que mudam sua vida e elas vão embora. Você ouve Canção da América e começar a sentir o coração como se fosse uma uva passa. Enrugado, mínimo e escuro. E que canção. Você para pra pensar que em muitos casos, o tempo passou e as relações, muitas delas, esfriaram assim como é natural um prato de mingau esfriar. No começo comemos pela beirada, na ansiedade da fome, do desejo. E assim é com as amizades. No inícios forçamos tudo, raspamos de forma singela a beirada endurecida daquele simples prato. E assim é com a amizade. É coisa simples, como um prato de mingau de maizena. Quando menos esperamos, o mingau já pode ser devorado pois está morno. E o que sobra? Aqueles freios gelados, resquícios das colheradas que desferiam ruidosos riscos ao prato. E assim é com a amizade. Depois de tudo, você despeja o prato na pia e vai pra sala. Vai ouvir a Canção da América. Que canção. Você acabou de comer um mingau e nem percebeu que de repente comeu o sentido das coisas. Ou a explicação para alguma coisa. Ou um simples paralelo. Rostos passam por sua mente, movidos por uma soturna engrenagem. Quantos amigos não se foram por aí, caminhando por trajetos que nunca imaginei? Quantos amigos eu não imaginei como amigos para toda a vida. E hoje não estão aqui. Não estão nem sequer ali.
"Qualquer dia amigo eu volto a te encontrar".
Aí você se questiona, "mas por que diabos precisamos perder pessoas?", "por que não podemos amar a todos?", "por que a vida é assim, tão transitória?", "por que tudo muda?", "por que queremos que tudo fique do mesmo jeito?". Você se pergunta "por que existe sempre o outro lado da moeda?", "por que apenas não somos pra sempre?", "ou apenas mudamos toda hora?", "por que a estagnação opõe a mudança?" Aí você desliga a música e percebe que teria que questionar o porquê da vida se opor à morte. Ou seria que a morte se opõe à vida?
Não, você não quer mais pensar na vida. Nem eu. E nem queremos pensar no mingau das amizades. Nem na engrenagem que faz tudo girar ou na colher que pode travar tudo que gira. Se tudo travar, morreremos? Ou apenas viveremos sem entender mais nada? Peraê! A engrenagem parou? Qual era o sentido da engrenagem mesmo?
Nada faz sentido por aqui, né? Mas você sabe se algo realmente tem sentido?
sábado, julho 12, 2014
Afogado
Eu pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: o que eu fiz da minha vida? Quando eu era criança, costumava esperar dos céus. Esperava um sussurro de um espírito celeste. Um sussurro de Cristo. Eu esperava que um anjo aparecesse com um bandeja, austero e viril porém com olhar doce. Esperava que naquela reluzente bandeja a resposta estivesse lá, resplandecente, saída das mãos de Deus. Hoje vejo as silhuetas que a fumaça do cigarro formam nesse ar seco do Planalto Central e me distraio. Talvez seja melhor assumir minha característica mais escancarada: a distração. Talvez se eu não me concentrasse nos cantos, na pia, na casa dos homens onde verti minha vida, talvez seria melhor. Mas no fundo da minha alma eu grito por luz. Sim, eu quero luz. Quando tento me conformar com a dor, quando tento assumir minha limitação, quando simplesmente olho para a perna que não existe mais, arrancada pelas frustrações, caduco, saltito de desespero. No fundo de minha alma eu grito que quero mais. Sim, eu quero mais. Oh vida, o que fiz de você? Ou o que diabos você fez de mim? Acredito que aquela fatia mais doce da vida ficou na mesa de pessoas impiedosas. Que me amaram e me fizeram mal. Eu apenas fui levando, aprendendo aos trancos e barrancos. E não havia um farol sequer na costeira para me lançar sinais. Um sinal que fosse. Apenas olhos de homens, com olhos sombrios. Olhos escuros sem aquele brilho que tanto desejei. Sempre busquei ser guiado por pessoas e nunca prestei atenção que eu guiava. Mas cegos que guiam cegos causam tragédia: um abismo fica cheio deles. Mas acredito que não era cegueira, era distração.
Vida, o que fizemos?
E aí joguei tudo fora, alvoroçado. Desvariei. Perdi a noção da hora. Sonhei e ao sonhar rompi com o mundo. Naveguei em navios por toda a vida, pulando entre eles, alternando entre eles. E de repente os queimei em pleno oceano revoltoso e pulei contra as ondas. Ávido de mar. Amei o amor urgente, salguei minha boca com a maresia, sentindo as costas lanhadas pela tempestade. Nadei até fraquejar, clamei por um grande peixe para me engolir e me vomitar em terra firme. Mas eu sabia que não estava contrariando uma ordem divina. Lamentei. Engoli água, boiei com as algas, arrastei folhas, carreguei flores e me desmanchei. Não olhei nenhum momento para os céus, exceto o momento em que os trovões pararam. Foi ali que encontrei a paz. Mexi minhas pernas como o entrelace de penas numa cama de paixão. Mas não as sentia. Meu coração batia forte, pulsava, pulsava. A correnteza me guiava, mas todos os músculos estavam exaustos. Ergui meus olhos para avistar a terra, mas para minha surpresa, percebi que havia dado meus olhos para alguém. Um rosto sem olhos. Com que cara vou partir? Sem a visão que conforta todo o corpo, que nos aquece nas ilusões da vida, como hei de partir? Com a correnteza misteriosa que nos leva pra cá e pra lá aos caprichos dos ventos retumbantes, pra onde que é que ainda posso ir? E mesmo que chegasse a uma praia, sinto que não resta em mim força, não me resta energia para um piscar de olhos (se ainda os tivesse). Queria apenas amar o amor serenado, das noturnas praias. Aí pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: com que pernas eu devo seguir?
No levitar das águas, no borbulhar das águas salgadas, a noite é eterna. Senti minha mente acalmar, como se me entregasse aos braços dessa misteriosa eternidade. Mas eu não tinha as travessuras dela. Nadei como um peixe ferido por um anzol, recém fugido do pescador. Busquei refúgio nela, aquela que andava nua, ávida de mar e que amava como uma pagã, mas esqueci que o oceano é infinito. Se eu fosse uma gota de sangue, teria errado de veia e me perdido na bagunça do coração dela. Me perdi na ironia da vida ao sentir um destroço de um dos navios que queimei. Não tinha forças para me abraçar a ele. Ele cheirava a queimado.
Aí perguntei aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Não, não perguntei. O silêncio do mar durante a noite é o mesmo silêncio dos céus. E talvez a dor do inferno seja o silêncio.
Cortei o silêncio, mas não o feri com uma canção de glória ou uma santa melodia. Engasgado com água, catatônico, com brilho no rosto que há muito não se via, teimei em balbuciar aquele ingrato mantra das almas condenadas, das almas perdidas e afogadas.
Eu te amo.
Vida, o que fizemos?
E aí joguei tudo fora, alvoroçado. Desvariei. Perdi a noção da hora. Sonhei e ao sonhar rompi com o mundo. Naveguei em navios por toda a vida, pulando entre eles, alternando entre eles. E de repente os queimei em pleno oceano revoltoso e pulei contra as ondas. Ávido de mar. Amei o amor urgente, salguei minha boca com a maresia, sentindo as costas lanhadas pela tempestade. Nadei até fraquejar, clamei por um grande peixe para me engolir e me vomitar em terra firme. Mas eu sabia que não estava contrariando uma ordem divina. Lamentei. Engoli água, boiei com as algas, arrastei folhas, carreguei flores e me desmanchei. Não olhei nenhum momento para os céus, exceto o momento em que os trovões pararam. Foi ali que encontrei a paz. Mexi minhas pernas como o entrelace de penas numa cama de paixão. Mas não as sentia. Meu coração batia forte, pulsava, pulsava. A correnteza me guiava, mas todos os músculos estavam exaustos. Ergui meus olhos para avistar a terra, mas para minha surpresa, percebi que havia dado meus olhos para alguém. Um rosto sem olhos. Com que cara vou partir? Sem a visão que conforta todo o corpo, que nos aquece nas ilusões da vida, como hei de partir? Com a correnteza misteriosa que nos leva pra cá e pra lá aos caprichos dos ventos retumbantes, pra onde que é que ainda posso ir? E mesmo que chegasse a uma praia, sinto que não resta em mim força, não me resta energia para um piscar de olhos (se ainda os tivesse). Queria apenas amar o amor serenado, das noturnas praias. Aí pergunto aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Sim, eu pergunto: com que pernas eu devo seguir?
No levitar das águas, no borbulhar das águas salgadas, a noite é eterna. Senti minha mente acalmar, como se me entregasse aos braços dessa misteriosa eternidade. Mas eu não tinha as travessuras dela. Nadei como um peixe ferido por um anzol, recém fugido do pescador. Busquei refúgio nela, aquela que andava nua, ávida de mar e que amava como uma pagã, mas esqueci que o oceano é infinito. Se eu fosse uma gota de sangue, teria errado de veia e me perdido na bagunça do coração dela. Me perdi na ironia da vida ao sentir um destroço de um dos navios que queimei. Não tinha forças para me abraçar a ele. Ele cheirava a queimado.
Aí perguntei aos céus, ao inferno. Ao purgatório também. À todas as almas salvas ou condenadas. Aos anjos, aos deuses, ao Criador. Não, não perguntei. O silêncio do mar durante a noite é o mesmo silêncio dos céus. E talvez a dor do inferno seja o silêncio.
Cortei o silêncio, mas não o feri com uma canção de glória ou uma santa melodia. Engasgado com água, catatônico, com brilho no rosto que há muito não se via, teimei em balbuciar aquele ingrato mantra das almas condenadas, das almas perdidas e afogadas.
Eu te amo.
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