"Born to be wiiiiild", apenas esse trecho daquela música de rock se contorcia na mente de Ernesto. Finalmente aquela moto e Ernesto. Não, não se tratava de Ernesto Guevara e sua motoca riscando o mapa da América Latina. Até porque o Che jamais iria cantar uma música daquelas. Ele estava mais preocupado em ouvir flauta de índio boliviano. E a música não existia naquela época. Espero que esses argumentos tenham bastado. Ernesto nunca gostou de moto. "Máquinas da morte", era o que sempre dizia quando começavam a falar sobre o veículo de duas rodas. Ele não tinha o menor apreço pelos motoboys de São Paulo, mas quem o tinha? E verdade seja dita, Ernesto sempre foi adepto do transporte público. Ao viajar pelo interior do Paraná, recusou um serviço de moto-táxi, "perigoso demais para arriscar", pensava Ernesto enquanto ignorava o chamado do moço do moto-táxi. Mas aquela moto amarela, com traços de Harley-Davidson, ah aquela moto! Vibrava como milhões de abalos sísmicos num Japão qualquer aí. A liberdade de uma boa curva, a indecência de uma acelerada. "Onde você estava por todo esse tempo?", perguntava aos gritos, enquanto fazia curvas e costurava o trânsito embaraçado de São Paulo. Não havia pessoas na cidade, nas calçadas, nos pontos de ônibus ou nas portas de botecos, fumando seus cigarros na parte de fora do toldo. Não havia motoristas nos carros, ninguém lamentando o tempo perdido, ninguém ouvindo CBN querendo saber mais sobre o trânsito, aquele ecossistema de nervos e paciência budista. Havia dobermans. Deus, eles eram muitos. Não se intimidavam com o roncar da moto amarela. Não titubeavam em suas investidas, quando avançavam e rasgavam o ar com suas ferozes mordidas. "Quem eram aqueles malditos dobermans", pensou Ernesto enquanto tentava ressuscitar em sua mente um caminho, um atalho. Mas de repente, do que valia um GPS sequer, se Ernesto nem em São Paulo estava mais?
- Mas que maravilha! Agora não sei onde diabos me meti! - gritou Ernesto, enquanto sua voz ecoava outras frases.
Ernesto parou a moto, não tinha capacete para tirar. Ernesto era a aventura, era o esculacho, o peito estufado de encontro com a lei. Ernesto nem sequer usava meias. Era o esculacho. Desejou um pouco de bebida, água serviria, mas onde estava não havia o que desejar, a não ser a sobrevivência. Montou sua moto, castigou o pedal de partida com uma pela pisada e acelerou como nunca. O mundo estava ao contrário e o chão era nuvem. Era lindo. Mas postes, bancos de praça, semáforos, idosas e suas bengalas, calçadas rachadas, tudo caia sobre Ernesto. Mas não havia o que temer. Lar doce lar. "Por que tenho essa mania idiota de montar na minha moto em plena sala de casa? Devia parar com isso", pensou Ernesto, corrompido por lembranças estranhas, mas que eram suas. Ao menos pareciam ser. Dobermans.
- Mas o que é isso? Saiam desgraçados! - pisoteou novamente o pedal de partida.
A moto acelerava enlouquecidamente, o escapamento virado em direção aos dobermans. Mas eles não tinham medo. Valentes. Ernesto fechou a porta. "Já chega por hoje, preciso de um pequeno trago", dizendo isso, subiu a escada da sala com sua moto, e lançou-a embaixo de sua cama. Esfregou uma palma da mão na outra e caminhou em passos pausados, aquela bota de couro, bico fino, detalhes indecifráveis de costura, sim, aquela bota testemunhara cada coisa. Toc, toc, toc. Ernesto não lembrava que seu chão era revestido por um piso de madeira. Deu de ombros para o fato, dobrou seu lábio inferior, como se sofresse de alguma mágoa instantânea e olhou para cima. O teto girou, noventa graus de giro. Virou parede.
- Isso não é possível - resmungou enquanto coçava seus olhos, tentando acreditar no que acontecera.
Ao tirar as mãos dos olhos, um bar. O verde vivo, fluorescente, neon por toda a parede, aquele maldito esqueleto velho sentada em um dos tamboretes, chorando pelo leite derramado, declamando um poema sobre os benefícios do cálcio. "Beba leite", ela vociferava. Aquela mandíbula mexendo enquanto palavras saiam sabe Deus de onde, aquilo dava nos nervos.
- Sente aqui, Ernesto, aqui ao meu lado, rapaz! Anda! - um velho baixo, parrudo como uma anta, careca da testa até o meio da cabeça, com smoking branco e gravata borboleta vermelha com pontos amarelos dava pequenos tapas no couro que revestia o tamborete ao seu lado.
- Quem é você? - Ernesto caminhava lentamente, avesso a qualquer hospitalidade estranha. Sobrancelha franzida, mãos nos bolsos. TOC, TOC, TOC.
O homem pegou um bloco de notas e começou a escrever com um lápis envelhecido, todo mordido nas pontas. Era nostálgico em seu modo de escrever, como se estivesse torcido por uma mão enorme. Mão de Deus. Era uma criança velha, de smoking, é claro. Entregou um papel para Ernesto, que estava sentado no tamborete, mirando o barman, acompanhando cada ato do pobre funcionário. "É bom que ele não erre a mão nesse drink", Ernesto pensava enquanto apanhava o papel da mão ressequida do idoso calvo.
Economizo as palavras. Por isso escrevo.
- Não faz sentido, velhote - ergueu seu copo, olhando para a cor alaranjada que o líquido assumira.
Uma dentadura jazia inerte, dentro do copo. "Piada de mal gosto desse babaca", refletiu enquanto cerrava os dentes no bico do copo. O líquido passava entre os dentes da frente e desapareciam na imensidão de sua garganta. "Realmente não faz sentido".
- Me explique melhor, seu velho mudo dos infernos! - Ernesto tinha os ânimos inflamados.
Alguma coisa tinha naquela bebida. Ah, tinha. O velhote, meio caquético, meio mancebo (a julgar pelo seu vigor ao rabiscar o papel), continuava ali, apoiado no balcão, inclinado sobre o papel. Uma fila de formigas passava a centímetros de sua mão, que dançava sobre a folha grosseira e amarelada. Ele suava, e havia algo de urgente em seu olhar, como se tivesse uma verdade para contar. Como se fosse a última testemunha viva de um crime prescrito. Arrancou aquela folha do bloco e entregou outra vez para Ernesto.
Não se engane em relação a mim, garoto. Perdi minha língua para não enlouquecer. Não era sequer um instrumento de tropeço para mim. Era causa de insanidade. Assim Deus quis. Assim o é.
Ernesto leu a mensagem, raciocinou lentamente. Coçou a sobrancelha direita que estava levemente desequilibrada em relação a da esquerda. Amassou o papel e jogou para trás, ignorando o destino que iria tomar. O papel não chegou a tocar no chão, arqueou sua trajetória evitando o impacto com o duro solo. Sem explicações, sem razões para ser, o subiu suavemente, como uma andorinha domina os braços dos ventos. Ernesto percebeu que o papel estava lá de novo, ao lado do copo já drenado. "Haja a santa paciência, pra tolerar essas brincadeiras". Acenou para o barman e pediu um uísque, à moda antiga.
- Preste atenção, meu senhor. Não vou tolerar mágicas, truques. Odeio essas coisas e eu tô falando sério - ele apontava o dedo para o velho como se fosse uma testemunha indicando um suspeito como autor de um crime.
O velho sorriu serenamente, sem exibir os dentes. Sua boca era acidentada, lábios escurecidos e sulcados. Mas a feição era de um bom senhor, um velhinho daqueles que simpatizamos nas ruas. Fez um sinal com a palma da mão, pedindo para que Ernesto esperasse pelo próximo papel. Ernesto bufou com linhas desprezíveis, olhou para cima e apoiou seu cotovelo no balcão e em seguida, apoiando sua bochecha na palma da mão. Sua cara ficou engraçada.
- Ei chefe! E o meu uísque? Posso saber onde está? - perguntou desinteressado, com o olhar passeando lentamente pelo vazio.
- Eu já te disse que quem tem chefe é índio! - Ernesto ouviu a voz flutuando atrás de sua nuca.
Observou o velho que ainda estava lá, escrevendo, como se fosse uma criança entretida debruçada em seu livro de pintura. Observou o barman, aquele paspalho que observava a tudo. Notou algo impressionante: o uísque parara no ar. Não tinha ainda atingido o fundo do copo e o barman estava lá, encostado na porta dos fundos, parado, como se fosse uma cena comum. O esqueleto repetia sua ode ao cálcio. "Maldito esqueleto, odeio essa mandíbula trêmula. Não é possível que eu tenha uma mandíbula como essa", Ernesto era puro desprezo em suas considerações. Lembrou da voz por trás de sua nuca e virou. Era ele, Artur. Mas antes de sentir qualquer alívio por vislumbrar um rosto conhecido, sentiu aquela massa de ossos e pele, quatro dedos pontudos, fechados, massacrando a mandíbula de Ernesto. Sentiu como se um anjo maligno trancasse seu rosto com um cadeado de fogo. Ele não conseguia falar mais. A mandíbula estava travada, a dor se remexia em seus nervos, seus sangue borbulhava em intensidade, Ernesto via cores, explosões de cores, tudo girava.
- Espero que tenha aprendido a lição, meu nobre amigo - Artur estendia a mão para o amigo golpeado se recompor.
Ernesto pulou de imediato e procurou pelo velho. Havia apenas um papel escrito e o lápis desgastado, imóvel ao lado de um copo. Parecia rum.
Quando um homem ouve ecoar as palavras que diz, como se fosse um ciclo infinito, tende-se a medidas drásticas. Economize palavras ou arranque-as de seu solo nutridor. Eu sou homem. Eu arranquei.
Ernesto chorava ao terminar a leitura. Como se todas as suas dores fossem condensadas em uma pasta grosseira, áspera e agreste. Essa massa substituía seus músculos, nervos de angústia se materializavam e tiniam causando tremores assombrosos. E com todo esse processo de ebulição apenas lágrima, aquele líquido límpido, salgado e inofensivo, saía como produto daquela série de sensações. "Lágrimas não são assim tão inofensivas", Ernesto tocava sua mandíbula e sofria. Olhou-se no espelho e chorou mais um pouco. Não havia mandíbula. Não havia língua. Havia uma mancha, borrando seu rosto, a cor era indescritível. Essa cor não existia. A mancha se estendia do buço até o queixo.
- O cálcio é um milagre mineral, benéfico como é a flor, dentes e ossos... - o esqueleto teve seu poema interrompido por um copo que cortou o ar, bem rente à sua clavícula.
Ernesto procurava por Artur que havia desaparecido. Sentou no tamborete onde o velho sentara antes e alcançou o último bilhete. O esqueleto deu uma risada oportuna.
- Ei você! Da boca borrada! - apontava pra Ernesto - O que acontece com você?
Ernesto pegou o papel com a mensagem do velho e o ergueu com a mão direita. Com a mão esquerda sinalizou que iria escrever algo. Olhou para a mensagem, leu as duas primeiras palavras e ficou exaltado. Não havia mais uma folha de papel, nem guardanapos naquele bar decadente. Pegou o lápis com a mão esquerda e virou o bilhete. Escreveria no verso.
Ninguém pode sobrepor seus problemas ao dos outros. Não há escapatória para aquilo que você não entende e ignora. Não há fuga. Nem no verso de um papel.
Lágrimas lhe caíam dos olhos, cada vez mais espessas. Seus canais lacrimais estavam no limite. Procurou por todos os lados mas não achou sua cama. Queria a moto novamente. O esqueleto apontou para o norte e Ernesto correu como nunca. Observou uma figura escura a cinquenta metros dele. Era a cama. Se prostrou e lá embaixo, não percebeu nenhum resquício de sua moto. Mas três dobermans permaneciam sentados por lá, patas cruzadas e sete cartas em cada mão. "Isso parece o apocalipse!", Ernesto tentou voltar para o bar, mas um doberman arrancou seu pé direito, com uma mordida só. Com o pé de Ernesto em sua boca, despejou as sete cartas no chão. Os outros dois dobermans brigaram pelo pé, e os latidos e ganidos eram ensurdecedores. Sem o pé direito, Ernesto escapou de sua cama e correu até o bar. Ele perdia muito sangue. Sentou no tamborete, sem o pé direito, e viu o uísque enfim cair no fundo do copo. Esqueceu a dor e recebeu com prazer o copo. Tentou beber mas esquecera que não tinha mais boca. Apenas um borrão de cor não existente. Olhou para o que restou de seu pé e percebeu o sangue jorrar. Olhou para o pé esquerdo que mexia normalmente, obedecendo as ordens do seu cérebro. "Ao menos sou canhoto", pensou Ernesto pensando estar a sorrir, mas sabendo que nem dentes tinha mais.
- Cálcio, ah! o cálcio! Faz bem para os dentes, o cálcio! - o esqueleto era a alegria em osso e osso.
quinta-feira, maio 09, 2013
domingo, maio 05, 2013
Barriga de Chope
- Nelson, nós conversamos em uma reunião com a gravadora.
- Sim, acredito que as pessoas conversem em reuniões, a não ser que exista a possibilidade de vocês tocarem bongô fumando merda, olhando pro teto - acendi um cigarro enquanto balbuciava meu sarcasmo.
- Olha Nelson, você é um bom baixista, ninguém tem dúvida disso.
- E também componho metade das músicas - cortei novamente a fala do empresário da banda.
- Sim, você é um excelente letrista. Também não temos dúvida disso. Mas é que...
- 'Nós', 'temos', é muita terceira pessoal nesse papo. Quem são vocês? Em nome de quem você está falando, pelo amor de Deus? - soprei fumaça intencionalmente na direção do rosto dele.
- Esse 'nós' significa os caras da gravadora, o Martinho e eu - o seu jeito soturno de falar começou a me deixar agitado.
- Pois bem, desembucha logo. E pare de falar olhando pra baixo, parece criança arteira depois de fazer merda. Aliás, que merda você fez?
A tarde era quente, mais um daqueles dias típicos em São Paulo. Você sai de casaco pela manhã, morrendo com um frio moscovita, ao meio-dia tudo o que você quer é que a cidade se torne uma colônia naturista e que todos andem nus balançando suas bolas e seus seios. Eu odiava aquela salinha do estúdio. Era pra ser apenas mais um ensaio da banda. Os Fumos Enrolados. Eu odiava o nome da banda, mas fui voto vencido. Eu tinha uma lista de sugestões, todas vetadas. Acredito que o nome 'Os Tolos da Colina' era mais legal, tinha um fundo beatlemaníaco, alimentaria a curiosidade do público. Mas fui voto vencido. E o Paulinho Kabul era um bom moço. Um empresário esforçado, bebia como se o seu corpo fosse uma grande esponja. Sempre tinha boas ideias e sua rede de contatos, bem, era um tanto medíocre. Mas ele havia conseguido aquele contrato com a gravadora e a sua moral conosco foi catapultada. Ele pegou um cigarrinho de maconha, girou o baseado por alguns minutos, com olhar fixo num cartaz pregado na parede daquela maldita salinha. O cartaz era de um show do Deep Purple em Montreaux, no ano de 1969. Tenho certeza absoluta que aquele ano havia sido melhor que essa merda de 2006.
- E então, Paulinho? - arregalei meus olhos, fuzilando-o com raios de pressão. Eu mais parecia com um homem morrendo afogado, de tanta apreensão.
- O pessoal da gravadora acha que você não ajuda na imagem da banda.
- Pffff - fiz um ruído tremendo meus lábios, externando desprezo - O que uma coisa tem a ver com a outra?
- Pra eles faz sentido, apenas isso. Eu argumentei, cara. Juro pela minha mãe - ergueu seu braço, abrindo a mão, com a palma virada para mim.
- Quer dizer que somos apenas imagem? Somos apenas ícones legais? E em qual momento vocês falaram sobre música? - minha cara de afogado agora era de afogado em meio a uma cacetada de tubarões.
- Não falaram sobre música.
- Agora já não existe 'nós', existe apenas 'eles'.
- Nelson, é assim que o mercado funciona. Não tem como nadar contra a maré.
Eu continuava atacando o cigarro com dedicação, apertando o filtro macio entre meus dedos. A minha vontade era de apagar aquele cigarro na testa dele.
- Veja bem, aquilo que era uma era de ouro - apontei para o quadro do Deep Purple - Não tinha isso de 'imagem', de 'comércio'. Caralho, os caras eram maltrapilhos, fediam e não estavam se importando.
- Eu sei disso, mas os tempos mudaram, Nelson! Você é um idealista, não dá pra viver assim! Hoje temos uma série de novos conceitos, porra...
- Maldita cultura de massa. Aliás, quer dizer que vocês vão virar uma bandinha como qualquer uma dessas? Que se vende? Você sabe que o Martinho vai ter que fazer uma plástica naquela cara horrível - eu havia me acomodado na pequena poltrona dura, de tecido desgastado e manchado.
- Nelson - os olhos de Paulinho estavam amansados, o efeito da maconha havia acariciado sua mente - se você quiser uma máquina do tempo, não sou eu que vou te dar - começou a rir suavemente, com feição de um chinês que trabalha duro em uma mina de carvão.
- Então além de me dispensar, você ainda me destrata? Só um instante.
Estendi meu braço na direção de Paulinho, pedindo para ele esperar ali.
- Ei Nelson! - deu uma risada - Onde vai? Pegar uma arma?
- Precisaria de uma bomba pra fazer o que gostaria - respondi desanimado enquanto ganhava o corredor.
Fechei a porta da salinha maldita e fui até outra sala, onde deixávamos nossas coisas para ensaiar. Aquela corja que antes era minha banda, já havia se mandado. Covardes. Abri um pequeno armário e percebi que minha garrafa de Jack Daniels estava lá. Eu não bebia esse uísque por ser modinha entre roqueiros. Era o melhor mesmo, eu gostava muito. Eu ainda tinha dois terços da garrafa cheia, isso daria para me fazer raciocinar. Dei um pulo até a pequena copa do estúdio, que estava imunda e abri a geladeira branca, descascada e enferrujada em sua base. Havia gelo também. Mas como nem tudo era classe, o único copo disponível era um de requeijão. Despejei quatro cubos de gelo e voltei para a salinha, com um copo em uma mão e a garrafa na outra. O carpete empoeirado e encardido do estúdio me fez pensar no covil em que ensaiamos. Nem é tudo isso. Vira e mexe encontrávamos pequenas bandas idiotas perambulando pelos corredores daquele estúdio chinfrim, gravando suas demos, com dinheiro contado, todos se achando os roqueiros consagrados. Confesso que eu não estava nem aí para toda a aura esplendorosa de sucesso que circunda as ambições de cada moleque que se propõe a fazer um som. Eu estava lá para fazer algo diferente. Eu tinha base musical, conhecimento da história da música, eu sabia o caminho das pedras para criar algo novo, mas no final das contas, eu era um péssimo músico. Aquele papo do Paulinho, de eu ser um bom baixista, foi bajulação. Como se fosse uma enfermeira passando algodão molhado no meu braço antes de enfiar uma agulha enorme em minhas veias. Deus do céu.
- Onde estávamos? - perguntei adentrando a sala e fechando a porta.
- Hã? - Paulinho estava pra lá de Bagdá. Ou pra lá de Kingston. Somente os esclarecidos entenderão.
- Olha aqui, Paulinho, largue essa erva danada e me dê sua atenção - eu era imperativo, mas com a serenidade de uma vaca num pasto.
- Diga, meu querido Nelson. Diga o que quiser, meu querido Nelson.
- Corta esse papo de 'querido', cara. Eu vou beber, e já que você quer se entorpecer nessa merda, então seremos dois entorpecidos discutindo.
- Boto fé.
- Bota fé... sei - comecei a trabalhar no uísque.
- Pois bem, meu caro Paulinho...
- Corta essa de 'meu caro' - Paulinho começou a rir de forma ligeira, aquilo afetou minha retórica.
- Ei, Paulinho, seu porra! Ouça!
Paulinho enfiou aqueles dentes amarelos pra dentro da boca novamente e finalmente ficou quieto.
- Cara, vocês estão nessa de se vender mesmo? O que tem de mais em mim? Eu nem sou drogado, porra - meu tom era lamurioso.
- A gravadora vai colocar a banda pra tocar em uma série de programas na MTV. E sabe, a banda tem mania de tirar camisa em êxtase, mostrando tatuagem, pulando igual macacos, aquela merda lá, todo mundo drogado. É a visão do inferno, tá certo, mas vende. As menininhas estão loucas por vocês. Aliás, menos você.
- O que tem eu, caceta? Me explique es-pe-ci-fi-ca-men-te - pausei a última palavra para ver se aquela mente fumada entenderia.
- Você tem barriga de chope. Você não tem tatuagem. Você é o intelectual da banda, só bebe e fuma, não curte uma droguinha sequer. Você tem perfil para tocar com o Los Hermanos ou algo parecido.
- Ei, eu fumo uma maconhazinha de leve.
- Então... É de leve. A gravadora quer algo bonito e subversivo. Quer todo mundo em forma. E o seu cabelo não ajuda.
- Meu cabelo? Ele é o mais legal dessa banda! O Pépe tem caspa pra cacete! A cabeça dele parece um telhado de casa americana no natal, parece neve! Fica pulando no palco com aquelas caspas nos ombros, parece que saiu de um pacote de biscoito de polvilho! E olhe o cabelo do Martinho, parece uma palha de aço enferrujada. Se você der uma tapa na cabeça dele, o cabelo se desfaz!
- O Martinho é o símbolo da banda, é o que a gravadora quer.
- Ah sim... olhei para Paulinho com desdém - A gravadora não vai trocar o nome dele? Aquilo é nome de sambista.
- É, é uma boa sugestão - seu olhar era vago, como se visse um quadro, em algum museu legal.
- Tá vendo? Você também se vendeu. Puta que pariu - finalizei o primeiro copo. A tarde seria longa.
- Você parece um comunista falando - esboçou um sorrisinho naquele rosto salpicado de marcas de espinhas.
- Ei, quem satiriza os comunistas sou eu! - ergui minhas costas apontando para o rosto dele.
- Abaixe o dedo, Nelson... você é muito atrevido.
- Quer dizer que então você vai se prostituir? Ótimo. Vão fazer música para menininhas enlouquecidas? O que querem? Boquetinho no camarim? Meter o dedo naquelas ninfetinhas? Porra, eu achava que você não gostava do cheiro de fraldas. Amigão, foda-se essa banda, vou continuar fumando, bebendo e comendo bocetas adultas.
- Os Beatles faziam música pra meninada, Nelson. Isso não é de hoje. Estamos falando do começo dos anos sessenta - o pobre diabo me lançou um olhar desafiador, seguido de um ar de soberba, como se tivesse o argumento definitivo.
- Ohhhh - olhei para o alto como se vislumbrasse uma revelação divina - Então os Fumos Enrolados serão os novos Beatles? Daqui quatro anos vocês lançarão algo parecido com o 'Revolver'? E o 'Sergeant Pepper's'? Daqui cinco anos? Uau! - eu sou extremamente exagerado com minhas ironias.
- Não... vamos apenas curtir e ver no que vai dar.
- Meu Santo Cristo! E é assim que você vai levar essa banda? Deixa a vida me levar? - terminei o segundo copo, com leve torpor de sentidos.
- Deixe de ser antiquado, Nelson. É assim que o mundo funciona! Pare de ser o músico romântico! - de supetão, Paulinho se ergueu da cadeira.
- Baixa a bola, camarada.
- Camarada? Tá vendo? Parece comunista. Vá sumir pelo interior, vá cantar folk numa comunidade hippie. Haja paciência.
- Meu Deus do céu! Pra mim já basta!
Ele podia me ofender de diversas formas. Mas ali ele passou da conta. Me ergui da poltrona, deixando o copo com os gelos quase vencidos pelo calor no chão acarpetado e ensaiei um gingado de boxe. Paulinho se assustou com minha apelação para a violência.
- Vamos! - ergui meu rosto, extremamente austero - Erga-se! Ninguém me chama de comunista, ninguém me chama de hippie! Nossa amizade chegou num ponto crítico.
- Calma Nelson, calma, cara - ele recuou as costas na cadeira e levantou a guarda de forma penosa.
- Calma uma ova!
Fui para cima daquela puta musical. Mas eu estava levemente bêbado, sentia a suavidade de uma nuvem nas pernas, a leveza de uma bailarina em seu número mais glorioso. Caí em cima dele e golpeei a maçã de seu rosto sofrido e esburacado. E ele, como um bom covarde, esperneou e relinchou, como um pangaré em perigo.
- Cale a boca e lute como homem! Sua puta maldita! - rosnei, babando em seu rosto.
- Você está acabado, Nelson! Saia de cima de mim, idiota! Caraaaaalhoooo! - ele tentava chamar a atenção de alguém com seu escândalo.
- Você me paga por tudo isso, desgraçado! Lute como um homem! - minha determinação era tão grande ao montar em cima da carcaça daquele desgraçado, que eu poderia facilmente ser campeão de rodeio, nenhum touro seria suficientemente arisco pra me derrubar.
- Me deixe levantar! Você quer brigar como homem? Me deixe levantar! Eu vou te dar uma lição daquelas, pode apostar!
Meu orgulho foi ferido e me ergui daquele corpo raquítico e me postei, gingando com brilhantismo. As pernas se alternavam, meus braços estavam leves e meus ombros relaxados. Eu era uma espécie de Mohammed Ali brasileiro e com barriga de chope. Paulinho ergueu-se lentamente, desajeitado, assustado. Ficou parado diante de mim, olhando para a porta. Seu olhar fica entre mim e a porta. Ele falou algo desafiador.
- Seu merda, me pegou desprevenido. Vamos ver do que você é capaz!
Ao dizer isso, deu um pinote e fugiu pela porta. Ouvi os passos pesados de um cagão, atacando o carpete imundo do estúdio. Ele gritava, me acusando de loucura. Ouvi a porta de entrada do estúdio fechar. Me recompus e servi mais um pouco de uísque, sem gelo, sem frescura. Naquela situação, eu poderia beber água sanitária e ainda pediria mais. Corri até a janela da salinha maldita, me desviando da pequena mesa redonda e barata e consegui visualizar a rua. Paulinho corria feito louco em direção à padaria, enquanto eu bebia meu uísque, processando ainda a derrota, o fim de minha carreira musical. Fazia parte. Levantei minha camiseta e olhei para minha barriga; ela sempre me acompanhou, nunca foi empecilho para conquistar uma moça ou para jogar um bom futebol. E agora ela estava ali comigo, me olhando, redondinha, macia, peluda, como se me consolasse pelo fracasso. Bebi o último gole do uísque que já se tornara forte à medida que meu sangue ia esfriando. Acariciei lentamente minha barriga, com a complacência de uma grávida, como se eu estivesse esperando um pobre neném.
- Foda-se tudo isso. Preciso de uma coxinha bem crocante.
- Sim, acredito que as pessoas conversem em reuniões, a não ser que exista a possibilidade de vocês tocarem bongô fumando merda, olhando pro teto - acendi um cigarro enquanto balbuciava meu sarcasmo.
- Olha Nelson, você é um bom baixista, ninguém tem dúvida disso.
- E também componho metade das músicas - cortei novamente a fala do empresário da banda.
- Sim, você é um excelente letrista. Também não temos dúvida disso. Mas é que...
- 'Nós', 'temos', é muita terceira pessoal nesse papo. Quem são vocês? Em nome de quem você está falando, pelo amor de Deus? - soprei fumaça intencionalmente na direção do rosto dele.
- Esse 'nós' significa os caras da gravadora, o Martinho e eu - o seu jeito soturno de falar começou a me deixar agitado.
- Pois bem, desembucha logo. E pare de falar olhando pra baixo, parece criança arteira depois de fazer merda. Aliás, que merda você fez?
A tarde era quente, mais um daqueles dias típicos em São Paulo. Você sai de casaco pela manhã, morrendo com um frio moscovita, ao meio-dia tudo o que você quer é que a cidade se torne uma colônia naturista e que todos andem nus balançando suas bolas e seus seios. Eu odiava aquela salinha do estúdio. Era pra ser apenas mais um ensaio da banda. Os Fumos Enrolados. Eu odiava o nome da banda, mas fui voto vencido. Eu tinha uma lista de sugestões, todas vetadas. Acredito que o nome 'Os Tolos da Colina' era mais legal, tinha um fundo beatlemaníaco, alimentaria a curiosidade do público. Mas fui voto vencido. E o Paulinho Kabul era um bom moço. Um empresário esforçado, bebia como se o seu corpo fosse uma grande esponja. Sempre tinha boas ideias e sua rede de contatos, bem, era um tanto medíocre. Mas ele havia conseguido aquele contrato com a gravadora e a sua moral conosco foi catapultada. Ele pegou um cigarrinho de maconha, girou o baseado por alguns minutos, com olhar fixo num cartaz pregado na parede daquela maldita salinha. O cartaz era de um show do Deep Purple em Montreaux, no ano de 1969. Tenho certeza absoluta que aquele ano havia sido melhor que essa merda de 2006.
- E então, Paulinho? - arregalei meus olhos, fuzilando-o com raios de pressão. Eu mais parecia com um homem morrendo afogado, de tanta apreensão.
- O pessoal da gravadora acha que você não ajuda na imagem da banda.
- Pffff - fiz um ruído tremendo meus lábios, externando desprezo - O que uma coisa tem a ver com a outra?
- Pra eles faz sentido, apenas isso. Eu argumentei, cara. Juro pela minha mãe - ergueu seu braço, abrindo a mão, com a palma virada para mim.
- Quer dizer que somos apenas imagem? Somos apenas ícones legais? E em qual momento vocês falaram sobre música? - minha cara de afogado agora era de afogado em meio a uma cacetada de tubarões.
- Não falaram sobre música.
- Agora já não existe 'nós', existe apenas 'eles'.
- Nelson, é assim que o mercado funciona. Não tem como nadar contra a maré.
Eu continuava atacando o cigarro com dedicação, apertando o filtro macio entre meus dedos. A minha vontade era de apagar aquele cigarro na testa dele.
- Veja bem, aquilo que era uma era de ouro - apontei para o quadro do Deep Purple - Não tinha isso de 'imagem', de 'comércio'. Caralho, os caras eram maltrapilhos, fediam e não estavam se importando.
- Eu sei disso, mas os tempos mudaram, Nelson! Você é um idealista, não dá pra viver assim! Hoje temos uma série de novos conceitos, porra...
- Maldita cultura de massa. Aliás, quer dizer que vocês vão virar uma bandinha como qualquer uma dessas? Que se vende? Você sabe que o Martinho vai ter que fazer uma plástica naquela cara horrível - eu havia me acomodado na pequena poltrona dura, de tecido desgastado e manchado.
- Nelson - os olhos de Paulinho estavam amansados, o efeito da maconha havia acariciado sua mente - se você quiser uma máquina do tempo, não sou eu que vou te dar - começou a rir suavemente, com feição de um chinês que trabalha duro em uma mina de carvão.
- Então além de me dispensar, você ainda me destrata? Só um instante.
Estendi meu braço na direção de Paulinho, pedindo para ele esperar ali.
- Ei Nelson! - deu uma risada - Onde vai? Pegar uma arma?
- Precisaria de uma bomba pra fazer o que gostaria - respondi desanimado enquanto ganhava o corredor.
Fechei a porta da salinha maldita e fui até outra sala, onde deixávamos nossas coisas para ensaiar. Aquela corja que antes era minha banda, já havia se mandado. Covardes. Abri um pequeno armário e percebi que minha garrafa de Jack Daniels estava lá. Eu não bebia esse uísque por ser modinha entre roqueiros. Era o melhor mesmo, eu gostava muito. Eu ainda tinha dois terços da garrafa cheia, isso daria para me fazer raciocinar. Dei um pulo até a pequena copa do estúdio, que estava imunda e abri a geladeira branca, descascada e enferrujada em sua base. Havia gelo também. Mas como nem tudo era classe, o único copo disponível era um de requeijão. Despejei quatro cubos de gelo e voltei para a salinha, com um copo em uma mão e a garrafa na outra. O carpete empoeirado e encardido do estúdio me fez pensar no covil em que ensaiamos. Nem é tudo isso. Vira e mexe encontrávamos pequenas bandas idiotas perambulando pelos corredores daquele estúdio chinfrim, gravando suas demos, com dinheiro contado, todos se achando os roqueiros consagrados. Confesso que eu não estava nem aí para toda a aura esplendorosa de sucesso que circunda as ambições de cada moleque que se propõe a fazer um som. Eu estava lá para fazer algo diferente. Eu tinha base musical, conhecimento da história da música, eu sabia o caminho das pedras para criar algo novo, mas no final das contas, eu era um péssimo músico. Aquele papo do Paulinho, de eu ser um bom baixista, foi bajulação. Como se fosse uma enfermeira passando algodão molhado no meu braço antes de enfiar uma agulha enorme em minhas veias. Deus do céu.
- Onde estávamos? - perguntei adentrando a sala e fechando a porta.
- Hã? - Paulinho estava pra lá de Bagdá. Ou pra lá de Kingston. Somente os esclarecidos entenderão.
- Olha aqui, Paulinho, largue essa erva danada e me dê sua atenção - eu era imperativo, mas com a serenidade de uma vaca num pasto.
- Diga, meu querido Nelson. Diga o que quiser, meu querido Nelson.
- Corta esse papo de 'querido', cara. Eu vou beber, e já que você quer se entorpecer nessa merda, então seremos dois entorpecidos discutindo.
- Boto fé.
- Bota fé... sei - comecei a trabalhar no uísque.
- Pois bem, meu caro Paulinho...
- Corta essa de 'meu caro' - Paulinho começou a rir de forma ligeira, aquilo afetou minha retórica.
- Ei, Paulinho, seu porra! Ouça!
Paulinho enfiou aqueles dentes amarelos pra dentro da boca novamente e finalmente ficou quieto.
- Cara, vocês estão nessa de se vender mesmo? O que tem de mais em mim? Eu nem sou drogado, porra - meu tom era lamurioso.
- A gravadora vai colocar a banda pra tocar em uma série de programas na MTV. E sabe, a banda tem mania de tirar camisa em êxtase, mostrando tatuagem, pulando igual macacos, aquela merda lá, todo mundo drogado. É a visão do inferno, tá certo, mas vende. As menininhas estão loucas por vocês. Aliás, menos você.
- O que tem eu, caceta? Me explique es-pe-ci-fi-ca-men-te - pausei a última palavra para ver se aquela mente fumada entenderia.
- Você tem barriga de chope. Você não tem tatuagem. Você é o intelectual da banda, só bebe e fuma, não curte uma droguinha sequer. Você tem perfil para tocar com o Los Hermanos ou algo parecido.
- Ei, eu fumo uma maconhazinha de leve.
- Então... É de leve. A gravadora quer algo bonito e subversivo. Quer todo mundo em forma. E o seu cabelo não ajuda.
- Meu cabelo? Ele é o mais legal dessa banda! O Pépe tem caspa pra cacete! A cabeça dele parece um telhado de casa americana no natal, parece neve! Fica pulando no palco com aquelas caspas nos ombros, parece que saiu de um pacote de biscoito de polvilho! E olhe o cabelo do Martinho, parece uma palha de aço enferrujada. Se você der uma tapa na cabeça dele, o cabelo se desfaz!
- O Martinho é o símbolo da banda, é o que a gravadora quer.
- Ah sim... olhei para Paulinho com desdém - A gravadora não vai trocar o nome dele? Aquilo é nome de sambista.
- É, é uma boa sugestão - seu olhar era vago, como se visse um quadro, em algum museu legal.
- Tá vendo? Você também se vendeu. Puta que pariu - finalizei o primeiro copo. A tarde seria longa.
- Você parece um comunista falando - esboçou um sorrisinho naquele rosto salpicado de marcas de espinhas.
- Ei, quem satiriza os comunistas sou eu! - ergui minhas costas apontando para o rosto dele.
- Abaixe o dedo, Nelson... você é muito atrevido.
- Quer dizer que então você vai se prostituir? Ótimo. Vão fazer música para menininhas enlouquecidas? O que querem? Boquetinho no camarim? Meter o dedo naquelas ninfetinhas? Porra, eu achava que você não gostava do cheiro de fraldas. Amigão, foda-se essa banda, vou continuar fumando, bebendo e comendo bocetas adultas.
- Os Beatles faziam música pra meninada, Nelson. Isso não é de hoje. Estamos falando do começo dos anos sessenta - o pobre diabo me lançou um olhar desafiador, seguido de um ar de soberba, como se tivesse o argumento definitivo.
- Ohhhh - olhei para o alto como se vislumbrasse uma revelação divina - Então os Fumos Enrolados serão os novos Beatles? Daqui quatro anos vocês lançarão algo parecido com o 'Revolver'? E o 'Sergeant Pepper's'? Daqui cinco anos? Uau! - eu sou extremamente exagerado com minhas ironias.
- Não... vamos apenas curtir e ver no que vai dar.
- Meu Santo Cristo! E é assim que você vai levar essa banda? Deixa a vida me levar? - terminei o segundo copo, com leve torpor de sentidos.
- Deixe de ser antiquado, Nelson. É assim que o mundo funciona! Pare de ser o músico romântico! - de supetão, Paulinho se ergueu da cadeira.
- Baixa a bola, camarada.
- Camarada? Tá vendo? Parece comunista. Vá sumir pelo interior, vá cantar folk numa comunidade hippie. Haja paciência.
- Meu Deus do céu! Pra mim já basta!
Ele podia me ofender de diversas formas. Mas ali ele passou da conta. Me ergui da poltrona, deixando o copo com os gelos quase vencidos pelo calor no chão acarpetado e ensaiei um gingado de boxe. Paulinho se assustou com minha apelação para a violência.
- Vamos! - ergui meu rosto, extremamente austero - Erga-se! Ninguém me chama de comunista, ninguém me chama de hippie! Nossa amizade chegou num ponto crítico.
- Calma Nelson, calma, cara - ele recuou as costas na cadeira e levantou a guarda de forma penosa.
- Calma uma ova!
Fui para cima daquela puta musical. Mas eu estava levemente bêbado, sentia a suavidade de uma nuvem nas pernas, a leveza de uma bailarina em seu número mais glorioso. Caí em cima dele e golpeei a maçã de seu rosto sofrido e esburacado. E ele, como um bom covarde, esperneou e relinchou, como um pangaré em perigo.
- Cale a boca e lute como homem! Sua puta maldita! - rosnei, babando em seu rosto.
- Você está acabado, Nelson! Saia de cima de mim, idiota! Caraaaaalhoooo! - ele tentava chamar a atenção de alguém com seu escândalo.
- Você me paga por tudo isso, desgraçado! Lute como um homem! - minha determinação era tão grande ao montar em cima da carcaça daquele desgraçado, que eu poderia facilmente ser campeão de rodeio, nenhum touro seria suficientemente arisco pra me derrubar.
- Me deixe levantar! Você quer brigar como homem? Me deixe levantar! Eu vou te dar uma lição daquelas, pode apostar!
Meu orgulho foi ferido e me ergui daquele corpo raquítico e me postei, gingando com brilhantismo. As pernas se alternavam, meus braços estavam leves e meus ombros relaxados. Eu era uma espécie de Mohammed Ali brasileiro e com barriga de chope. Paulinho ergueu-se lentamente, desajeitado, assustado. Ficou parado diante de mim, olhando para a porta. Seu olhar fica entre mim e a porta. Ele falou algo desafiador.
- Seu merda, me pegou desprevenido. Vamos ver do que você é capaz!
Ao dizer isso, deu um pinote e fugiu pela porta. Ouvi os passos pesados de um cagão, atacando o carpete imundo do estúdio. Ele gritava, me acusando de loucura. Ouvi a porta de entrada do estúdio fechar. Me recompus e servi mais um pouco de uísque, sem gelo, sem frescura. Naquela situação, eu poderia beber água sanitária e ainda pediria mais. Corri até a janela da salinha maldita, me desviando da pequena mesa redonda e barata e consegui visualizar a rua. Paulinho corria feito louco em direção à padaria, enquanto eu bebia meu uísque, processando ainda a derrota, o fim de minha carreira musical. Fazia parte. Levantei minha camiseta e olhei para minha barriga; ela sempre me acompanhou, nunca foi empecilho para conquistar uma moça ou para jogar um bom futebol. E agora ela estava ali comigo, me olhando, redondinha, macia, peluda, como se me consolasse pelo fracasso. Bebi o último gole do uísque que já se tornara forte à medida que meu sangue ia esfriando. Acariciei lentamente minha barriga, com a complacência de uma grávida, como se eu estivesse esperando um pobre neném.
- Foda-se tudo isso. Preciso de uma coxinha bem crocante.
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