segunda-feira, maio 24, 2010

A Calcinha de Emily Dickinson

- Emily Dickinson!
- O que tem a Emily Dickinson? – perguntei esfregando na mesa meu copo cheio de cerveja.
- Imagine a calcinha de Emily Dickinson! – gritou Homero, com pequenas porções de saliva lubrificando seu lábio inferior.
- Pelo amor de Deus, Homero, cale essa maldita boca! É sério, estou comendo esse queijo todo, não me faça imaginar isso!
- Por que não, meu chapa? O que tem de mais imaginar a doce calcinha de Emily Dickinson?
- O que tem de mais? Você só pode estar brincando, campeão! – dei um gole curto na cerveja – Eu lhe digo o que há de errado em imaginar isso.
- Se atreva, Nelson... – Homero se ergueu de sua cadeira.
- Como assim? Atrever-me? Eu falo o que quiser!
- E daí? E quem está te impedindo? – Homero me fitou confuso.

Ignorei suas perguntas.

- A mulher vivia no século dezoito...
- Dezenove! – fui interrompido.
- Ta, ta... Dezenove! Então, a desgraçada era reclusa, morava provavelmente numa caverna...
- Na casa dos pais! – novamente interrompido.
- Pelos deuses! É só um modo de falar, seu idiota! Pare de me interromper! Se você me atrapalhar novamente, que Deus me ajude, eu vou acabar com sua raça! – não pude me conter – Posso continuar?
- Você é um palhaço mesmo – retrucou Homero com voz sóbria e claramente contrariada.
- Pois bem, a mulher vivia isolada, revoltada e cuidando dos pais. Morava em Massachusetts, naquele frio todo, com toda aquela roupa. Você já imaginou a calcinha dela? Imaginou o fedor? Ela não tomava banho todos os dias, por todos os diabos!
- Fedor, fedor... Tudo é fedor para você, Nelson! Deus fede, as ruas fedem, a merda fede...
- E a merda não fede? – foi minha vez de interromper.
- É uma forma de dizer que tudo fede pra você!
- Então você deveria citar algo que realmente não feda!
- Você me enoja, Nelson!

Ergui minha garrafa de cerveja e servi mais um copo. Bebia lentamente enquanto observava a feição sofrida de Homero. Ele era apenas um garoto mimado, que conheceu gente errada na escola estadual para a qual foi transferido. Não conseguiu resistir à tentação de ser um moleque folgado e começou a fumar aos quatorze anos, roubava aos quinze e pegava sua primeira DST aos dezesseis. Uma ascensão incrível. Mas por ser magro, sempre andava com uma faca para se garantir. Nunca foi um bom lutador, mãos pequenas e leves, as pessoas sempre amassavam seus dedos durante os apertos de mãos, era um desastre concentrado. Sua face sofrida era esfolada por anos e anos de espinhas. Sua auto-estima atual foi totalmente minada pelas acnes de outrora. Seu nariz desengonçado era um pouco mais aberto que o convencional (cacete, o que é um nariz convencional?). Sua boca parecia que havia apodrecido. Seu lábio inferior era caído demais, e o superior grande demais, mas tinha uma coloração escurecida. Seu queixo pequeno demais, dava forma arredondada ao seu rosto. O cabelo grande amenizava a forma oval de seu rosto, porém ele definitivamente não nascera para ser um sucesso entre as garotas. Mas os seus olhos continham um brilho raramente visto, que se acentuava à medida que bebia. Talvez aquele fosse o grande trunfo de sua aparência bagunçada. Feio desse jeito se envolveu aos vinte e dois anos num acidente de carro. Era uma fuga veloz e não fugia da polícia. Fugia de traficantes que queriam sua cabeça por algumas mancadas que havia dado, envolvendo um pequeno estoque de maconha que ela simplesmente dera sumiço. Seu carro capotou diversas vezes e o corpo finalmente arremessado para fora. Seu estado era tão deplorável que os traficantes ao cercarem o corpo de Homero semimorto, preferiram deixar ao cargo de Deus a finalização da obra. Mas ele não morreu. Ficou em coma induzido e por dois meses internado no Hospital São Paulo. Saiu com muletas e novos conceitos. Mais firmes que essas muletas que sustentavam seus passos. Com incentivo dos pais terminou, em um supletivo, o segundo grau e fez o vestibular para o curso de jornalismo. Passou tranquilamente, impressionando toda sua família e alguns gatos pingados que se consideravam amigos. Parecia que havia nascido para escrever, para ler, para interpretar todas aquelas letras em conjunto. Nascera para se comunicar. Conseguiu um bom estágio, com um salário razoável, podendo sustentar-se e ainda conseguindo adquirir algumas regalias. Foi efetivado e passou a ganhar bem mais dinheiro. Passou a morar numa rua da Vila Mariana e finalmente poderia dizer que tinha uma vida normal (cacete, o que é uma vida normal?). Adorava conversar sobre literatura, principalmente comigo que embora não tivesse me formado em nada, tinha uma bagagem cultural bem pesada. Eu aceitava as ladainhas dele, aquelas conversas para ele eram discussões acadêmicas. Para mim um passatempo engraçado e na maioria de suas vezes, estressantes.

- Você é quem me enoja, Homero! Eu estou comendo queijo, e você vem comentar sobre as roupas de baixo de uma poetisa morta?

O queijo Ementhal cortado em cubos estava suave e se despedaçava fácil a cada mordida. Espetei mais um com o palito e voltei a mastigar.

- Eu ainda não entendi a conexão entre a calcinha de Emely Dickinson e um pedaço inocente de queijo.
- Após o acidente você ficou retardado? Você já chupou uma garota?
- Já, já chupei sim.
- Você já pegou muitas doenças venéreas, não?
- Já, já peguei – dessa vez Homero respondeu com olhar direcionado ao chão, mostrando um pouco de constrangimento.
- Já comeu gorgonzola? Ricota? – perguntei erguendo o palito com um queijo espetado.
- Já, e isso não é gorgonzola, muito menos ricota – respondeu apontando para o queijo que eu levantei.
- Ta certo, eu sei que não é! Então, vai viu uma garota feder lá embaixo na boceta?
- Claro, muitas delas fedem!
- E já olhou lá dentro para ver o que tinha de errado?
- Não, nunca fiz isso, por que faria? – agora Homero que espetava um cubo grande de queijo e o colocava lentamente na boca.
- Primeiro, pare de colocar o queijo na boca como se estivesse chupando uma pica. Segundo, a aparência de uma boceta mal lavada é parecida com um ralo de pia cheio de ricota ou gorgonzola. Escuro e com rastros brancos.

Homero travou. Tentou regurgitar o queijo tragado, porém foi
em vão. Correu para o banheiro, em vão de novo. Vomitou no caminho.

- O que foi Homero?! Nunca ouviu falar nisso? Pelo amor de Deus! Você é um cabaço mesmo! – eu dava risadas altas e batia o pé em plena euforia.
- Você é um desgraçado! – ouvi apenas a voz abafada de Homero percorrer o corredor do apartamento – Eu devia lhe obrigar a limpar isso tudo!
- Tente! Apenas tente! – eu já preparava os jabs e ganchos, praticando contra o ar.

Homero chegou com uma toalha e um copo de coca-cola na mão. Sentou lentamente no sofá e suspirou, como se estivesse cansado de viver. Apenas estava cansado de ouvir tanta baboseira. Fez sinal negativo com a cabeça e vagarosamente dispensou a toalha em sua nuca. Parecia abatido.

- Começamos falando de literatura e terminamos no vômito. Belo feito, hein senhor Nelson? – ao finalizar a frase, arrotou.
- Eu diria que foi um nocaute ideológico. Você é uma gazelinha, Homero. Perdeu suas bolas naquele acidente. Como pode um homem vomitar por esse motivo? Pelo amor de Deus... – cocei a cabeça fazendo um ruído perturbador.
- A literatura, Nelson, começamos com a literatura. E você sempre descamba para a sujeira.
- Sim, literatura. E A CALCINHA DE EMILY DICKINSON
EM ALGUM DIA FOI CITADA NA LITERATURA?
- Não! Nunca foi, mas foi um comentário à parte, a mesma coisa de citar as bolas de Jorge Amado.
- O que você quer? Que eu vomite também? É isso? Está revidando?
- Não, estou apenas fazendo uma colocação, apenas isso – olhou com indiferença para os meus olhos. Seus olhos pareciam vazios. O brilho se fora com o vômito.

Levantei-me e busquei meu casaco. Vasculhei meu maço de cigarros e não achei nenhum. “Pros diabos, compro um na padaria”, pensei. Fui até a cozinha e abri a geladeira. Não havia sobrado nenhuma garrafa, porém encontrei uma latinha esquecida no compartimento de verduras. Peguei-a e dei uma bela golada. Soltei um arroto e voltei para a sala. Estendi a mão para cumprimentar aquela mão pequena e ossuda, porém não tive retorno. Ele apenas olhava para a janela dando curtos goles em sua coca-cola.

- Tem um cigarro aí, Homero?
- Na gaveta da cozinha. Tem um maço de L&M lá.

Voltei para a cozinha, porém no caminho, senti uma pancada na cabeça. Vi um clarão, como fogos de ano novo. Tentei me segurar em algum lugar, mas me senti caindo num abismo sem fundo. Quando finalmente caí, recobrei a consciência e olhei para o meu redor. Tudo normal. Um cinzeiro jazia ao meu lado, pesado, feito de puro ferro. Lembrei da cacetada que havia levado na cabeça e procurei por sangue. Nenhuma gota. O desgraçado havia jogado o cinzeiro em mim, maldito bêbado. Procurei por cortes no corpo e nada também. Lembrei do papo sobre as bolas de Jorge Amado e prontamente abaixei minhas calças procurando alguma violação no meu rabo e, graças ao bom Deus, nada. Aparentemente tudo estava em ordem, o apartamento estava arrumado, as garrafas estavam na lata de lixo, exceto pelo carpete da sala que estava imundo e cheio de pó. Mas até o cinzeiro que acertou minha cabeça não continha cinzas.

Lembrei do que Homero havia dito, sobre os cigarros na gaveta da cozinha. Ao procurá-los, encontrei um papel com meu nome. “Vamos ver o que esse merda preparou pra mim”, sussurrei enquanto abria o papel.

Nelson,

fui acertar umas contas antigas. Embora você seja meu grande amigo, infelizmente não pude contar muitas coisas para você. Me perdoe. Em breve lhe deixarei informado.


Dei um murro no armário da cozinha e o xinguei mentalmente. Tomei posse do maço de L&M vermelho e saí do apartamento, trancando a porta e despejando a chave dentro do compartimento da mangueira de incêndio que ficava no corredor do andar. Desci o elevador olhando para o chão, aguardando a chegada no térreo. Passei pela recepção suntuosa e bem decorada e cumprimentei o sr. Antônio, porteiro sofrido, com o bigode amarelado e quase desdentado. Ganhei a rua Bartolomeu de Gusmão e me dirigi à estação Vila Mariana.

Boa sorte, Homero, seu puto.

domingo, maio 16, 2010

Nelson

Até hoje sou assombrado pelas escolhas que fiz durante minha curta vida. Nunca vendi minha alma ao diabo num pacto, mas cada ato, cada decisão que tomo, faz o tinhoso ter certeza que quero uma cadeira cativa no inferno. Não ouço vozes, sou apenas um andarilho, uma alma perdida fazendo o que qualquer ser humano faz durante o dia. Acordo com dores, cuspindo grossas camadas de catarro e entro no banheiro. Como um zumbi controlado por uma força sádica, tomo meu banho e me olho no espelho: meus olhos são vazios e sinto que o dia que se levantou não tem sentido em existir. Qual é o motivo do sol nascer e ordenar ao mundo que trabalhe? Eu não formei uma família, nunca fiz uma mulher feliz, não sei se os meus amigos me dariam suporte se eu caísse num hospital à beira da morte. Meus cabelos estão caindo, meus dentes amarelando e não vejo vida daqui uma semana. Apenas vou levando, apenas me arrastando. Coloco minha velha calça surrada, alguma camiseta e o meu tênis que está cada dia mais deplorável. Verifico o celular, verifica o maço de cigarros e o isqueiro. Deparo-me com a cozinha e procuro algo para comer. Pão de forma, manteiga e café. Mastigo com preguiça sem entender o porquê estou me alimentando. Como havia dito apenas um zumbi sem noção de seus atos, rastejando por um chão irregular, abraçado ao cotidiano, à rotina.

Abro a porta do apartamento e chamo o elevador. Sei que algum vizinho irá entrar no elevador e me desejar um bom dia. Sou um pensador por natureza e quanto respondo a saudação matutina de um vizinho, olho para os botões do elevador e penso: por que desejamos bom dia para alguém que não conhecemos? Queremos mesmo que esse alguém tenha um bom dia? E se ele espancou sua mulher? E se ele coleciona pedofilia em seu computador? Ele merece ter um bom dia? Acho que não. Saio do elevador e ganho a rua olhando para os lados e verificando se algum carro está por perto. Atravesso e me direciono ao ponto de ônibus. São as mesmas pessoas de sempre. Com a mesma cara de sempre. Algumas com ambição demais, outras sofrendo o mesmo dilema que eu: por que se locomover a um lugar para encher o bolso de um patrão filho da puta? Entro no ônibus e vejo que o motorista não é o mesmo de ontem. O cobrador também não, mas por incrível que pareça quase todos os passageiros de ontem estão lá de novo. Eles me olham com a mesma reação de sempre. As mulheres que sentem algum tipo de atração por mim, acompanham meus movimentos até eu achar um banco para sentar. Ou ficam me acompanhando enquanto fico em pé, vislumbrando a paisagem urbana de cada dia. As mulheres que não suportam meu estilo olham para mim e quando olho para elas, desviam o olhar e voltam sua atenção para um livro, algum best seller que a Veja indicou em sua lista semanal de livros mais vendidos. Alguns homens me dão atenção com os olhos, porém eu reajo com tanta repulsa que eles desistem de observar a estampa da minha camisa ou estado do meu tênis. Mas o que fode a minha manhã é caminhar através da rua do meu trabalho. São dezenas de marionetes de cabeça baixa, desanimadas, estressadas e nervosas. Eu sou uma delas. Ao colocar os pés na empresa, sinto calafrios e ao olhar o relógio que marca a entrada dos funcionários, vejo que estamos numa prisão onde o relógio é o carcereiro, e diz quem é bom e quem é incompetente, apenas usando os atrasos como provas. Olhos para as pessoas em suas mesas e aceno com as mãos e com a cabeça. Ligo o computador e a perturbação começa. Preciso acessar e-mails, sistemas, Windows, programas, todos com meu nome e com minha senha. Tudo é restrito, tudo é informação de extremo valor. Coloco minha mão na cabeça e prendo meus dedos aos fios de cabelo. Lentamente deslizo para baixo e quando olho na mesa, vários fios de cabelo estão lá. Alguém pergunta se estou bem e eu respondo que sim, digo que estou indisposto, desmotivado e sempre recebo uma cara de compaixão de volta. Por algumas horas, tenho paz e tento adiantar meu trabalho, sempre atrasado. Quando meu chefe chega, o ódio adormecido em meu coração desperta. Penso em algum plano catastrófico como uma bomba ligada a um dispositivo de detonação que é acionado por qualquer peso colocado em cima da cadeira do meu chefe. Eu apenas diria que iria comprar um pão de café no bar da esquina e enquanto fecho a porta da empresa, ouço a explosão. Mágico! Porém acordo do meu delírio assassino e fito meu patrão. Rico mas não esbanja. Roupas gastas, carro popular e sede de sangue. Chega à empresa e desfere um “bom dia” tão irônico que me causa náuseas. Vou até a máquina de café e aperto no botão do café longo. Despejo um pouco de açúcar e fico uns cinco minutos apreciando o sabor forte do expresso. Alguns colegas de trabalho encostam-se à máquina e começam a bater papo. Eu querendo morrer, querendo matar o chefe e eles falando de futebol, fórmula um e mulheres. De mulheres eu entendo, mas não sou tão alucinado como eles. Mulheres para eles são um bando de bucetas, enquanto eu as vejo como um tipo de diversão, seres que eu canso com minha existência sem o mínimo resquício de ambição. Pra mim as mulheres querem, sem exceção, formar família, morar na mesma casa, apresentar o homem pra família e cumprir o script dos bons modos. Eu não consigo, eu simplesmente não consigo.

A hora do almoço é um bom momento. O sol está quente e a fome consegue chamar minha atenção. Passo do estado soturno para o estado de desespero e me abrigo em algum restaurante bagunçado que sirva um bom prato feito. Lembro da comida da minha mãe e também me lembro do tempo que estou sem comer um bom rango materno. Faz tempo que não a vejo. Não sei onde ela está. Devoro meu prato e vou para a rua fumar alguns cigarros. Preciso compensar a manhã inteira, quando não puder dar uma tragada sequer. Vou a banca de jornal e compro um jornal barato, apenas para me interar dos fatos. A mulher que trabalha na banca sempre me oferece o jornal e um sorriso amigável. Sinto tesão por ela, mas o marido dela trabalha lá também. Encosto na parede da empresa onde trabalho e verifico sempre as notícias em meio à nuvem de fumaça que despejo pelo ar. Volto sempre alguns minutos antes, pois não tenho saco para suportar o calor por muito tempo, nem o marasmo da rua onde trabalho.

Volto para minha mesa fedendo a cigarro. Alguém sempre faz algum tipo de piada quanto a isso, mas eu sempre respondo com um ‘arram’ desanimado e um sorriso de lado. Não procuro me isolar das pessoas, apenas vejo que não são iguais a mim.

Alfredo é um cara que trabalha comigo e parece muito comigo, gosta das mesmas músicas que gosto e já leu os livros que cultuo. Nossos horários de almoço são diferentes, mas sempre nos encontramos na máquina de café durante o turno da tarde. Trocamos poucas palavras, porém proveitosas. Ensaio algumas risadas e ele também. Pra ele, Bob Dylan é o grande gênio da música, pra mim é Serge Gainsbourg. Ele gosta de letras e eu gosto de atitude, embora Gainsbourg tenha escrito muita coisa boa. Não discutimos muito, até porque são estilos diferentes. E Bob Dylan é consagrado por toda a mídia musical enquanto muita gente na mesma mídia nunca ouviu uma canção do álbum Histoire de Melody Nelson. Aliás, meu pai meu nome vem desse disco: Nelson. Enfim, as pessoas acham que Gainsbourg é apenas música de hotel com Je T’aime Moi non Plus e a deliciosa voz da Brigitte Bardot cortando a música. Mas Gainsbourg era foda, cigarro em uma mão e em outra mão, sempre estava o coração de alguma mulher sensacional. Enfim, nunca fui a um happy hour com os funcionários da empresa. Mas as sextas, Alfredo e eu bebemos até cair em algum bar do centro.

Após trabalhar despretensiosamente durante a tarde, sigo até o ponto de ônibus fumando um cigarro atrás do outro. Pego um ônibus lotado e chego em casa rapidamente. Eu não posso reclamar de passar horas no trânsito. Os corredores de ônibus que a Marta Suplicy implantou são sensacionais. Chego em meu apartamento, pequeno mas confortável e me livro das roupas. Coloco um short qualquer e acendo um cigarro. Ligo a televisão e a deixo ligada enquanto esquento alguma comida, enquanto sirvo uma dose de uísque para relaxar. Termino o drinque e verifico a comida, Deus é sempre a mesma coisa, porém durante a noite existe um conforto, a sensação de que algo novo pode ser feito. A manhã é uma calamidade regida por uma ordem natural da sociedade. A noite é misteriosa, quando podemos extrapolar as horas e desferir uma bica bem servida no rabo do relógio e deixar que o outro dia sirva de purgatório para os excessos cometidos.

Às vezes recebo a visita de amigos beberrões. Cantamos canções antigas e fazemos muito barulho. Os vizinhos reclamam, mas nunca cessamos as reuniões sazonais que realizamos. Quando mulheres estão entre os convidados, dou completo sentido ao que descrevi linhas acima: extrapolar as horas e deixar que o outro dia sirva de purgatório. Quando as discussões descambam para o lado da religião, me levanto bêbado e começo a dispersar os falastrões. Sempre trôpego, despejo os mais inflamados. Não tenho religião. Não tenho Deus nem deuses. Não existe sentido em divindades. Somos apenas o resultado de uma série inconsciente de acontecimentos físicos e químicos e cá estamos: um monte de cus, pintos e bocetas perambulando pelo solo árido desse planeta cheio de vida. Todos querendo comer uns aos outros, enquanto algumas pessoas, como eu, estão pouco se lixando se são manipuladas, se são escravizadas. Pessoas querem mandar enquanto eu quero viver com algum tipo de respeito, nem que seja pra conquistá-lo na porrada. E onde podemos encaixar um deus bondoso nisso tudo? A bondade humana é fruto da diferenciação entre homo sapiens e as demais espécies. Não existe nada de mágico ou sobrenatural no amor. O amor é fruto do maior dom do humano: o dom de pensar. Desenvolvemos a comunicação, desenvolvemos filosofias e códigos de conduta, leis e sistemas de esgoto. O ser humano fez tudo isso. Deus definitivamente não se encaixa nisso tudo.

Diabos! Quero mais é que tudo vá para o inferno.

Eu sou um homem amargo por tudo que fiz na vida. Colho diariamente as jurubebas que brotam em minha horta. Amargas e rejeitáveis, assim como sou para a sociedade. Minha canção é assombrosa e ninguém quer ouvi-la. Minha solidão não pode ser sanada e meus crimes não têm solução. Eu tenho um acordo verbal com o fracasso, uma espécie de pacto de não-agressão com o pecado.

Preciso dormir, anseio pela canção de ninar entoada pelos fantasmas do meu passado. Um último cigarro e cama.