domingo, novembro 18, 2007

Chuva, Whisky, smog e Anotações sobre a vida no litoral

Longe da soturna e efervescente São Paulo, me vejo diante de uma tarde de chuva e relâmpagos em Ubatuba. Sozinho em casa e sem a menor satisfação com essa 'nova vida', sentei numa cadeira no lado de fora da casa e alcancei meu maço de cigarros. Carlton. Os Luckies estão em extinção nessa terra. O atendente do bar Campeão me prometeu Luckies para segunda. Aposto que serão Luckies vermelhos. Tô fodido. Olhei para o céu, a tonalidade do cinza escurece a cada segundo e me traz mais saudade, de São Paulo, daquela camada opaca de poluição que eu costumava ver do vigésimo segundo andar. Pensei num som que poderia ouvir, para me afundar nessa pseudo-depressão que venho desenvolvendo. Mesmo com minha mãe por aqui, não vejo motivos para me integrar nesse novo estilo de vida. O som escolhido foi do Smog. Engraçado, esse nome nos EUA é usado para classificar um tipo de poluição: smoke + fog = smog - o que aumenta a minha saudade de São Paulo. Smog também é um nome pelo qual o grande cantor Bill Callahan é conhecido. Por Cristo, ele me entrega de bandeja toda a conformidade necessária. Essa voz sombria e grave misturada com arranjos mais sombrios ainda me fazem repousar no sofá, ao lado da case de CDs, com uma garrafa de Passport junto ao meu pé. Dou um gole generoso na bebida e observo aqueles mosquitos de fruta planarem sobre o bico da garrafa. Logo pego meu isqueiro e acendo-o, tendando espantá-los. Em vão. Foda-se. Minha testa começa a umedecer graças ao maldito suor, graças ao maldito calor dos trópicos. Dou mais um gole e "Dress Sexy at my Funeral" começa a circular pela sala. Sempre achei os arranjos dessa música muito bons, mas a letra é demais. Quem falaria isso para a sua mulher?

Dress sexy at my funeral, my good wife
For the first time in your life

Meus pés não param de balançar, graças à ansiedade que permeia minha cabeça. Ontem eu fui surfar (ou tentar surfar), no começo da tarde. Pode parecer incrível no começo, a sensação de liberdade, pensar quem em Sampa o pânico da vida proletária se instaura o dia todo, enquanto eu estou na praia Vermelha, pensando e analisando qual a melhor onda pra pegar. Mas é nisso, no mundo paralelo que gira em São Paulo, é ali que mora o maldito dilema. Essa não é minha vida. Estou roubando miseravelmente a vida, o sonho, as pretensões de muita gente que merecia estar em meu lugar. Estou aqui por acaso. Pra muitos é sorte. Pra mim é azar. Eu não consigo relaxar. Fico calculando, maquinando o modo que verei a Mih, quantos dias faltam, quantos já passaram. Ela mora no meu coração e pensamento. Não há diversão, não há vantagem alguma em ficar longe dela. Não dá certo. Adoro ficar só por algumas horas ou dias, mas adoro a idéia de vê-la pelo resto da vida ao meu lado. Mas não é tão simples assim.

Tomo mais um gole e Smog permanece mexendo nas feridas. Filho de uma puta.

Aos poucos estou ficando bêbado e a sensação é boa. Não me digam que a bebida é a fulga do fraco. Foda-se, estou fraco e não adianta cobrar força. A única força que encontro é quando ouço aquela voz doce e feliz da Mih. Acendo mais um cigarro e mais um gole de whisky desliza por minha garganta. O vizinho carioco passa de bicicleta e nem cumprimenta. Melhor assim. Flamenguista é tudo a mesma merda. A chuva por aqui parou, foi pro mar. Sim, o mar, o cara mais genioso e controverso que existe na Terra. 'Mar na Terra' que contradição. Acho legal passar pela zona pesqueira e ver aqueles homens sofridos, marujos, transportando sua pesca para peixarias. Até pensei em descolar um trabalho nessas peixarias. Aliás, seria legal ficar a noite inteira num barco pesqueiro, sem ouvir nada, só o mar, o genioso:

- Opa! Um peixe!

Aí eu ficaria lá lutando contra aquele maldito ser delicioso. Puxaria a linha, após um grande embate e veria o Robalo, bonitão. dez quilos. Um pescador disse que pegaram um robalo de vinte e seis quilos há dois dias atrás:

- Uns caras pegaram um Robalão de vinte e seis quilos ali no encontro do mar!
- Caralho! Mas vem cá, não é estória de pescador?
- É nada, rapaz! Já venderam ele!
- Imagino que foi bem caro...
- Foi sim, uns duzentos e cinqüenta conto!
- Porra, acho que vou pescar.
- Não é pra qualquer um!
- É, pode crer.

O filho da puta estragou meu sonho de pescar um peixão. Eu sou mais um, tudo bem. É assim em São Paulo também. Ninguém tem rosto, rola, boceta ou alma. Somos um número. Eu sou um número de onze dígitos do meu CPF. Mas sinto saudades da burocracia e frieza do sistema.

Aqui todo mundo se cumprimenta (menos o carioca flamenguista). Destesto isso. Você passa dez vezes pelo mesmo cara e ele te diz 'bom dia', 'boa tarde' e 'boa noite'. Santo Cristo da Silva, um 'bom dia' já basta! Mas não para eles, isso é insuficiente para satifazê-los. Tive o infortúnio de conhecer um traficante de drogas e armas aqui em Ubatuba. E todo dia ele aparece na rua, no Centro, na praia, nas praças, até no bar onde bebo. Maldita fatalidade de cidade pequena. Em Sampa conheço milhares de pessoas e nunca as encontro perambulando pelas ruas. É um milagre achar um conhecido nas ruas de São Paulo. Prefiro assim. Aqui, os mais velhos são corteses. Eu estava bebendo no bar e avistei um caiçara com seus quarenta e cinco anos. Pochete cruzada no peito, bigode farto e músculos, muitos músculos espalhados caprichosamente por todo o corpo. Pensei que se eu arrumasse briga com ele, deveria chutá-lo no peito, uma solada impulssionada com todo o meu peso, e fugir, correr como nunca. Mas de repente o meu suposto adversário me cumprimenta como se eu o conhecesse há anos. Quebrou minhas pernas. Eu com pensamentos ímpios e perversos e ele com sua simpatia natural de quem vive despreocupadamente na praia.

Quando fui a Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Rio de Janeiro entre outras cidades grandes, me gabava por morar na locomotiva do Brasil. Eles ficavam putos, se defendendo, citando as vantagens de viver como um europeu em Porto Alegre ou por ter o mar para relaxar no Rio de Janeiro. Geralemnte eu mandava todo mundo se foder:

- Sem São Paulo vocês não seriam nada! Fodam-se!
- Mas nós temos praia, brother! - replicava o carioca
- Quem máné brother! São Paulo é a cidade que leva vocês nas costas!

Sempre a superioridade paulistana. São Paulo, a cidade que não para. Sendo sincero, muita da nossa força vem de braços nordestinos, mas quando o assunto é 'crescer', fale com um paulistano. Deviam fazer um adesivo com os dizeres: "Não há prosperidade sem um paulistano", igual àquele da OAB que diz: "Não se faz justiça sem advogados". Da hora. Mas aqui em Ubatuba eles estão pouco se fodendo com sua superioridade. Eles não precisam de prédio, não precisam de carros (todo mundo anda de bicicleta). Nem adiantaria eu me gabar. Aqui eu sou gente, tenho rosto, rola e o CPF não significa muita coisa. Detesto isso. Às vezes abro minha carteira e fico olhando pro CPF, pro RG, pra carteira de habilitação. Eu existo no sistema. Isso é bom! Eu sou um número de onze dígitos andando por uma utopia de felicidade! Caralho, o whisky subiu.

E as bicicletas? Aqui é unanimidade. Todo mundo, ricos ou pobres, tem a sua. Garotas com coxas rígidas e torneadas desfilam pelas ciclovias. Aqui as garotas levam tudo em suas bicicletas. Compras, filhos, cachorro e até o marido (juro que vi isso). Em Ubatuba luxo é ter um teto pra morar, uma prancha, uma amor e uma bicicleta. O resto é pedir demais. O Smog está finalizando a seleção de canções e o whisky está acabando. O céu está abrindo e escurecendo. Minha mãe já chegou e me ofereceu suco de limão duas vezes. Recusei duas vezes. Suco, suco, saúde. E eu aqui bebendo whisky. Sem gelo, puro. Sei que suco de limão com whisky vira Sour Whiskey, mas tô na manha do cowboy, bebendo no gargalo sem gelo, à seco. Foda-se.

Deixo minha vista passear e avisto montanhas, montanhas e mais montanhas. Grilos emitem seu som peculiar e as ruas já têm sua iluminação. Faz tempo que não ouço uma sirene. E tudo o que vejo são castanheiras, bananeiras e todas as outras 'eiras' da natureza. O calor permanece, teimoso, malandro, enchendo meu saco. Acho que são sete horas da noite. Estou seriamente bêbado e acho que vou pro meu terceiro banho.

Erich, Diego, vocês deveriam estar aqui.

Mih, te amo.

Caralho, meu cinzeiro está uma catástrofe. Preciso esvaziá-lo.

Foda-se o banho. A cerca do infeliz do vizinho está estourada e ele nem mora aqui, só na temporada. Hoje à tarde teve arco-íris. Sou paulistano, tudo é monocromático pra mim. De repente vejo um arco exibindo sete cores. Preciso de um oftamologista.

Conheci um surfista de alma pura, cada ato, cada palavra de uma pureza semelhante a de um monge budista. O cara tem trinta e sete anos com cara de vinte e cinco. Planta bananeira no asfalto por dez minutos. Surfa todos os diase como ele diz, tem sempre pensamentos positivos. Embora eu veja uma felicidade escancarada em sua face, nada de "good vibrations" me interessa, só a música dos Beach Boys. Não desprezo pessoas assim, eu as admiro. Como conseguem ver as prezepadas de Deus sob olhar otimista. Pessoas são assassinadas aos milhares e as pessoas ainda dizem que 'Deus é amor'. Precisam daquela cirurgia de catarata. Cegueira demais! E eu olhando o mundo com as lentes da realidade, mesmo que o arco-íris seja preto e branco, me sinto feliz. Mas me entrego à teoria de que a maresia contém substâncias tóxicas. Todo mundo é feliz e cego. Hoje li que o cloreto de sódio (vulgo sal) em excesso, pode ocasionar a cegueira. Acho que o sal marinho vem assolando o litoral. Santo Deus, cocaína, anthrax e agora outro pó: o sal.

Finalizei a garrafa! Fui atender o telefone na sala e ao subir as escadas de madeira pra voltar aos escritos, tropecei trágicamente, de forma mágica, me agarrei ao corrimão e gritei:

- Ê, bêbado!

Ainda há uns dois dedos e meio da bebida que despejei no copo, os últimos goles da fulga. Meus dedos doem em meio a pequenos calos que surgem. Faz tempo que não escrevo com caneta e papel. Só computador. Estou ébrio e as letras não passam de garranchos. Preciso de um equilíbrio perfeito - leia-se Carlton.

O dinheiro aos poucos se esgota, mas dia catorze eu saco a primeira parcela do meu seguro-desemprego. Viva o Brasil! Pagando minhas bebedeiras. Deus salve meu país tropical e claro, o número do meu PIS. Essa grana garante que sem cigarro e whisky eu não fico. Garante também alguns caprichos, como passar na zona pesqueira e comprar um bom peixe. Porra, aqui a sardinha sai a dois reais o quilo. E aqui tem livraria Nobel. Preciso de um novo livro. Estou terminado o "Espere a Primavera, Bandini" de John Fante e me desespero sob a perspectiva de não ter livros pra ler. Estou esperando o lançamento de "Pulp" do Bukowski (a L&PM prometeu o lançamento pro fim deste ano). Diabos, não há mais espaço para gimbas de cigarro no cinzeiro. O cinzeiro parece o ônibus de Sampa às seis da manhã.

Ônibus, aqui são poucos. Acho que o prefeito vê as bicicletas, enxames de bicicletas (qual é o coletivos de bicicletas?) e fica tranqüilo: o povo faz seu transporte coletivo. Pegar ônibus aqui é roubada. É preferível andar a pé que esperer um ônibus num ponto. Os ônibus são amarelos e bonitos. Mas isso não seduz a massa caiçara. Você pega a condução e em cinco minutos está em seu destino. Andar é realmente o bom negócio. Você pode andar pela praia deixando o mar refrescar seus pés. Aí você gira e só vê mar, montanhas cobertas pela remanescente Mata Atlântica. E gente de bicicleta. Aqui você anda oito quilômetros a pé tranqüilamente: o terreno é plano.

De repente você se depara com as ruas de Itaguá, praia badalada infestada de restaurantes chiques. E quando você caminha por lá, caminha numa via crucis, rumo ao calvário da fome. Os restaurantes anunciam na cara dura os pratos sugeridos: Peixe à putanesca, Lagosta à carnavalesca, marisco a cachacesca e todas as 'escas' da gastronomia mediterrânea. O cheiro te eleva à milésima potência da fome numa equação torturante. E eu, malandro que sou, saio sempre com dois e cinqüenta, o suficiente pra beber uma cerveja e rebater o calor. Permaneço com fome. Mas tudo bem, a padaria tem uma ótima coxinha e descobri na zona pesqueira, um barzinho refinado, que vende a fatia do cuzcuz marroquino por três e cinqüenta. Vale cada centavo.

A vida continua, estou me intrometendo no sonho de muitas pessoas, vivendo a felicidade que pra mim é melancolia. São Paulo, continue na luta, crescendo. Em breve estou de volta.

2 comentários:

Diego de Lima disse...

Por Cristo!!!

A minha estada por lá, foi sim, muito foda!

Mas como vc mesmo disse, foi um marasmo tão grande, que chegava à um ponto que tínhamos que andar ou fumar compulsivamente pra tirar o tédio. Mas não me arrependo nem vou reclamar, tenho ótimas lembranças e minha pele descascando como muda de cobra não me permitem esquecer daquela semana.

Por uma semana, me senti relaxado, tranqüilo, fodão e saudável [claro, com umas caminhadas de deixar sedentários de cabelos em pé].

Claro, senti saudade da cidade que nunca para e que as pessoas não são pessoas, corpos preocupados em ganhar seu dinheiro, pagar suas contas e viver sua vida medíocre.

Me lembrarei, das conversas noturnas, o equilíbrio perfeito e o whisky que sempre nos permitia dormir como bebês naquele calor.

Me lebrarei da experência de ter a vida em risco por um deslize, literalmente falando!

Me lembrarei do flamenguista idiota e infantil de lá. Que de tão besta, não nos comprimentava e olhava torto.

Mas foi demais ficar por lá..

Ficar uma semana em Ubatuba foi um sucesso!

Dastrevas disse...

Não li nenhum blog e nem ao menos os posts daquele tópico da comuna "ar de escritor decadente", onde vc linkou o seu blog.
Abri uma exceção para vc, nem sei porque. Não me arrependi. Vc tem talento. Ou pelo menos escreve num estilo que me agrada. Vivo numa cidade do litoral de SC que não difere em nada da descrição que vc fez de Ubatuba. Isto tb não me faz feliz. Flamenguistas idiotas, temos aos montes. Enxames de bicicletas tb. E conheço alguns paulistanos pretensiosos por aqui tb, se vc faz questão dos números.